"A pobreza e a fome já estão na classe média" é o título da página 18, da edição de hoje do Dnotícias. Três figuras públicas respondem a quatro perguntas do "Observatório" do matutino. E o que ali se lê, não porque seja novidade, constitui mais uma importante denúncia do estado da sociedade madeirense.
Todos tocam neste terrível quadro, há muito sentido, que anda a atirar para as margens milhares de madeirenses que não encontram o fio à meada para saírem do sufoco. Ou ficam e sofrem ou tentam a emigração. Com quem falo, oiço, por vezes, que "eles não querem trabalhar" e que até "há falta de mão-de-obra", que eles "vivem do biscate", que "a política de subsídios" está a matar a dinâmica da sociedade, que preferem "viver das instituições de solidariedade", enfim, sinto que tomam "a nuvem por Juno", empurrando a culpa para os que em cada mês lhes falta mais mês. Esquecem-se que existem causas e é nessas que as entidades públicas desde há muito deviam ter actuado de forma consistente e prospectiva. Não o fizeram e o drama social está aí com a pobreza a tornar-se paisagem. E os pobres não são todos malandros.
Sílvia Correia (Casa) é peremptória: "não acredito que a fome e a pobreza possam ser disfarçadas por muito mais tempo"; Nicolas Fernandez (Movimento Erradicar a Pobreza) assume que "cresce a angústia e nalguns casos o desespero, pois a pobreza é indisfarçável à vista desarmada" (...) a taxa de risco de pobreza na Madeira é de 28,9%, a mais alta do país"; Duarte Pacheco (Cáritas) sublinha: "muitas famílias que sentem dificuldades são constituídas por pessoas que trabalham, mas cujos rendimentos são insuficientes para satisfazer todas as suas necessidades básicas (...) têm rendimentos que não são sequer suficientes para cobrir as despesas mensais fixas".
Portanto, nós não estamos face a uma sociedade de vadios, mas numa sociedade onde existem mais direitos do que justiça social. Uma sociedade livre, democrática, rigorosa e bem estruturada suportaria, com maior ou menor dificuldade, os revezes de uma qualquer crise financeira ou de uma pandemia. Atirar os problemas e dramas sociais hoje sentidos apenas para esse quadro e deles socorrer-se sistematicamente, parece-me muito redutor, gerador de ilusão e equivale a uma certa areia para os olhos dos cidadãos. Pelo contrário, o que é evidente, também desde há muitos anos, é a contínua fome de poder, a ausência de estadistas que pensem a geração seguinte e não a eleição seguinte. Somos governados, com a culpa de todos nós, por pessoas de falinhas mansas que demonstram, no plano do discurso, preocupação pelos outros, mas que não sabem nada de escassez e miséria, antes centram em si o desejo da multiplicação da sua própria riqueza. Os outros que se amanhem! São eles os culpados primeiros da mentalidade existente e da ausência de uma sociedade mais equilibrada.
Desde logo, porque a Educação é única forma de romper com a pobreza, pergunto se não é aí que reside o desastre. Os milhares que ficam pelo caminho, marcados pela origem das suas famílias e pela vergonhosa concepção de uma escola que se mostra mais preocupada com o perfil do aluno à saída do sistema educativo e raramente com o perfil do aluno à entrada do sistema educativo. Trata-se, creio que intencionalmente, do primeiro passo para a divisão entre os berços de ouro e os outros. Depois, a inversão das prioridades, através de "investimentos" (de propósito, entre aspas) públicos tresloucados, contrários às necessidades primeiras do ser humano. Depois, ainda, a teia de interesses e de exploração das pessoas a todos os níveis. Finalmente, o estabelecimento de uma sofisticada engrenagem de comunicação política que, pela repetição, faz crer este é o melhor dos mundos, nós "um povo superior" que vive num tal "cantinho do Céu". Foi esse o meio escolhido, esse mundo de enganos que atira para outras bandas responsabilidades políticas próprias, as autonómicas, que impõe o medo, a resignação e o receio que prende a maioria a uma emaranhada engrenagem que constrange e que olha para o futuro sem futuro.
Estamos face a um povo distante de um sentido vasto do significado da palavra cultura, que não se levanta e que prefere ajoelhar-se, conformado com as migalhas que vão caindo do faustoso banquete de outros. Quando para ser feliz não são necessários milhões!
Ilustração: Google Imagens
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