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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

O mundo agrícola europeu em convulsão


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.



A França tem sido o epicentro da revolta dos agricultores na União Europeia. Mas outros países europeus, em dias ou semanas diferentes ou por vezes coincidindo, não deixaram de mostrar o seu profundo descontentamento nas ruas com tractores, bloqueando estradas e ocupando espaços predefinidos em cidades como Bruxelas.

O mundo agrícola convive mal com a perda, ao longo dos anos, do seu estatuto social e de quebra de rendimentos continuados. Em muitas outras profissões, esta situação é também uma constante, sendo difícil encontrar as razões desta tendência. Será que mudanças de paradigma nas sociedades explicarão tudo isto?!

Por outro lado, problemas específicos nos diversos países ajudaram a acelerar este descontentamento global. Foi o fuelóleo na Alemanha, os cereais ucranianos na Polónia e Roménia, a água, os cortes e os atrasos burocráticos na entrega de subsídios em Portugal.

A grande questão é Bruxelas

Como gritava uma jovem no meio de uma coluna de tractores que tentava encaminhar-se para os edifícios do Parlamento Europeu “temos de atacar o coração do sistema”.

Sim, o “coração do sistema” é a Política Agrícola Comum, definida em Bruxelas em contínua deriva pelo menos desde 2010, criando confusão com regulamentação excessiva a toda a linha e grandes dificuldades aos agricultores europeus, com rendimentos cada vez mais reduzidos, baixa de preços ocorrida pela concorrência desleal de produtos importados que não cumprem as regras da União, em qualidade e ambiente, mas entram no espaço comunitário, na base de acordos ou de favor (isenções tarifárias desde a primavera de 2022 dos produtos agrícolas ucranianos).

Regulamentação excessiva

A regulamentação excessiva é uma praga da União Europeia em todos os domínios. Quando não se tem nada para fazer, ou seja, onde falta uma política sólida de desenvolvimento, produz-se regulamentação sobre regulamentação. É assim em tudo, na energia, nas tecnologias, na inteligência artificial (IA)… em tudo.

A propósito da IA, há dias li no L’Express (11/12/2023) uma blague humorística pouco abonatória da União Europeia, que circula há algum tempo.

IA: L’ Europe entre enfin dans la course. “Nos EUA, eles têm a GAFA. Na China, a BATX. Nós temos o GDPR”.

Dando nome às siglas. Os Estados Unidos têm campeões de tecnologia (Google, Apple, Facebook e Amazon). A China também (Baidu, Alibaba, Tarant e Xiaomi). A Europa, para seu consolo, tem a Regulamentação de Dados. Aliás, a UE é um espanto. Avançou com um regulamento sobre IA, quando não tem uma empresa de IA “digna” desse nome, pelo menos em termos de comparação com a China e EUA. Surrealista!

Muitos peritos atribuem a esse grau excessivo de regulamentação falhas estratégicas nas políticas europeias e acentuam a inoperância/incapacidade da União Europeia na conjugação de ideias de fundo entre os países e entre empresas de diferentes países para ganhos de dimensão no mercado mundial.

Retornando ao mundo agrícola

O mundo rural aparenta, embora com um pico neste ou naquele país, uma certa acalmia, decorrente das decisões tomadas, umas pela Comissão Europeia e outras a nível de cada país. Mas umas e outras são de curto prazo e várias até de caracter transitório.

Duas medidas de curto prazo foram tomadas por Bruxelas, respondendo a exigências importantes dos agricultores europeus:

⦁ A “derrogação parcial” da obrigatoriedade do pousio imposta, a nível europeu, em condições rejeitadas pelos agricultores.
⦁ As medidas de salvaguarda para as importações ucranianas e a suspensão das negociações do acordo UE-Mercosul, aliviando assim a concorrência desleal.

Ursula von der Leyen também veio prometer a redução da carga administrativa da PAC, sem, no entanto, especificar em que consiste. Certamente, ainda estará a pensar na regulamentação necessária!
A nível de países, foram tomadas medidas específicas como a suspensão do imposto sobre o gasóleo não rodoviário, a concessão de alguns subsídios temporários, etc. Mas Bruxelas ficou em péssima situação e dirigentes de países como a França contribuíram em muito para tal.

A comunicação social europeia escreveu que Macron “curvou” Bruxelas, o que não deixa de ser um pouco verdadeiro, pelo menos em duas frentes: no que toca ao acordo em discussão com o Mercosul e na política ecológica ao fazer passar a mensagem aos agricultores de que o inimigo é a ecologia, ao falar da necessidade de adaptação da política europeia sobre “alterações climáticas”.

Os problemas de fundo permanecem

Esta crise assumiu características mais alargadas. Era normal, aqui e ali, uma crise ou outra, a nível sectorial ou regional, no leite, ovos, cereais, vinho, carne, etc.

Esta vem globalizada. Todos os sectores apanhados pelo aumento dos preços dos factores de produção e respectivos impactos nos custos dos produtos, a relação entre os produtores agrícolas e distribuidores a deteriorar-se, de forma que a produção designadamente as unidades familiares e as de menor dimensão entraram mesmo em perda real de rendimentos.

Tudo em crise, menos um pequeno número, ou seja, as grandes explorações agrícolas, as grandes transformadoras de produtos agrícolas e as grandes cadeias de distribuição que levam uma grossa maquia dos subsídios do orçamento comunitário da PAC que corresponde a cerca de 1/3 do da União Europeia.

As questões de fundo permanecem, assim, e outras novas foram espoletadas ou agudizaram-se como o conflito entre o mundo agrícola e os ambientalistas através de slogans por vezes rudes. Na Alemanha lia-se: “pelo bem da pátria, vamos expulsar os ambientalistas do país”. Estas palavras constavam de cartazes apostos em tractores nas manifestações de Janeiro. Considerar os ambientalistas, a bête-noir dos agricultores, assume um carácter ainda muito acintoso, uma vez que os Verdes fazem parte da coligação governamental. Portanto, a questão de fundo permanece.

O que queremos da agricultura europeia? Esta é a pergunta chave

A União não pode continuar a colocar os impostos dos europeus na PAC, exigindo produção de alta qualidade, e deixar as portas abertas à entrada de produtos que não cumpram as regras da UE.

Este é, com toda a razão, o cavalo de batalha dos agricultores. É a própria União a negar-se a si própria ao promover a concorrência desleal consigo própria, a alimentar as grandes cadeias de distribuição e as transformadoras, afundando assim o mundo rural.

Mudanças profundas se impõem a vários níveis, uma nova filosofia para a PAC, para que se lance uma agricultura competitiva, sustentável e dinâmica, com elevado impacto no PIB, nas exportações e redução das importações para que o mundo rural se tranquilize e possa se agigantar, sustentado em bases sólidas de trabalho. Só, deste modo, se poderá caminhar para uma pacificação sustentada e para a soberania alimentar.

Muitos passos e muita negociação séria são precisos para se chegar ao fundo das questões e, a partir daí, erguer a estratégia. Menos burocracia, menos regulamentação e muito mais planeamento estratégico.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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