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quinta-feira, 20 de junho de 2024

Não foi para isto que extinguimos a PIDE


Por
Daniel Oliveira,
in Expresso, 
19/06/2024
estatuadesal


A conversa entre Costa e Galamba sobre o despedimento da CEO da TAP nada tem a ver com qualquer processo em investigação. Há regimes em que o Estado pode escutar todos os atores políticos e usar as suas conversas para os destruir: a RDA tinha a Stasi. E há democracias em que os cidadãos perderam o apego à sua liberdade. É tragicamente irónico que magistrados e jornalistas estejam na primeira linha contra as liberdades e garantias. Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril.



Não podia estar mais à vontade no tema. Desde o primeiro minuto que considero que o despedimento de Christine Ourmières-Widener, uma CEO com resultados, teve como único objetivo resolver problemas políticos a António Costa, na sua demanda contra o seu putativo sucessor e de se livrar de todos os problemas, mesmo com prejuízo para o país. A ex-CEO tem tudo para vencer o processo contra o Estado português.

Não preciso, ninguém precisa, de qualquer escuta para escrever isto. Nem quero tê-las ao meu dispor. Por uma questão de proporcionalidade: o julgamento político de decisões políticas não recorre a meios extremos, garantidos pelo Estado. Isso é o que fazem as ditaduras contra os seus opositores. E, no processo de decadência das nossas democracias, em que ao jornalismo totalmente comercializado participa ativamente, está cada vez mais difícil explicar o que era óbvio para todos os democratas e amantes da liberdade.

Os limites para a utilização de um meio extremo de intrusão do Estado na vida privada dos cidadãos estão claros na lei. Eles impediriam as escutas por arrastão que o Ministério Público organizou contra João Galamba – hoje fica clara a função que lhe pretendiam dar. A justiça não escuta para descobrir crimes, escuta para recolher prova de crimes que sabe terem existido. Mesmo se ignorarmos a ilegitimidade (para não dizer ilegalidade, independentemente da autorização de um juiz) desta forma de investigar, o problema começa quando o próprio Ministério Público decide transcrever a conversa entre o primeiro-ministro e o ministro das Infraestruturas, mantendo-a nas suas mãos. A transcrição estava enquadrada em que processo? Neste caso, não há como atirar responsabilidades para outros atores judiciais: a própria transcrição daquela conversa é abusiva.

A resposta foi dada na segunda-feira, com a divulgação mediática da conversa entre Costa e Galamba, a propósito do despedimento de Ourmières-Widener. A libertação destas transcrições no momento em que o nome de António Costa está a ser negociado para a presidência do Conselho Europeu e o seu envolvimento no processo Influencer é uma pedra no sapato deixada por mais um momento de irresponsabilidade do Ministério Público indicia gestão política da violação do segredo de justiça.

Também já não tenho muita paciência para o discurso de jornalistas que acham que, tendo uma notícia nas mãos, o seu único dever é divulgá-la. Não é assim com nenhuma atividade, também não é com o jornalismo. Todas têm limites éticos e deontológicos. A utilização de escutas judiciais para revelar informações políticas sem qualquer relação com os processos que supostamente estariam a ser investigados recorre a uma forma de recolha de informação que atenta contra os mais básicos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E um jornalismo que desrespeita a liberdade não pode cumprir a sua função cívica.

A utilização destes meios ilegítimos nada tem a ver com jornalismo. As escutas foram usadas por um canal de informação por cabo no dia em que um concorrente nascia. É pura guerra comercial. Aquilo a que assistimos é à substituição do saudável pluralismo pela feroz concorrência comercial. Nela, os limites são apenas os da lei e como vemos, nem esses são cumpridos. Para o jornalismo os limites são maiores do que a lei porque a sua função é, antes de tudo, social.

Só Estados totalitários negam aos cidadãos direito a um núcleo de privacidade. Isto inclui os políticos e até inclui decisões políticas. Sem essa privacidade, a política é, aliás, impossível de se fazer. Estão os magistrados do Ministério Público disponíveis para ver todas as suas conversas profissionais na imprensa? Estão os jornalistas disponíveis para ver publicadas as suas conversas profissionais, incluindo com fontes? Por mim, não quero temer que um artigo como este ou outros que escrevi venha a resultar na divulgação públicas de conversas telefónicas privadas para me prejudicar. Não quero viver num país onde cidadãos cumpridores da lei falam através de meios de comunicação encriptados, temendo que agentes do Estado divulguem as suas conversas.

Há regimes em que o Estado pode escutar todos os atores políticos e usar as suas conversas privadas para os destruir politicamente: a RDA tinha Stasi. E há democracias em que os cidadãos perderam o apego à sua liberdade e aceitam viver num país onde o que dizem em privado pode ser usado contra si, mesmo que não estejam a cometer um crime.

É tragicamente irónico que magistrados e jornalistas estejam na primeira linha contra as liberdades e garantias dos cidadãos que deviam defender. Não foi para isto que fizemos o 25 de abril e extinguimos a PIDE.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Uma União Europeia combalida


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

A União Europeia, arrastada pelos resultados e consequências nos seus dois maiores Estados-membros, mergulha numa crise, cujo desfecho é complexo.



1. Os resultados das eleições 2024 para o Parlamento Europeu (PE) não defraudaram as sondagens. Uma aproximação quase ao milímetro. O PE inclinou-se para as direitas radicais a imitar a Torre de Pisa, mas os grupos políticos de centro-direita (PPE) e centro-esquerda (S&D) – a base, ao longo dos anos, determinante da construção europeia – em conjunto com os grupos Renovar a Europa e Verdes/ALE asseguram uma larga maioria absoluta (62,9%).

O sistema não caiu, mas a influência da extrema-direita, nos meandros da União, sobretudo através de Giorgia Meloni, vai reforçar-se a pouco e pouco, tentando mudar o rumo da “marcha europeia”, já de si tão vagarosa e sinuosa.

2. Uma coisa, porém, são as expectativas, outra o choque, ao nível dos Estados-membros, com a realidade nua e crua, apesar de esperada. A realidade dos números não deixou de abalar a França e a Alemanha, onde os partidos ligados à governação acusaram derrotas estrondosas.

Em França, Macron nem metade atingiu do número de deputados do partido de Le Pen e, na Alemanha, pela primeira vez no pós-guerra, a extrema-direita (AfD) inflige uma derrota humilhante ao chanceler Scholz, obtendo mais deputados que cada um dos três partidos do governo. Nem os escândalos de última hora da AfD bastaram para quebrar a tendência de humilhação previsível.

3. Macron reage dissolvendo, de imediato, a Assembleia Nacional. Marca eleições para 30 de Junho (1ª. volta) e 7 de Julho (2ª.), o que significa que trazia a jogada preparada. Scholz não reagiu, mas alguma atitude terá de ter, face a tamanha humilhação. Aliás, a CDU/CSU (direita clássica e principal membro do PPE) já chamou a atenção do governo nesse sentido.

A União Europeia, arrastada por esta situação nos seus dois maiores Estados-membros, mergulha numa crise, cujo desfecho é complexo, embora no caso de França todos os sintomas nos indiquem (apesar da “Frente Popular”, manifestações de rua, cisão nos Republicanos) que o partido de Macron vai sair desta contenda bastante “asfixiado”. Uma coabitação entre um governo de maioria Le Pen e Macron poderá estar à vista, com efeitos de antevisão bem problemáticos, até na Nato.

As causas desta crise

4. Muitas são as razões do voto populista que, embora não tenha obtido força determinante no conjunto da UE, foi determinante nestes dois países para desencadear uma crise interna e lançar a confusão entre as forças políticas.

Apontamos aqui algumas:

⦁ Uma de fundo. A não realização do Mercado Único Europeu, criado há 30 anos, em áreas-chave como a energia, as telecomunicações, os mercados financeiros, como bem realça o relatório recente de Enrico Letta, presidente do Instituto Jacques Delors, elaborado a solicitação do Conselho e da Comissão. O relatório afirma que, desde a primeira hora, não houve avanços por decisão dos grandes Estados-membros. Uma ausência de visão estratégica pois não souberam antever que a dimensão do seu país, ao contrário do que pensavam, não era suficiente. Importante para a competição global era mesmo a dimensão europeia. E foi nesse sentido que Jacques Delors com a sua sagacidade o tinha lançado. Continuamos com 27 mercados, em vez de um único.

⦁ A crescente frustração dos europeus com a política migratória confusa acordada entre os partidos influentes na governação da União Europeia.

⦁ A elevação do patamar de preços da energia que marginalizou a indústria europeia na competitividade global, para além do impacto negativo na factura mensal das famílias, atribuindo o desnorte nesta matéria à má gestão da União Europeia, pois sabem que ao cidadão e às empresas da Europa a energia custa o dobro da dos EUA.

⦁ A ideia de que a ajuda europeia ao esforço da guerra da Ucrânia pesa em demasia sobre o cidadão europeu. Um exemplo, não esquecer a grande contestação do movimento dos agricultores em toda a União aos benefícios às importações de produtos agrícolas da Ucrânia (cereais, frutas…).

⦁ O elevado nível de desemprego e a incerteza face ao futuro sobretudo das gerações jovens.

A juntar a estas e outras razões, a sensação de incapacidade dos partidos tradicionais oferecerem saídas aos problemas que cada vez mais vão agravando a vida da população europeia.

A situação portuguesa

5. Quem ganhou e quem não ganhou com os resultados destas eleições?

Somar e subtrair é fácil e tirar conclusões quantitativas também. Em termos pessoais Cotrim de Figueiredo, António Costa indirectamente, pois reforçou o apoio no caminho para a Europa, Marta Temido… Mas não é este o foco que interessa. Em termos de substância, passou-se algo de novo no País?

Um mito apenas se partiu. O afundamento do Chega e pela profundidade atingida é mesmo excepção na Europa. Os 50 deputados no Parlamento entram, assim, em desvalorização. Continuam lá a fazer número, mas de qualidade pouco certificada. A desvalorização decorre da forma desregrada como têm agido os parlamentares e o seu líder e das causas protagonizadas. Achincalhar o PR não é coisa de que se goste. É ir longe demais, para além de nunca avançarem com propostas que levem à solução de problemas reais das pessoas.

Em termos de substância ficamos na mesma. Existe uma paralisia e os problemas de substância estão para ficar. Escolhemos três problemas estruturantes que condicionam o nosso futuro e precisam de ser equacionados com urgência, pois não têm solução de curto prazo: água, energia, demografia. Há muitos outros, custo de vida, habitação, justiça, tecnologia. Mas não estou a fazer a lista. São muitos e muito interligados.

6. Umas breves notas. O País precisa de políticas sérias e bem estruturadas para cada um destes problemas. Fala-se aqui e ali, mas sempre de forma desgarrada.

Sobre a água fala-se de dessalinização e que problemas resolve? Haverá transvases? Haverá aproveitamento do Tejo? Há, pelo menos, levantamento das necessidades de água a longo prazo? Penso que pouco se sabe sobre isto de forma alicerçada e decisões sustentadas menos ainda.

Sobre a energia, outra situação semelhante. Fala-se muito de renováveis, de descarbonização, da transição energética, do combate às alterações climáticas, mas sem estratégia de fundo e com um baú de preconceitos, a ausência do equacionamento da energia nuclear. Continuamos a desqualificar a ciência e os avanços tecnológicos neste domínio.

E, finalmente, sobre a demografia, esqueceu-se que Portugal, a Europa e o Mundo têm, aqui, um problema gravíssimo. Sem pessoas em idade de trabalhar não há desenvolvimento, o país mirra, empobrece e, sem dúvida, caminhamos nesse sentido. Um país como o nosso, com um grau de envelhecimento cada vez mais acentuado, está a reduzir o número de pessoas em idade de trabalho. E como vai o país enfrentar esta situação? Uns ditos piedosos!!

7. Certamente, há que agarrar estas situações gravíssimas e começar a encontrar soluções participadas. É preciso uma metodologia para relançar tudo isto. Chamem-lhe “projecto Porter”, “estrutura de missão Mariana Mazzucato”. Necessário é arrancar, inovar e criar conhecimento aplicado.

Já temos a União Europeia que induzo a entrar em período de hibernação até porque este segundo mandato de von der Leyen nada promete de melhor. Saiu desprestigiada do primeiro em várias frentes. Porque não apostar numa outra figura como Mario Draghi?! Até é da mesma família política. Mas mudaria seguramente a qualidade e a determinação no “saber agarrar” os problemas.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

domingo, 16 de junho de 2024

O conflito que vem a caminho

 

Tenho andado afastado da escrita. Por opção. As pausas são importantes em qualquer actividade. Ler e reflectir, também, andar por aí sem o rigor do memorando diário, torna-se mais relevante do que a tentação de comunicar a todo o momento, no pressuposto que tudo é oportuno e merecedor de opinião. Há verbos indispensáveis: olhar, observar, perceber, cruzar, compreender e interiorizar, entre outros, claro. Há uma idade e um tempo que a isso nos conduz. Enriquece e, provavelmente, corrige-nos e torna-nos melhores, alego eu! Até a bomba relógio que somos, pronta a explodir a qualquer momento, consequência de uma falência, mínima que seja, na saúde, tem o condão de nos transportar, não para o complexo labirinto da vida, mas para o estabelecimento de prioridades e, sobretudo, para a relativização do que se passa na frente dos nossos olhos de actores - espectadores.



E não tem sido pouco o que os meus olhos têm varrido nos últimos tempos. Uma decepção. Tudo parece assentar na mentira embrulhada em papel de celofane, em acontecimentos fabricados e servidos em bandeja engalanada, em jeito de alta cozinha, com produtos de má qualidade, mas artisticamente apresentados pelos chefes da aldeia. É a ausência do sentimento de vergonha e até de culpa. É a "verdade", dita com tez séria, que logo se transforma em rotunda mentira passadas umas horas, em jogos de tabuleiro onde entram peças viciadas na sedução hipócrita. É o desrespeito pela decência, sem pejo algum, percebendo-se o que escondem no armazém dos interesses. São as propostas, ditas abrangentes, colocadas a martelo, divulgadas com uma absurda convicção, que nos conduzem a uma dupla interrogação: afinal, que razões subjazem ao facto de, permanentemente, durante quase cinquenta anos, não terem aceitado como boas as sugestões dos outros parceiros? Ou, então, onde assenta a lógica de todos, agora, em vivência democrática, deverem estar comprometidos com uma única solução? Até o Bispo que devia pautar a sua acção pelo distanciamento, cumprindo a Palavra e "chamando os bois pelo nome", sem pejo algum, diz-se "cansado de eleições". Que experimente a ditadura, digo eu.

Quem está atento, tão distante quanto próximo das realidades, capaz de descobrir artimanhas nas entrelinhas dos processos, capaz, ainda, de produzir sínteses que espelhem e façam perceber o que a generalidade da comunidade, por iliteracias múltiplas ou notórias cumplicidades não o consegue fazer, confronta-se com um quadro deprimente, afrontoso e ultrajante, quando olha para a paisagem. A sensação que neste momento me invade é que tudo isto, em linguagem tecnológica, mais cedo que tarde, dará "erro". Porque não somos liderados por estadistas, os que pensam nas pessoas e no futuro. São, somente, políticos de "feira da bagageira".

Os milhares que hoje aplaudem, diz-nos a História, amanhã poderão estar na frente do combate, agitando as bandeiras do engano e do desespero. De nada valerão as pianolas, as visitas e os discursos inflamados que despejam para os ombros de outros os próprios erros estratégicos. Hoje, fermenta uma sociedade desequilibrada em todos os sectores, espremida entre a profusão do luxo e a pobreza, as instituições e os funcionários de turno que disfarçam múltiplas fomes. A angústia por uma habitação digna face aos valores pornográficos impostos, a secundarização dos direitos constitucionais, a educação de qualidade que rompa com o círculo vicioso da pobreza, o quadro nebuloso do sistema de saúde, tudo isto e muito, muito mais, irá gerar, certamente, a revolta, o colapso da mentira e daquela peregrina ideia de insubstituibilidade. O fosso está, paulatinamente, a ser criado e o conflito a caminho. É natural que isso aconteça. O que lamentarei, obviamente. Tudo podia e devia ser sereno se outra fosse a cultura democrática e o escrupuloso respeito pelos princípios do desenvolvimento.

Não bastassem os sérios dramas das guerras, a inconsistente e tardia resposta aos problemas ambientais, a subserviência a uma União Europeia desnorteada, um Papa que fala e ninguém escuta ou um Secretário-Geral da ONU que poucos respeitam, ainda temos de levar, aos níveis nacional e regional, com chefes que nunca chegarão a líderes. 

Ilustração: Google Imagens.

sábado, 15 de junho de 2024

Dúvidas, falsificações e mentiras


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso 
Estátua de Sal

Escutar o contraditório, analisar os argumentos da outra parte, ainda que errados ou falsos, nunca fez mal a ninguém.



Nunca, nem na democracia ateniense nem no período glorioso do Império Romano do Ocidente, a sabedoria humana ousou pôr de pé um projecto político tão revolucionário como aquele a que hoje chamamos União Europeia (UE). Por ser o mais justo entre povos e nações, o mais solidário, o mais integrador de diferenças, o mais inovador, o mais pacificador, a União Europeia transformou-se no modelo de muitos, no sonho de milhões. Mas das suas forças, do seu êxito, dos seus sucessivos alargamentos, a UE fez as suas fraquezas. É difícil reconhecer hoje nela o espaço político e económico a que Portugal aderiu há mais de 30 anos. Sem pôr em causa a justiça da integração de outros que vieram depois, eles acrescentaram menos do que aquilo que trouxeram e tornaram mais evidentes as diferenças e mais difíceis os consensos e a governação. Nem tanto por razões de nacionalismos inconciliáveis, mas mais por diferentes concepções daquilo que seja a Europa e os seus valores comuns, do ponto de vista de cada um. É assim uma boa notícia que as forças políticas historicamente essenciais à construção europeia e ao seu funcionamento — do centro-direita ao centro-esquerda — tenham mantido uma maioria no Parlamento Europeu, derrotando os presságios fúnebres que já viam Bruxelas paralisada pela agenda de uma extrema-direita apostada na desagregação democrática e na anarquia populista.

Entre nós, a precipitação de Pedro Nuno Santos em nacionalizar as eleições, ávido como estava por qualquer coisa que se parecesse com uma vitória, teve como resultado paradoxal e face à leitura fria dos votos, a recaída numa situação sem saída próxima: nem a AD reviverá 1985 e a fuga em frente vitoriosa de Cavaco Silva, nem o PS, desamparado à esquerda, ficou mais próximo da desforra, nem o Chega sabe bem o que fazer daqui em diante.

2 Apoiar a Ucrânia é uma coisa; ir para a guerra da Ucrânia é coisa diferente. Não consigo deixar de ver nas retumbantes derrotas de Macron em França e de Scholz na Alemanha — ambos com 15% dos votos e ambos outrora os maiores defensores de uma solução de paz e hoje dos maiores belicistas — uma rejeição do seu aventureirismo. Se não foi isso, foi o quê? Recomendo, a propósito, a magnífica entrevista do historiador inglês Owen Matthews, especialista na Rússia e na Ucrânia, saído na última Revista do Expresso: é mesmo uma lufada de ar fresco e um exercício de informação inteligente e séria ver alguém do lado de cá conhecedor dos assuntos, que foge do discurso instalado e quase obrigatório sobre as motivações de Putin para a guerra e as suas ambições territoriais. Escutar o contraditório, analisar os argumentos da outra parte, ainda que errados ou falsos, deter-se nos ensinamentos da História, nunca fez mal a ninguém. Emprenhar pelos ouvidos é que faz mal. Sem deixar de criticar Putin e a invasão da Ucrânia, Matthews critica também o simplismo de muitas das análises feitas no Ocidente, dando como exemplo as afirmadas pretensões imperiais de Putin, supostamente tomando-se pelo novo Pedro, o Grande. Matthews acha que esse é “um erro de análise fundamental”. O que, segundo ele, fez Putin decidir-se pela invasão foi o medo da Ucrânia na NATO e más informações do seu círculo próximo, porque o seu sonho não é restaurar o Império russo ou soviético, mas sim a reunificação dos povos eslavos. E dá como exemplo disso e da desinformação promovida no Ocidente a sua célebre frase de 2005, quando disse que o colapso da URSS tinha sido a maior tragédia geopolítica do século XX. O problema, esclarece Matthews, é que se esqueceram de citar a outra metade da frase, quando ele disse que a tragédia estava nos milhões de russos que ficaram desprotegidos fora das fronteiras da Rússia. E não esqueçamos, acrescento eu, que, com o apoio quase unânime do Ocidente, Margaret Thatcher fez a Royal Navy atravessar dois oceanos para ir expulsar o Exército argentino das Malvinas, onde viviam 300 súbditos britânicos, criadores de carneiros.

3 Se revisitar a História é sempre um exercício útil, comemorá-la nem sempre é uma empreitada feliz. Em especial quando os de hoje querem celebrar ao sabor das conveniências do momento os feitos dos de ontem. Lembrei-me disso a propósito das comemorações, a 6 de Junho, dos 80 anos da Operação Overlord, na Normandia francesa. Foi um pouco ridículo ver o pequeno Macron empertigar-se à altura do grande De Gaulle, Biden no papel de Roosevelt, e Sunak, que só não ensaiou o de Churchill porque o deixou para Zelensky, apressando-se a regressar à mais importante campanha eleitoral inglesa. Compreendo, claro, que, dado o ambiente reinante, não tivessem convidado Putin para o papel de Estaline, em representação do quarto aliado, a URSS. Mas nenhum ambiente, por mais toldado que esteja, pode consentir que a História seja falsificada por grosseira omissão — a não ser que o objectivo seja mesmo o de provocar um clima de guerra declarada. Nos discursos da Normandia todos se “esqueceram” que durante três anos, até ao 6 de Junho de 1944, a URSS enfrentou sozinha, numa Europa inteira subjugada à pata nazi, as Forças do Eixo, com excepção, mais tarde, dos combates dos ingleses com o Afrika Korps de Rommel, no Norte de África. E que, nesses três anos, não obstante as múltiplas súplicas de Estaline a Churchill para a abertura de uma frente ocidental na Europa, este foi-a adiando sucessivamente até garantir o apoio maciço dos americanos. Esse esforço solitário dos russos obrigou à deslocação do grosso do Exército alemão para Leste até à sua estrondosa derrota em Estalinegrado, sendo assim decisivo para o sucesso do desembarque aliado na Normandia. Custou aos russos 6 milhões de mortos, mais do que suficiente para que a sua memória merecesse pelo menos uma menção, num dia dedicado à memória dos que morreram para libertar a Europa dos nazis. E para que os discursos agora feitos na Normandia não tenham sido interpretados como a equiparação entre a luta contra a Alemanha de Hitler com a luta contra a Rússia de Putin. Por mais omissões ou adaptações da História que lhes ocorra fazer, não cabe aos vivos de hoje separar entre bons e maus mortos os que morreram a lutar pela mesma causa.

4 E por falar em comemorações, Nuno Melo, com a absoluta vacuidade de ideias que o vem ocupando (como se não tivesse nada de mais importante com que se ocupar), lembrou-se de tocar a reunir toda a direita, incluindo a direita infrequentável, para que se passe a comemorar solenemente o 25 de Novembro de 1975. Trata-se de um programa extemporâneo, ilegítimo vindo de onde vem, divisionista, provocatório e condenado ao fiasco. Mas a resposta do actual PS, entrincheirando-se com a esquerda antidemocrática derrotada por Mário Soares, Eanes, Melo Antunes e os “Nove”, em Novembro de 1975, é de que quem não entendeu nada e não respeita o seu passado. Felizmente, ainda há quem não esqueceu e agradeça.

5 “Pode um colunista dizer que os judeus são todos criminosos?”, pergunta, no texto e no título, Francisco Mendes da Silva, na sua coluna de opinião, sexta-feira passada, no “Público”. Respondo já: não, não pode. Mas faço outra pergunta: e pode um colunista, mais do que deturpar grosseiramente, inventar o que outro não escreveu a fim de melhor argumentar? E, ainda por cima, argumentar em defesa da legitimação de uma chacina humana praticada à vista de todos diariamente?

Francisco Mendes da Silva, cuja coluna eu leio sempre com interesse e bastas vezes concordância — e continuarei a ler — dirige a sua pergunta ao texto que aqui publiquei há duas semanas intitulado “A traição de Israel”. Não perderei muito espaço a desdizer a acusação que me dirige, remetendo os leitores para a sua leitura ou releitura. Quem se der ao trabalho de o fazer ou quem recordar o que escrevi, facilmente constatará que em nenhuma passagem do meu texto eu escrevi, subentendi, ou, mesmo retirando do contexto, deixei passar qualquer frase que possa consentir a afirmação de que “todos os judeus são criminosos”. Trata-se da maior adulteração, da maior falsificação, da mais desavergonhada mentira acerca de um texto meu que tive de enfrentar em décadas de opinião. Eu escrevi, sim — o que é completamente diferente — que Israel é hoje “um Estado criminoso, que nenhum critério de decência pode absolver”, e que, ao contrário do que sempre sucedeu no passado, “todo o povo de Israel, ou quase todo, está solidário com um governo de criminosos”. Mas isso não sou só eu que o digo, di-lo também o TPI, cujo procurador, escudado na opinião unânime de oito peritos em direito internacional, emitiu mandatos de captura contra três terroristas do Hamas mandantes do 7 de Outubro, bem como contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel, por crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. Simplesmente, há quem, “vendo, ouvindo e lendo”, consiga ignorar e prefira recorrer à mentira e à calúnia dos opositores para evitar ter de enfrentar os factos. Dizer, como Mendes da Silva, que eu “equiparo os judeus aos nazis” porque falo da “solução final” que Israel pretenderá para Gaza, omitindo que escrevi que essa seria a expulsão de todos os palestinianos de lá para fora (e não, como ele desejaria que eu tivesse escrito, as câmaras de gás!), ou que me “refiro sempre aos judeus como uma entidade una e indivisível” para insinuar o meu anti-semitismo, omitindo que me refiro indistintamente a judeus e israelitas ou a palestinianos, apenas como forma corrente de identificação das duas principais etnias habitantes da Palestina, são truques rascas e ofensivos. Mas há que entender: não deve ser fácil ver e fingir não ver, ler e pretender não ter percebido. Ter de sossegar a consciência de ser-se intelectual e moralmente conivente com a bebedeira de morte que está a acontecer em Gaza.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Eleições 2024. União Europeia, a bela adormecida


Por
João Abel de Freitas, 
Economista

O panorama que se vislumbra para o PE é do maior melindre pelas suas repercussões na composição futura dos órgãos de governação da UE e, por consequência, na determinação do conteúdo das decisões políticas nos próximos cinco anos.



1. Estamos a 5 dias das eleições europeias. No próximo domingo, dia 9, receberemos o veredicto. Todas as sondagens, sem excepção, apontam, em maior ou menor grau, para um reforço da extrema-direita e direita radical na Europa. Em dois dos grandes países fundadores da UE, França e Itália, os partidos de Marine Le Pen e de Georgia Meloni (primeira-ministra de Itália) vão ser os vencedores das eleições e, por grande diferença de deputados, elevando, deste modo, a sua influência nos grupos políticos do Parlamento Europeu em que se integram, ID-Identidade e Democracia e ECR – Reformistas e Conservadores Europeus. Acresce ainda que, em países de média dimensão, como a Hungria, Áustria, Eslováquia, Holanda, Roménia, Suécia, a conquista do primeiro lugar pela extrema-direita tem uma elevada probabilidade, correndo-se o risco, na Alemanha, da AfD – partido de extrema-direita, alcançar o segundo lugar, à frente do partido social-democrata do primeiro-ministro, Olaf Scholz, o que não deve trazer grande saúde ao governo.

Meloni e Le Pen têm plena consciência das condições favoráveis que irão disfrutar no exercício da sua influência e vão agir no sentido de dar passos significativos no ajustamento da UE ao seu projecto “europeu”. Há quem defenda que estes partidos de extrema-direita e direita radical “não têm nenhum tipo de pensamento europeu”, que o seu pensamento é nacionalista, e o que pretendem é desagregar a Europa, embora presentemente com posições mais mitigadas, já não advogando a saída da UE ou o fecho de fronteiras. Se estivermos atentos à sua narrativa reconhece-se um “suavizar” de posições em certos domínios e temas, e uma rotunda rejeição de outras propostas novas como a da inclusão da IVG na carta dos direitos europeus, posição entre nós seguida por Sebastião Bugalho, cabeça de lista da AD, que se encaixa no PPE europeu.

O panorama que se vislumbra para o PE é, assim, do maior melindre pelas suas repercussões na composição futura dos órgãos de governação da UE e, por consequência, na determinação do conteúdo das decisões políticas nos próximos cinco anos.

2. Nas europeias de 2019 escrevia, então, que a Europa “andava à deriva” sob o impulso da extrema-direita. Há 5 anos, a deriva já era notória. Hoje bem mais profunda. O que ainda amortece uma implantação mais forte é essas forças não se entenderem, a nível das suas relações externas por exemplo na guerra da Ucrânia (pro-Rússia e pró-Ocidente) e, a nível interno, na diferenciação do grau de moderação. Em Itália, o caso é bem visível. Giorgia Meloni dos Fratelli d’Italia (partido com profundas raízes fascistas) tem protagonizado uma posição moderada que levou Mário Monti, ex-Comissário europeu, a dizer: “olhei atentamente para as relações deste governo (de Itália) com a UE, e apraz-me dizer que a atitude me parece positiva”. Este moldar de Meloni às circunstâncias vai ser um trunfo no aprofundamento da sua influência na UE, nos próximos cinco anos. Pensando melhor já está a sê-lo, tanto que Von der Leyen, candidata a segundo mandato da Comissão europeia pelo PPE lhe anda a “mendigar” apoio à sua candidatura, o que não é nada inocente, perfilhando-se neste comportamento uma aliança, mais formal/menos formal, em detrimento do grupo das forças socialistas europeias (S&D).

E não nos podemos esquecer que a construção da União Europeia tem sido, no essencial, um produto da democracia-cristã e das forças sociais-democratas com o que tem de bom e de mau e que, nestas eleições, com von der Leyen candidata a um segundo mandato, se perfila secundarizar o eixo social-democrata, cozinhando um entendimento da direita com a extrema-direita.

3. Mas a União Europeia está em declínio escorregadio, com efeitos de longo prazo preocupantes, tanto mais que os estrangulamentos estruturais são difíceis de remover. Alguns estudos de prospectiva sinalizam que só com mudanças de paradigma no modelo de crescimento, a UE poderá recuperar. Como se referiu no último artigo, no horizonte de 2050, se nada for feito em contrário, o peso da União europeia no PIB mundial será de 15%, quando em 2022 era de 21,5%. Uma perda significava a traduzir-se em empobrecimento das pessoas da zona UE.

Much More Than a Market – Enrico Letta

Li recentemente um relatório da autoria de Enrico Letta, antigo primeiro-ministro de Itália e hoje presidente do Instituto Jacques Delors, feito a pedido da União europeia (Conselho e Presidência da Comissão) sobre o estado do mercado único europeu.

O relatório não trata todas as variáveis importantes de um modelo alternativo de crescimento económico. Mas aborda muitas áreas da competitividade da economia. E várias vezes releva que o mercado único, uma ideia de Delors, foi concebido para os cidadãos, que são o seu centro.

Para Enrico Letta, o mercado único europeu está longe de ser construído. E não está por vontade dos grandes países europeus que julgavam não precisarem da dimensão europeia, que a sua própria dimensão bastava. Trinta anos depois, continuamos a ter 27 mercados e dá, como exemplo, três sectores chave: a energia, as telecomunicações e os mercados financeiros, alicerces base de qualquer economia em que, na realidade, existe um mercado por cada Estado-membro. Os países membros acordaram tardiamente para estas matérias e quando se aperceberam de que não tinham escala para competir, aí perceberam que recuperar terreno, não sendo impossível, se torna uma extrema dificuldade.

O facto do mercado de capitais não se ter desenvolvido trouxe um problema adicional a toda a economia dos países, o do financiamento, que é curto na União europeia, mais ainda com os países ditos “frugais” a obstaculizar a criação de eurobonds, o que prejudica sobretudo os países mais débeis.

O debate público de preparação – eleições 2024

Na campanha eleitoral até se falou de problemas europeus mais que o costume. Mas pela rama, não indo ao âmago das questões estruturantes como o mercado único europeu, fiscalidade, questões climáticas e demográficas. Pouco se falou da inovação e ciência, da qualidade do ensino: duas áreas-chave para a competitividade em que a União europeia está em perda deslizante face aos seus concorrentes e sem vencer esse fosso nada feito. E, por vezes, o fosso vai se aprofundando muito por falta de organização. Uma vez mais, cada país anda a fazer ciência, desligado.

Sobre nada disto se deixaram os devidos alertas e a sociedade portuguesa ficou sem saber os verdadeiros constrangimentos que paralisam os avanços na União europeia e o que cada força concorrente pensa para os ultrapassar. Será que os candidatos não leram documentos fundamentais como o do mercado único, nem ficaram incomodados por

exemplo com o discurso de Macron no 25 de Abril na Sorbonne a alertar para se a UE não mudar de políticas corre para o “suicídio”?! De pouco se falou bem.

Não se ouviu dizer que a União europeia precisa de inflectir a sua demografia, nem de uma nova política económica, nem da reforma do mercado de capitais, nem da harmonização fiscal para evitar distorções de competitividade entre países membros.

Uma Europa futura e de progresso precisa de modificar profundamente a filosofia da sua política económica. Muita mudança tem de haver, mas não se sente vontade política de abraçar esse caminho.