NOTA PRÉVIA
A edição de hoje do DN-Madeira, em um excelente trabalho do jornalista Ricardo Duarte Freitas, desenvolve três páginas sobre a extinção da cabra do Bugio, com o sugestivo título: "Da salvação à extinção em apenas seis anos". Vale a pena a sua leitura. O texto levou-me a reler um artigo do Engº Henrique Costa Neves, publicado no dia 14 de Abril de 2019. Entre este artigo e a posição do porta-voz da secretaria regional da Agricultura e Pescas existe uma insanável contradição, uma vez que é, laconicamente, sublinhado que "não se trata de um animal de interesse genético". O secretário regional Humberto Vasconcelos deve explicar esta situação.
Por
Engº Henrique Costa Neves
Noutros tempos ainda recentes, intervenções desta natureza, eram obrigatoriamente trazidas à apreciação de um colégio de vários especialistas.
Não poderia ficar indiferente ao teor e a algumas das declarações proferidas por um responsável do IFCN, relativas à extinção da cabra do Bugio, na edição do D.N. de 9 de Abril.
Denota-se, na entrevista, uma clara intenção em fazer confundir as realidades patentes na Deserta Grande e no Bugio, com particular ênfase na fauna introduzida, nomeadamente as cabras. No entanto, as duas ilhas muito pouco têm em comum, a não ser o facto de serem de origem vulcânica.
A Deserta Grande foi, desde os primórdios da colonização do arquipélago da Madeira, um alvo continuado da presença humana, começando desde logo por uma intenção clara de povoamento. Foram, lá, introduzidos coelhos e cabras de origem doméstica, procedeu-se ao cultivo de cereais e à plantação de vinha, e também se semeou um pinhal que se veio a desenvolver, para além de vacas e ovelhas que pastaram no vale da Castanheira. No litoral, na zona da Doca, construíu-se um pequeno oráculo, onde celebrava missa um padre que se deslocava regularmente da Madeira para prestar apoio espiritual aos poucos habitantes da Deserta Grande.
Desses tempos, restam alguns currais construídos em pedra arrumada, uma notável eira e uma cisterna que continua a cumprir a sua missão no topo da Deserta Grande.
Há também o fabuloso relato de um ataque de corsários àquela ilha, e da forma como foram repelidos pelos habitantes com o arremesso de pedras pelas encostas.
Na ilha do Bugio, de orografia muito difícil e em nada comparável à da Deserta Grande, desprovida de ancoradouros viáveis, os relatos históricos não se lhe dão conta do desenvolvimento de grandes actividades humanas, com excepção da apanha de Urzela (espécie de líquen outrora muito procurado para tinturaria), nas perigosas escarpas rochosas, onde, segundo consta, alguns homens perderam a vida, no decurso daquela perigosa actividade, em tão inóspitas paragens.
Data do Séc. XV, a introdução no Bugio de cabras oriundas das Canárias, conforme se pode ler no assento da Câmara Municipal do Funchal datado de 28 de Julho de 1481, e que se refere a “cabrestos selvagens das Canárias”. À data, tudo indica tratar-se da cabra Pré-Hispânica, existente em algumas das ilhas daquele arquipélago vizinho e entretanto tornadas extintas ao longo do processo de colonização. Repare-se na particularidade da introdução de cabras selvagens vindas de longe, e não ao recurso à cabra doméstica já existente na Madeira, ou mesmo na Deserta Grande, bem ali ao lado.
A cabra do Bugio permaneceu imperturbavelmente isolada ao longo de mais de cinco séculos, vindo a constituir-se como um património genético muito provavelmente único a nível mundial.
Foram várias as oportunidades que tive de estar bem próximo deste imponente e nobre animal. A pelagem negra, hirsuta, era comum a todos os animais, que apresentavam também calosidades impressionantes nos joelhos numa clara adaptação ao seu deslocamento no escarpado terreno onde habitavam. Mas, a característica mais espantosa, residia no facto de possuírem a garupa descaída, adaptação secular que lhes permitia baixar o centro de gravidade para melhor se equilibrarem nos escarpados abismos. Perfeitamente adaptadas à secura quase extrema, apenas dispunham de água doce por ocasião das escassas chuvas ou dos orvalhos matinais.
E eis que no dealbar do Séc. XXI, uns quantos “cientistas” deliberaram pelo seu extermínio, em prol de uma suposta conservação da natureza. Que paradoxo mais bizarro!
Pelo que li na citada entrevista, deu para entender que se tratou de uma acção deliberada, recorrendo-se a argumentos, no mínimo, intelectualmente desonestos. Noutros tempos ainda recentes, intervenções desta natureza, eram obrigatoriamente trazidas à apreciação de um colégio de vários especialistas, que constituíam o Conselho Científico, pelo que seria de todo interessante saber-se da posição desses especialistas no caso em apreço...
As gerações vindouras, quando ouvirem falar da cabra do Bugio, têm pelo menos a oportunidade de apreciar o único animal existente – embalsamado no Museu Municipal do Funchal.
No pedestal onde o colocaram, deveria ler-se o seguinte epitáfio: “Extinto a nível mundial no início do Séc. XXI, no âmbito de acções de conservação da natureza financiadas com fundos europeus”.
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