Ontem, senti vergonha. Fiquei preso à TVI, porque, independentemente dos temas abordados e distante dos casos apresentados, toda aquela narrativa conjugada com os testemunhos, transportou-me à vivência de 45 anos de um regime político, cuja democracia, facilmente se prova que se ficou pelos sucessivos actos eleitorais. Em pouco mais de trinta minutos assisti à teia montada, aos interesses em jogo, à prevalência na defesa de uns relativamente aos demais, aos milhões que se jogam por cima e sob a mesa, em redor da qual se sentam convivas alinhados, os subterfúgios discursivos e as formas como se corrompe sem a maioria dar por isso. Fez-me lembrar um ex-deputado que me contactou, no sentido de questionar-me se eu alinhava em uma proposta no sentido de limitar as representações parlamentares apenas a quem conseguisse, nas urnas, o voto de 5% dos eleitores. Disse-lhe que não, porque isso significaria, no actual contexto, retirar da Assembleia a voz das minorias. Percebi ao que vinha. Eliminar as margens para tornar mais fácil o jogo sujo dos maiores! E disse-lhe mais: já pensaste nas repercussões públicas de uma iniciativa dessas? Replicou: quem, quem, cinco mil gajos, cinco mil! A conversa ficou por ali: adeus, meu caro, não contes comigo enquanto for líder do grupo parlamentar, sublinhei.
São os jogos desta natureza e muitos outros, de complexidade maior, extremamente camuflados, com regras juridicamente arquitectadas em gabinetes de topo, que funcionam fora do radar da população, que tornam o poder apetecível, porque, indirectamente, são potencialmente geradores de riquezas mal explicadas. Ora, assistir, no plano nacional, ao nome da Madeira, completamente enxovalhado por atitudes políticas que os vários Tribunais, enquanto órgãos de soberania, explicaram e decidiram pela ausência de honestidade e concluir que um cidadão, condenado seja lá porque for, tem prazos e deveres para cumprir de acordo com a Justiça e que, paradoxalmente, um governo, que deveria ser exemplo e referência maior, pura e simplesmente não cumpre, repito, encheu-me de vergonha. Qualquer sujeito de bom senso, mesmo que partidário, defendo eu, deve repudiar qualquer simulacro de democracia, a desonestidade, este desenho de peças que se entreajudam, com fatinhos feitos por medida, ora agora para este, ora para aquele, possibilitando aos grupos que vindos do nada, ganhem espaço e imponham as suas lógicas de funcionamento.
Não está em causa a ambição empresarial, a inovação, o sentido de risco, a criação de riqueza e a sua natural distribuição, está sim em causa, o compadrio, a mesa do orçamento público, a negociata, a cultura disseminada que conduz a inúmeros silêncios cúmplices, a engrenagem, o pensamento que é melhor estar com estes do que com aqueles, os lucros das práxis promíscuas, está em causa, enfim, a lógica do ajuda-me que eu te ajudarei na perpetuação da tua cadeira de poder.
Em um contexto destes, sensível há dezenas de anos, sustentado no come e cala-te, onde é dito sem dizer, ou entras no rebanho ou tramas-te, onde o primeiro órgão de governo próprio não é mais do que uma caixa de ressonância e de aprovação da bodega alimentada fora do hemiciclo, chega-se a um ponto de desencanto e de grito. Do que assisti ontem, para além dos nebulosos e conhecidos casos, que não comento, fica certeza da existência de inúmeras pontas soltas em uma democracia de fachada que deveriam ser investigadas, custasse o que custasse e doesse a quem doesse.
O problema é que vejo, sentados à porta do banquete, gente a querer juntar os trapinhos, por conveniência, para que o festim continue.
Ilustração: Google Imagens.
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