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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

“Take back control” para quem?


Por estatuadesal
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário,
29/08/2019


Há excelentes argumentos democráticos contra o que é hoje a União Europeia. Quem não se choca ao ver não eleitos com o poder de vetar Orçamentos de Estado aprovados por deputados não acredita na democracia parlamentar. Quem não se incomoda ao ver a União destruir as suas próprias encenações pseudodemocráticas, quando promove um debate entre supostos candidatos a presidentes da Comissão Europeia sem que nenhum deles seja depois escolhido, gosta de ser tomado por tonto. As falhas democráticas da UE são tão grosseiras e nascem de equívocos tão profundos sobre a capacidade de elites vanguardistas construírem em gabinetes democracias e povos que qualquer democrata exigente tem de ser, no mínimo, eurocrítico.

Qualquer pessoa que tenha assistido ao debate sobre o Brexit, em que ao discurso do medo perante a imigração se respondeu com o discurso do medo perante as consequências da saída, sem restar nada de positivo para defender, sabe que nunca foi a questão democrática que esteve em cima da mesa. E podia ter sido. Não faltava assunto, atropelo e perigo vindo de instituições dominadas por burocratas e por políticos que fogem ao escrutínio democrático. O mote de um discurso eurocético democrático até podia ser o mesmo que foi usado pelos xenófobos: “Take back control”. Mas isso era se o objetivo fosse devolver ao povo o controlo das suas vidas, o que implica o controlo da soberania democrática, seja lá a escala em que a política se faz. As mentiras da campanha e o discurso que escolheu os imigrantes como inimigos deixaram claro que essa não era a questão. Esse não era o controlo. Essa não era a soberania.

O primeiro gesto de Boris Johnson não foi devolver aos povos do Reino Unido o poder sobre o seu destino. Foi tirar-lhes esse controlo. Custa governar com esta contrariedade democrática? Claro. Mais do que dirigir uma campanha demagógica

Para quem tivesse dúvidas sobre a irrelevância de qualquer preocupação democrática de Boris Johnson, tudo ficou mais evidente esta semana. O seu primeiro gesto não foi devolver aos povos do Reino Unido o poder sobre o seu destino. Foi tirar-lhes esse controlo. A suspensão do Parlamento, como atalho para tentar tornar inevitável um Brexit sem acordo, deixa claro que Boris não queria devolver o controlo aos britânicos, queria ter ele o controlo sobre os britânicos. Toda a diatribe de Nigel Farage e do próprio Boris Johnson contra os atropelos aos valores democráticos e parlamentares, que se não saísse de bocas tão impróprias até poderia ser subscrita por verdadeiros democratas, fica agora exposta como puro cinismo.
Boris Johnson não respeita mais o Parlamento britânico do que qualquer burocrata sentado em Bruxelas. Respeita menos. Num país que não tem uma Constituição escrita, o mais relevante não é se a coisa é legal ou ilegal, assim como o mais relevante nos atropelos ao espírito democrático por parte das instituições europeias não é o que está escrito nos tratados. É a política. E ficou claro o que quer Boris Johnson.
Disse, e não me arrependo, que ele é o melhor primeiro-ministro para liderar o Brexit: porque é quem o defendeu que tem o dever de o aplicar. Espero que as instituições do Reino Unido sejam suficientemente firmes para o impedir de seguir qualquer atalho. É respeitando as regras democráticas que Boris terá de percorrer o caminho que propôs aos britânicos. Sem recorrer aos mesmos estratagemas, em versão piorada, que tão violentamente criticou na Europa. Não queria devolver o controlo ao povo? Pois o povo é legitimamente representado pelo Parlamento que lhe deu a maioria para governar. Custa governar com esta contrariedade democrática? Claro. Mais do que dirigir uma campanha demagógica.

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