Por estatuadesal
António Guerreiro,
in Público,
06/09/2019
Nos jornais e em todos os meios de comunicação e amplificação anuncia-se uma crise que aí vem, não se sabe quando, mas já está — como dizer? — em processo de iminência. Esta é uma expressão absurda, bem sei, porque iminente é o que está a atingir o ponto de catástrofe onde se dá a passagem para outro plano qualitativo, descontínuo.
Mas a verdade é que não há crise que, num actualizado dicionário das ideias feitas, não precise de ser definida com esta indicação: “Mal se começa a dar por ela, já ela é iminente.” Por enquanto, a crise por vir só se manifesta através de sintomas (não esqueçamos que na história semântica do conceito de crise há inicialmente um significado médico) que se oferecem à tarefa de decifração por gente com comprovadas competências semióticas: uma curva descendente subtil no gráfico das exportações, uma inflexão disfórica da linha das importações, uma desaceleração algures a indicar que já não se está a deslizar da mesma maneira no caminho do crescimento, isto é, do progresso, etc. São índices que não passam despercebidos aos historiadores indiciários do tempo por vir, que outrora eram chamados profetas. E eu acredito neles, sem que me ocorra sequer a ideia de formular reservas como as que os doutores da Igreja teoricamente formulavam (às vezes em exercícios teológicos requintadíssimos) sobre a existência e os poderes de Deus. E acredito por duas razões fundamentais: porque ao tempo vazio de crise sempre se sucedeu o tempo pleno de crise, sabemo-lo por experiência própria e porque hoje somos todos especialistas em crítica da economia política, o que significa que somos todos marxianos, mesmo — ou sobretudo — quando não somos marxistas; e porque a crise advém por uma lógica performativa, as palavras que descrevem a sua vinda iminente, se são pronunciadas por quem tem uma reconhecida autoridade (e quem tem mais voz e autoridade do que os media, na esfera pública alargada?), praticam um acto, realizam a crise que anunciam.
Só nos resta, portanto, esperar com paciência que ela se instale, até porque a vida sem crise económica é o tédio, a monotonia, o spleen. Seria mesmo o tempo homogéneo e vazio, para usar uma expressão com pergaminhos, se não houvesse crises suficientes, noutros planos da história universal, para nos entreter. Mas aquilo de que gosto menos é do lado perverso e enviesado destes adivinhos que nunca correm o risco de se enganar. Na verdade, para serem sinceros, eles deviam dizer que adoram as crises, que o tempo da não-crise deve ser gerido com uma voluntária severidade crítica para ficarmos treinados e imunizados contra a obrigatória severidade a que a crise por vir obriga. Em suma: a crise deve ser a regra em que vivemos sempre, sem interrupções. Bem vistas as coisas, a grande maioria da população nunca conheceu outro estado, de maneira que estas oscilações, para ela, não passam de um complexo que está para lá da sua experiência, digamos, superestrutural. Já agora: porque é que para certas classes a superestrutura coincide completamente com a infra-estrutura? Eis um questão pouco compatível com um marxismo ortodoxo e vulgar.
O conceito económico da crise anulou o seu conceito médico e o seu conceito teológico (quem se lembra hoje, a não ser um reputado filósofo arqueólogo, da sua relação com o Juízo Final?). A única crise que existe é a económica e nem convém que ela seja declinada noutros domínios. É por ela que clamam os semiólogos performativos quando ela se ausenta temporariamente. É que se não houver a crise como figura de invocação não é tão fácil impor a política que lhe corresponde, segundo um programa que todos conhecemos. Em suma: sem crise não é possível governar, de acordo com o sentido que as palavras “governo” e “governar” hoje têm.
A crise tornou-se assim um instrumento salvífico que, embora esteja sempre presente, tem momentos em que a sua acção fica atenuada. E então o que é preciso é apelar à sua iminência, para que tudo continue a ser como sempre foi. Quem diria que a crise haveria de se tornar não a alteração abrupta ou mesmo catastrófica de uma ordem, mas o garante dessa ordem?
Livro de Recitações
“De regresso das férias? Temos dez ideias para não deprimir. ”
In PÚBLICO,
Ao contrário do que reza um discurso muito voluntarista e também muito ideológico em que o trabalho é sempre digno dos maiores louvores, a verdade é que o trabalho, hoje, não é um valor nem um antivalor. Já nem sequer vale dizer que “o trabalho cansa”, porque, na verdade, nos modos como é hoje praticado, ele deprime, causa distúrbios psicológicos, paralisa, coloca grande parte da população trabalhadora a recitar uma interrogação: “Como é que eu saio disto?” Na história do trabalho, deu-se, num tempo ainda próximo de nós, uma transformação dos efeitos do trabalho como corveia: quando ele deixou de provocar, em geral, malefícios físicos selectivos, passou a provocar malefícios psicológicos generalizados. De maneira que actualmente até os directores das empresas e a alta burguesia assalariada estão ameaçados pelo burnout, que é o nome inglês de uma síndrome universal, ao mesmo tempo trágica e cómica, como se pode ver pelo título acima citado.
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