Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso
25/04/2020
1 Em 2008 e nos anos que se seguiram, tivemos todos de tirar um curso apressado de finanças públicas, gestão de défice, de dívida, mercados, austeridade. Desta vez, estamos em aulas intensivas de epidemiologia, infecciologia, saúde pública, matemática aplicada ou gestão hospitalar. De manhã à noite, ouvimos e lemos todos os especialistas de todas as áreas envolvidas, de todos os países, de todos os hospitais, de todas as Universidades, médicos, técnicos, cientistas, investigadores, e, em relação às questões essenciais, quase tudo permanece por esclarecer: é melhor a estratégia de contenção inicial à viva força ou a rápida obtenção da imunidade de grupo, através da contaminação livre de grande parte da população? Que medicamentos, dos existentes, são, de facto, eficazes, e em que fase, para conter a progressão da doença? Quanto tempo dura a fase de contágio? Os ditos recuperados podem voltar a ficar infectados?
Nunca tantos procuraram tanto e souberam tão pouco. E foi citando Churchill, após a Inglaterra ter ganho a primeira batalha contra a Alemanha, a meio da II Guerra, que Bill Gates — talvez o ser mais inteligente e mais útil do planeta (e que previu e avisou contra uma pandemia assim, em 2015) — resumiu acertadamente a situação em que estamos: “Ainda não é o princípio do fim, mas talvez o fim do princípio.” Para Bill Gates, há uma má e uma boa perspectiva. A má é que o Monstro só será dominado quando estiver disponível para a maior parte da Humanidade uma vacina eficaz, e isso não acontecerá tão cedo; a boa é que, depois disso, o mundo evoluirá para melhor, haverá melhores instituições internacionais, melhor espírito de cooperação e maiores avanços científicos partilhados.
2 Certas coisas, porém, nunca mudarão e, se calhar, como dizia o Príncipe de Salina, até é bom que assim seja. Por exemplo: no meio deste sufoco do coronavírus, até quase me passava despercebido o 150º aniversário do nascimento de um dos maiores malfeitores políticos da História: Vladimir Ilitch Ulianov, de seu nome. Não fosse a notícia de que Putin tinha aberto uma excepção ao estado de emergência em vigor na Rússia para autorizar os nostálgicos do PCUS a desfilarem na Praça Vermelha perante a mais célebre múmia conservada até aos nossos dias, a seguir à de Tutankhamon, e eu nem tinha dado por nada. Mas a data não escapou, claro, ao nosso PCP: Jerónimo de Sousa gravou um vídeo a proclamar a eterna lealdade dos comunistas portugueses a Lenine, essa “bússola para a orientação da nossa actividade”. 150 anos depois, e nada mudou. Mesmo no meio de uma catástrofe de saúde pública e de uma correspondente catástrofe económica, com as empresas paradas e fechadas por falta de procura e de mercado consumidor, a bússola leninista que orienta Jerónimo de Sousa em qualquer momento ou circunstância diz-lhe que não há nada de novo aqui: é uma ofensiva do “grande patronato, com toda a espécie de arbitrariedades, que tem de ser contrariada com opções que evitem o agravamento da exploração e do empobrecimento”. Venham daí as opções, caro Jerónimo de Sousa! Na certeza, porém, de que, não havendo almoços grátis e não nascendo o dinheiro debaixo da mesa, alguém terá de pagar a conta, no final. Seria interessante que explicasse quem pagará e como. Da mesma maneira que já vi dito que todo este dinheiro que o Estado agora terá de pedir emprestado jamais será pago. E eu pergunto: e, se assim é, quem é o que o vai emprestar?
3 Não é só o PCP que acha que não há razão alguma para pensar diferente do que sempre fez. A Ryanair, por exemplo, diz que se a obrigarem a voar com os aviões preenchidos só a 66%, o seu negócio não é rentável. A rentabilidade do negócio depende de aviões sempre a rebentar pelas costuras, tripulações sempre a voar no limite das horas, passageiros tratados como gado, prioridade de atendimento e tempos de espera mínimo nos aeroportos, e taxas mais baratas em troca da frequência dos voos. Em contrapartida, esta e as outras low cost proporcionam a milhões de passageiros a possibilidade, que de outra forma não teriam, de viajar a custos acessíveis. O seu negócio é a quantidade e não a qualidade. Mas os custos indirectos que acarretam, e que nunca são falados, são imensos: não apenas a poluição que acrescentam, mas também os novos aeroportos, como o do Montijo, que se tornam necessários por sua causa, ou a massificação turística das cidades para que contribuem decisivamente e que é um excelente negócio para a hotelaria e uma péssima existência para os habitantes locais.
Entre um mundo governado por um cientista ou por um estadista, eu prefiro sem hesitar o do estadista. Porque não basta salvar a espécie humana, é preciso que, no final, ela se mantenha humana nos seus valores
A questão que se vai pôr já de seguida, e a uma escala global, é que tipo de recuperação económica queremos e vamos ter. Empresas e empresários como a Ryanair e Paul Ryan vão defender e pressionar para que se regresse imediatamente ao business as usual, garantindo, e talvez com razão, que essa é a forma de assegurar uma recuperação rápida. Porém, há uma grande diferença: agora sabemos. Agora, ninguém pode dizer que não sabe, que não viu, que não aprendeu nada. Acreditar que podemos continuar a ter 14 milhões de pessoas em 230 mil voos nos céus todos os dias, que podemos continuar despreocupadamente a queimar recursos naturais que sabemos ser finitos e a envenenar o ar que respiramos, que podemos continuar indiferentes à sorte de milhões de pessoas que ainda morrem de fome no mundo enquanto tantos vivem no luxo e no desperdício, é acreditar que, depois disto passar, tudo ficará apenas como um susto e não como uma lição.
Talvez ingenuamente, eu acredito que desta vez vamos — as pessoas comuns, os consumidores comuns — querer ter uma palavra a dizer. Que não vamos ser carne para canhão, destinatários obedientes e amorfos de escolhas e gostos que outros fizeram em nosso nome e de que nos convenceram que não poderíamos absolutamente prescindir. Que vamos querer menos e que menos pode ser melhor. Que vamos querer estar mais bem informados, reflectir mais, olhar com olhos de ver, e que, uma vez que já aprendemos que por mais urgente que tudo seja, o tempo pode sempre ser suspenso, vamos ter menos pressa e mais tempo.
4 E ainda vamos ter saudades de Angela Merkel. Ela evoluiu muito desde 2008 e, agora, liberta daquele seu sinistro doutor Schäuble — que fazia lembrar o general Millán-Astray, do “Viva la muerte!” — Merkel tornou-se simultaneamente mais humana e mais inteligente. E, logo, mais estadista — talvez o único estadista de uma Europa voluntariamente pequena. No Bundestag, na véspera do Conselho Europeu, ao mesmo tempo que fazia o seu discurso “sangue, suor e lágrimas” aos alemães, dizia-lhes também que esta era a hora de “mostrar quem somos e quem queremos ser na Europa”. Mas não chegou para convencer os que acham que a Europa só lhes interessa como mercado único e território de caça fiscal: Holanda, Finlândia, Áustria e Suécia. Pessoalmente, tenho pena pela Suécia, que é um grande país, de notável gente. Os outros não interessam para nada: a minha ideia de Europa passava bem sem eles.
5 Regresso ao princípio: ninguém sabe. Ninguém sabe como isto acaba e nem sequer se acaba bem. Sendo que há diversas formas de acabar mal e acabar bem. A solução está na mão dos investigadores e dos cientistas, de quem todos esperamos a tão ansiada vacina. Mas isso não quer dizer, ao contrário do que já vi escrito, que a crise devesse ser gerida por cientistas e não por políticos.
É justamente o contrário: não há crise mais política do que esta, em todos os aspectos que comporta. E, se dúvidas eu tivesse, elas desfizeram-se ao ler aqui, na semana passada, a entrevista à cientista Maria Manuel Mota, Prémio Pessoa, Prémio Pasteur, comendadora do Infante D. Henrique, etc. Diz ela que este é “um vírus bonzinho” porque só mata velhos e portanto a solução é trancar os velhos a sete chaves, proibi-los de ver os filhos e os netos, de sair à rua, de ter vida enquanto não houver vacina. O contrário, sustenta, daquilo que defendeu Angela Merkel, para quem não se pode libertar os jovens e os adultos e prender os velhos.
6 E, já agora, seria bom deixar de usar a horrível palavra idoso, que rima com ranhoso, sidoso, leproso, tuberculoso e outros estados a evitar. Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto que obriga a dizer recluso em lugar de preso, toxicodependente em lugar de viciado em drogas ou drogado, invisual em lugar de cego, arguido em lugar de réu, e que, no limite, levava a ex-Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a exigir ser tratada por “senhora Presidenta”, ou levou o partido espanhol de extrema-esquerda Unidos Podemos a mudar o nome para Unidas Podemos. Mas nem por isso deixa de ser ridículo, apenas o é mais: alguém diz “o meu idoso” em vez de “o meu velho”, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: “O Velho Que Lia Romances de Amor”, de Luis Sepúlveda, de que aqui falei a semana passada, passaria a “O idoso que lia romances de amor”; “O Velho e o Mar”, de Hemingway", passaria a “O idoso e o mar”; “Os Velhos Marinheiros”, de Jorge Amado, seriam “Os idosos marinheiros”, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no ‘idoso do Restelo’. Isto, para não rematar dizendo que “idosos são os trapos”. Tenham lá mais respeito pelos velhos!
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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