Por
Daniel Oliveira
Expresso - 08.04.2020
Passeando a minha cadela pelo centro de Lisboa, onde vivo, subindo e descendo as avenidas desertas, partilhando com todo o mundo a mesma insuportável solidão, vendo gente de máscara, reunindo-me com familiares por skype e olhando para os números estratosféricos da tragédia social que se adivinha, entro num dos muitos filmes distópicos que vi. Pressinto, pressentimos quase todos, a grandeza fundadora deste momento.
Ele será recordado como o momento em que muitas coisas mudaram. De pormenores do nosso quotidiano ao desenvolvimento tecnológico das empresas, da vigilância social ao peso do Estado, dos serviços de saúde aos poderes da polícia, da política à economia, da cultura às relações sociais. Uma experiência como esta – mais de 3,3 mil milhões de humanos enfiados em casa durante semanas – seguida de uma crise económica de dimensões que ainda mal conseguimos adivinhar, marca mesmo a História. Provoca ruturas.
É por pressentimos a grandeza fundadora deste momento que devemos ser cuidadosos com as verdades que fundamos quando o nomeamos. Ainda mais quando nos domina o medo, adubo poderoso de todas as tragédias. Isto não é uma “guerra”. Muitos estiveram dispostos a morrer contra o ódio hitleriano. Aqui estamos apenas dispostos a viver, mesmo que isso implique abdicarmos de alguns valores.
E é por isso que devemos ser cuidadosos com as verdades que fundamos quando nomeamos este momento. Ainda mais quando nos domina o medo, adubo poderoso de todas as tragédias. As palavras são sempre importantes, mas em tempos de enorme incerteza, em que não conseguimos nomear o que temos pela frente, elas transformam-se na própria realidade. E uma palavra tenebrosa tem saído da boca de políticos e jornalistas: “guerra.” Tudo o resto são declinações do vocabulário bélico: linha da frente, soldados, baixas, inimigo... Até as figuras que são usadas como modelo de liderança vêm desse imaginário.
Claro que isto não é uma guerra. O inimigo não é dotado de consciência ou agenda. Ele não chegará a ser derrotado, apenas integrado. Muitos estiveram dispostos a morrer contra o ódio hitleriano. Aqui estamos apenas dispostos a viver, mesmo que isso implique abdicarmos de alguns valores.
A questão não é o rigor da palavra, é o poder da palavra. Esta metáfora tem tudo para ganhar formas sinistras. Porque a própria pandemia tem um tremendo poder metafórico. O vírus estrangeiro vence-se fechando fronteiras, isolando humanos no seu núcleo familiar, cortando todos os contactos físicos de afeto e apelando à disciplina militar de toda a sociedade que se impõe a si mesma uma férrea contenção nas suas liberdades mais íntimas. Como todas as campanhas higienistas, parece um programa político. Esta “guerra” não se vence com bravura, mas com uma contenção social autorrepressiva, onde todos nos vigiamos, recusando a aproximação e reprovando o convívio social. Não me ocorre nada mais perigoso para nos pormos com metáforas. E temo que, saído do medo coletivo e quando se avizinha uma terrível crise, surja a incurável tendência da humanidade para a tirania sempre que sente que o chão lhe foge dos pés. É por isso que a palavra “guerra” tem de ser banida. Seria trágico que fosse ela a palavra fundadora do novo tempo.
E ela não tem de ser usada. Há imagens bem mais interessantes e construtivas, que também têm estado presentes neste momento. Imagens que sublinham a interajuda entre vizinhos, os serviços públicos como elemento central da coesão social de um país, a disciplina autoimposta por solidariedade com o outro, o apoio a outros países que lidam com a pandemia. Da solidariedade humana quando a natureza nos põe em perigo.
Mas ainda mais absurdo do que falar de “guerra” é falar de “economia de guerra”. Isto é exatamente o oposto à economia de guerra. Nessa, a produção de armamento substitui o resto da capacidade produtiva e, não raras vezes, garante crescimento económico e emprego. Agora, as pessoas foram obrigadas a fecharem-se em casa e a pararem de consumir e produzir.
Depois de uma guerra, vem a necessidade de reconstruir cidades e infraestruturas. São momentos de grande incentivo económico. Nos próximos anos, não haverá nada para reconstruir. Se a comparação com a guerra cria um pessimismo excessivo, a comparação com a economia de guerra alimenta um otimismo deslocado.
Claro que a “guerra” é apenas uma figura de estilo. Mas depois do vírus e das suas vítimas, sobrarão duas coisas: uma brutal crise económica e política e as palavras que darão sentido a este momento extraordinário. E que serão tão poderosas como as memórias pessoais. Porque são elas que moldam a memória coletiva. Pode ser a interajuda comunitária ou redescoberta de necessidade de termos um Estado com funções sociais. Ou pode ser a “guerra”. E a “guerra” calha muito bem a um vírus que reforça todos os fantasmas deste tempo: o medo do outro, a desmaterialização do afeto e o paradoxo de nos globalizarmos através do isolamento doméstico. “Fico em casa” seria o lema ideal para a heroica submissão do povo à tirania.
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