É uma das fotografias chocantes desta pandemia. O país que se vangloria da Liberdade e das oportunidades para todos, o país que possui um poderosíssimo arsenal bélico, que compra cientistas, explora o espaço e que se arvora em estandarte do planeta, é o país que enterra os seus cidadãos em valas comuns. Não todos, obviamente, mas sobretudo os pobres, os das margens sociais que, por múltiplas razões, entre outras, as de natureza económica, nem as famílias se "atrevem" a reclamar os corpos.
Tenho ainda presente a situação aterradora vivida e contada pelo enfermeiro Derrick Smith, de Nova York, a zona mais afectada nos Estados Unidos, face a um doente que precisava, desesperadamente, de um ventilador: "(...) As últimas palavras que nunca esquecerei", revelou-as, com natural amargura: "Quem vai pagar isso?", inquiriu o homem, a muito custo, por causa dos problemas respiratórios." (...) "[O paciente] estava com problemas respiratórios graves, tinha dificuldade em falar, mas, mesmo assim, a sua principal preocupação era quem iria pagar o procedimento que poderia ajudá-lo a viver", explicou o profissional de saúde.
Os factos que destaco colocam tudo em causa, dos direitos de um qualquer ser humano, aos deveres que deveriam ser constitucionais em um qualquer país minimamente decente. Não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o lado. Afinal, qual o valor da vida para alguns (muitos) líderes mundiais, pergunto? Os índices de Wall Street parecem estar em primeiro lugar!
Aqui mesmo ao lado, em Espanha (Madrid), onde o controlo da pandemia é dramática, acedi a um vídeo com uma desesperada mensagem, a qual, no essencial, um cidadão, em lágrimas, denuncia o facto de estarem a retirar ventiladores a maiores de 65 anos, alegadamente, para proteger os mais jovens. A declaração vai mais longe, mas não a transcrevo. Palavras que são negadas pelas autoridades e, sublinho eu, oxalá seja falsa, mas perante o mundo que estamos a viver e perante a incapacidade de resposta dos serviços de saúde, deixo-me ficar pelo enormíssimo dilema ético na decisão entre quem vive e quem morre. Tarde ou cedo saber-se-á da veracidade, mas não estranharei, a avaliar por Daniele Macchini, médico no hospital Humanitas Gavazzeni, em Bérgamo, Itália. Li: "(...) onde já se escolhem os doentes que se podem tratar. O relato termina com um apelo fortíssimo a um distanciamento social que é fundamental para conter a propagação".
Entretanto, ontem, com entusiasmo segui uma reveladora entrevista com a filósofa Marina Garcés, doutora em Filosofia, professora da Universidade Aberta da Catalunha. A páginas tantas, o jornalista questionou:
Cree que la crisis de la Covidien-19 ha mostrado la fragilidad del sistema?
Lo que nos muestra de manera muy cruda la crisis de la Covidien-19 es que el capitalismo global, que parece un sistema muy poderoso, se basa en grandes capas de precariedad económica, social, material, sanitaria… Es una precariedad individual y estructural, porque también afecta el estado en que se encuentran los servicios de atención pública en diferentes países del mundo. Es un sistema basado en la actividad y el crecimiento, pero cuando tiene una patología no puede detenerse, cuidarse ni cuidar de las vidas que cotidianamente expolia y explota. Tampoco las de aquellos que ha dejado al margen, como las personas mayores. Más que la fragilidad del sistema, lo que nos muestra es la desigualdad y la violencia social sobre la que funciona nuestra normalidad.
É óbvio que todo o mundo foi surpreendido por este dilacerante surto pandémico, face ao qual, pela sua dimensão, a generalidade dos países não estava preparada. Estou em crer que só lá mais para a frente, após vacinação, se conhecerão as causas e os efeitos devastadores em todos os sectores. Para já, aquilo que a filósofa Marina Garcés sublinha parece-me insofismável. O Covid-19 veio, de facto, uma vez mais, colocar a nu a generalizada precariedade nos serviços de acessibilidade e resposta aos direitos básicos das populações, em alguns casos, por razões ideológicas, mormente no quadro dos sistemas económico e financeiro, que conduzem à secundarização da importância do Estado naquilo que deveria constituir uma intransigente defesa dos direitos dos cidadãos; em outros, pela intencional globalização da pobreza (que, paradoxalmente, produz riquíssimos) que traz no seu bojo gritantes desigualdades. Melhor dizendo, apesar do vírus não escolher classes sociais, quem tem fortuna, tendencialmente, safa-se, quem não dispõe de meios (dinheiro e seguros), obviamente, sofre as consequências da injustiça social. Relembro o infectado que olhou para o enfermeiro: "Quem vai pagar isso?".
Dói, dói muito, mas assim vamos vivendo, de catástrofe, em catástrofe, mas sempre com o vil metal a nortear os comportamentos mais abstrusos.
Ilustração: Google Imagens.
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