Por
Clara Ferreira Alves,
in Expresso, 26/02/2021
Portugal é uma questão de fé. Já era, com o milagre, a azinheira e os três pastorinhos que nos iam salvar e que anunciaram, a sobreviva, a conversão da Rússia. Como se vê, a Rússia converteu-se ao capitalismo. Viver em Portugal, se queremos estar confortáveis, significa abolir a dúvida e deixar a crença instalar-se. Mais do que a benzodiazepina, que faz mal à cabeça, o que se pretende é um programa de fé, começando por acreditar em tudo o que nos prometem, tudo o que nos explicam, tudo o que nos adiantam e tudo o que nos atrasa. Acreditar, eis a palavra. Este processo tem diversas fases de habituação e deve ser iniciado com a experimentação da abolição da dúvida sobre pequenas coisas, pequenos temas, minudências e excrescências.
Como no Direito, os casos práticos são o teste à vontade de acreditar, ao desejo de pegar em rosas mentirosas sem picar os dedos.
Por exemplo, comecemos por acreditar em tudo o que dizem em Portugal certos representantes que transportam o apelido Loureiro. Chamem-se eles Manuel, Valentim, João, o que quer que seja. Se é Loureiro é, deverá ser, certificado e verdadeiro. O João Loureiro, dirigente desportivo de um clube do Norte, diz que apanhou uma boleia para o Brasil num jato privado que depois se veio a saber transportava meia tonelada de cocaína no porão. O Loureiro certifica que só ia ao Brasil a uma entrevista de emprego de consultoria, e mesmo assim porque lhe ofereceram lugar no avião ao lado de um espanhol suspeito de tráfico em que a nossa Polícia Judiciária andava “de olho”. Logo esta expressão, andar de olho em cima de alguém, é deliciosa. Congratulemo-nos. Apesar do olho, os dois passageiros viajaram sossegadamente, podem ter trocado algumas palavras sobre um espumante ou uma cava, comentando, apesar da proibição de viajar para o Brasil, afinal sempre se pode dar um salto a São Paulo e Salvador porque ninguém maça. Isto, apesar do olho.
O Brasil costuma ser um país agradável para se viajar em pandemia, mas a Polícia brasileira estragou tudo com uma inspeção que revelou a meia tonelada de droga. Ora, como ia o nosso Loureiro saber do porão? Porventura, uma pessoa que viaja num jatinho, ainda por cima à borla e de boleia, vai inquirir sobre a carga? Ouça lá, aquilo que estão a carregar são as malas do espanhol? Porque eu só trago mala de cabina. É muita mala. Não, não, são uns pastéis de Belém para a família no Brasil. Um azeite português, e umas garrafas de Douro, colheita escolhida. E uns Rioja mais uns Pata Negra, no Brasil apreciam muito o enchido e o fumado ibérico. O nosso Loureiro disse logo, não tenho nada a ver com este filme, apesar de interrogado. Queria ser repatriado, mas parece que não lhe deram lugar no voo “humanitário” da TAP, onde decerto virá mais gente que só foi ao Brasil entregar um farnel. A variante já cá está, não vale a pena estar com imposições. Acreditemos que o Loureiro está inocente, presumidamente, e o resto alegadamente, e nem sabe o que é cocaína e muito menos benzoilmetilecgonina. No Norte, basta a palavra de um homem.
Segundo caso prático, mais complexo. A União Europeia quer que acreditemos que fez tudo bem e que em nome do ideal europeu teve de comprar vacinas para os 27 tentando um preço de saldo e por atacado, à dúzia é mais barato. No regateio, não acertou no shot, perdeu a vez na fila e agora estamos todos à espera de Godot e que se terminem de construir as fábricas de vacinas, rapidíssimas de construir. Um dubitativo diria duas coisas. Primeira, a Europa já nos pediu muitas coisas, entre elas que deixássemos de viver acima das nossas possibilidades de país mais pobre e desigual da Europa Ocidental, o género de país onde as crianças para comerem têm de ir à escola e dormem em casas geladas e gretadas, mas nunca nos tinha pedido para sacrificarmos a vida pelo ideal europeu. Para manter os 27 coesos, coisa que não aconteceu nem acontecerá, vocês têm de aturar mais uns milhares de mortos e de doentes até acertarmos a vacina.
Segunda coisa, no caso português, como somos um pequeno país, Bruxelas quer que acreditemos que se não fosse a Europa íamos estar anos à espera da vacina. Qualquer lista de países adiantados na vacinação nos diz o contrário, que os pequenos países teriam maior flexibilidade e, se tivessem planeado antecipadamente, e pago, coisa que detestamos fazer, pagar, teriam a população vacinada muito antes dos grandes países. Ora, há que acreditar na Europa, mesmo sabendo que o preço é elevado desta vez, a vida e a liberdade pelo ideal europeu.
E há que acreditar que, tendo nós os governantes que temos, mais os milhares de “especialistas” e diretores, se dependesse desta gente comprar a vacina e pagá-la a tempo e horas, planear decentemente, pagar, nem em 2025 tínhamos a primeira pica.
Planear não faz parte do nosso ethos, e pagar ainda menos. Uma borla é, como a raspadinha, o sonho de todos os portugueses. Desprezar uma borla, mesmo arriscando vidas, é insuportável. Acreditemos que é melhor assim, e sempre se salva o ideal europeu que acaba de decidir que não compra vacinas aos russos porque eles humilharam um europeu de Bruxelas chamado Borrell, que parece que fez uma viagem estúpida a Moscovo sem ninguém lhe mandar. Não, não é por causa do Navalny. É por causa do burocrata Borrell, e da humilhação, e acreditemos que Bruxelas sabe o que que faz. Fique em casa.
Por último, a fé ilumina-se com mais uma injeção de capital. Desde o império que Portugal vive embasbacado com as injeções de capital. Como diria o Palma Cavalão do Eça, um belo tipo de português, já cá canta o dinheirinho. O Costa deu-nos a bazuca, agora também chamada de vitamina, e um PRR. Dantes havia o PPR, uma poupança para descontar nos impostos e injetar capital na pátria e na banca, e agora vem aí o PRR, o Plano de Recuperação e Resiliência. Dinheiro fresco e abundante a ser repartido pelo Estado e os artilheiros do PS em “projetos”.
Precisamos de projetos, projetos de futuro, e projetos sustentáveis, e projetos bonitos, e precisamos de os executar. E tudo muito verde e tal e coisa. Ora coisa em que nunca fomos bons é em projetos e em executar, sobretudo executar projetos que não passam de um conjunto de boas ideias, vulgo fantasias. A nossa especialidade é vender as pratas. No cansaço das arruinadas almas lusitanas, temos de acreditar que pela primeira vez na História desde os Lencastre e a Ínclita Geração vamos arranjar energias para planear e executar. Com rigor e probidade. E sem aproveitar a borla para comprar o segundo BMW ou o Mercedes. Alguém acredita nisto? Não. Mas a bazuca, que Costa nos oferece agora em vídeo, chegou aos ecrãs nacionais. E não custa nada. É um vídeo de borla. Ora, se é de borla, acreditemos que vale a pena, como dizia Rimbaud, perder por delicadeza a vida. A fé é que nos sustenta. E o ideal europeu. E o dinheirinho.
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