Nasci quatro anos depois de terminada a II Grande Guerra Mundial. Tempos obviamente difíceis para todos, particularmente para os povos insulanos que viveram a guerra, mas também as históricas insuficiências de uma terra onde tudo faltava. Não apenas as infra-estruturas, mas tudo! A pobreza, a mais rude e penosa, era paisagem. Há excelentes documentos de historiadores que narram a dureza social de tais tempos, também marcados pelos senhores da terra. Jorrou sangue de escravidão. Isto para dizer que as famílias faziam das tripas coração para viverem ou sobreviverem. Mas, por razões que, julgo eu, os sociólogos melhor poderão explicar, eu não digo sem mácula, mas prevaleciam princípios que se foram esfumando no tempo. As famílias, ricas, pobres ou ditas remediadas, assumiam o rigor, a responsabilidade, a disciplina e a honradez, onde um simples aperto de mão ditava o compromisso, facto que hoje tenho muita dificuldade em ver assumidos de forma inquestionável pela população.
Confronto-me com situações de ausência de inflexibilidade no dever profissional, no cumprimento de prazos, de seriedade e de obediência a regras. Obviamente que existem muitas e relevantes excepções, mas a regra, essa é a sensibilidade que tenho sobre esta matéria, caracteriza-se por uma enervante e excessiva tolerância e brandura na exigência. Esse tempo de infância, esse tempo de dificuldades pós-guerra, não deixo de dizer que contribuíram muito para a minha percepção da vida e do rigor que ela exige. Não é que tenhamos de passar ou de impor sofrimento para aprender que uma sociedade, devidamente organizada, exige de todos, o tal rigor, responsabilidade e disciplina. Há formas de lá chegar através da Educação, com exigentes políticas a montante, na família, e políticas a jusante, na escola verdadeiramente educadora. De resto, o rigor, a responsabilidade e a disciplina não se resolvem com mentalidades insanas ou com uma escola enciclopédica.
O meu Pai. |
Uma outra situação vivia na Guiné-Bissau, após infindáveis meses no mato. Fui colocado no Quartel-General, no Comando Geral das Milícias, liderado pelo então Major Fabião. Um dia fui chamado ao Brigadeiro, cujo nome, infelizmente, não me recordo. Apresentei-me e disse-me mais ou menos isto: escolhi o nosso Alferes para ser "escrivão" de um processo que tenho à minha responsabilidade. Tratava-se de um caso complexo que envolvia um oficial superior. Falou-me com voz amena, eu diria nada militar, explicou-me o caso e pediu que fizesse o melhor possível e mantivesse o adequado sigilo. Um Homem militar fantástico na relação com os outros, ele um Brigadeiro e eu um simples oficial miliciano de baixa patente. No decorrer da conversa registei e jamais esqueci as suas palavras: "nosso Alferes, a disciplina deve ser conquistada pela compreensão das pessoas".
Este foi um outro momento que me ajudou a compreender o rigor, a responsabilidade e a disciplina. Mesmo na vida militar, com aquela alta patente, onde a norma é a de mandar executar e poucas palavras mais, ele defendia o princípio da compreensão no envolvimento das pessoas na defesa de uma qualquer causa, fosse ela militar ou civil. Digo eu, através destas duas entre outras situações que me ajudaram a moldar, que isto se educa a montante, na família, e a jusante, na escola.
Infelizmente, excluindo as boas excepções, que as há, o sentimento que tenho, repito, é que se abandonaram alguns valores essenciais que deveriam nortear a vida nesta sociedade da abundância e, paradoxalmente, também da miséria. Não pagar tornou-se normal; prometer e não cumprir tornou-se corriqueiro; o rigor profissional tornou-se condescendente, a responsabilidade tornou-se complacente e a disciplina tornou-se em condutas inapropriadas. Uma sociedade não consegue subir nos patamares da excelência e do bem-estar quando se assiste a uma contínua derrapagem nos princípios e valores que a enformam.
Este é um quadro extremamente complexo que, aqui chegado, levará anos, algumas décadas a corrigir, claro, com a compreensão das pessoas, na palavra do Brigadeiro, e no sentido das prioridades na palavra do meu pai.
Ilustração: Arquivo próprio
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