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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A China no mundo

 

João Abel de Freitas, 
01 Fevereiro 2021

O modelo ocidental de primeira potência pelo confronto apresenta-se de sucesso duvidoso no futuro e prejudicial a todos. Porque não partir para a construção de um novo modelo, o de partilha e cooperação, entendendo-se que partilha não é cedência.


1. O mundo chinês é muito complexo de apreender nos seus múltiplos aspectos.


Penetrar um pouco na sua história, na sua forma de contemplar o mundo, na diplomacia e até no processo de desenvolvimento económico que, nas últimas décadas, tem apresentado uma economia com taxas de crescimento da ordem dos dois dígitos, é um quebra-cabeças.

Para simbolizar as diferenças até se invoca o jogo de xadrez dizendo que a pressa do jogador ocidental é capturar de qualquer modo o Rei, enquanto o jogador chinês avança as pedras no tabuleiro de forma criteriosa na base de um fio condutor de jogo, de forma a desferir o xeque-mate fatal.

Com esta forma de pensar longe, de pensar os grandes objectivos, a China não planeia a curto prazo, mas a 30/40 anos. É num trabalho de longo prazo que alicerça “a dinâmica da vida”.

2. A cultura política da China é cerca de dez vezes mais antiga que a dos EUA e a China e a Índia foram, desde o ano zero até 1820, as duas economias dominantes no mundo.

A China, em perda lenta há algum tempo, afunda-se a partir de 1820 e atravessa um período de grande humilhação, marcado por conflitos armados perdedores (Reino Unido/China), conhecidos por “as guerras do ópio”. Este período humilhante estende-se até 1949, data da criação da República Popular da China pela tomada do poder pelo Partido Comunista Chinês (PCC).

Os primeiros 30 anos de governação do PCC foram muito agitados. Não nos podemos esquecer dos períodos dramáticos do Grande Salto em Frente (1958-1962) e da Revolução Cultural (1966-1976), que muito perturbaram o país e o mundo.

Nos últimos 40 anos, porém, a partir das reformas económicas introduzidas por Deng Xiaoping, a China ressurge, entra em estabilidade e o crescimento económico torna-se uma realidade. O povo chinês experimentou nestes 40 anos uma melhoria muito substancial das condições de vida.

Sobre os efeitos das reformas, vejamos o que escreveu Kishore Mahbubani no seu livro “A China já Ganhou?”.

“Quando fui pela primeira vez à China, em 1980, o povo chinês não podia escolher onde viver, o que vestir, onde estudar ou que empregos ter. Nenhum turista chinês viajava para o estrangeiro. Hoje em dia, os chineses podem escolher onde viver, o que vestir, onde estudar (incluindo no estrangeiro) e que empregos ter. Além disso, todos os anos, 134 milhões de chineses escolhem viajar para fora do país, incluindo para democracias ocidentais como na América do Norte e na Europa e para os seus vizinhos asiáticos democráticos, como o Japão e a Coreia do Sul”.

3. O aparecimento da Covid-19 veio paralisar esta dinâmica. Mas, por outro lado, também põe a nu as grandes fragilidades do Ocidente, evidenciando a sua grande dependência face aos países asiáticos e em especial da China.

Veio demonstrar que o processo de globalização subalternizou os interesses estratégicos dos Estados, subordinando-os à lógica do lucro dos accionistas das grandes empresas e grupos monopolistas. Foi exactamente esta subordinação que proporcionou a deslocalização, sem princípios, de produções essenciais para a Ásia (a conhecida desindustrialização), desguarnecendo-se por completo as retaguardas dos países, com realce para os produtos de saúde.

Chega a Covid-19 e, durante algum tempo, teve de ser a China a prestar os “primeiros socorros”, pois era lá que estavam as produções, em grande parte por transferência das empresas do Ocidente.

4. A economia chinesa, mesmo com a Covid-19, continua a destacar-se no contexto das grandes potências mundiais. É a única grande economia que, no primeiro ano Covid-19, 2020, cresce 2,3%. Em termos de comparação, o PIB dos EUA decresce 3,4%, do Japão 5,1%, da zona euro 7,2%, com o máximo de 8,0% na Índia (FMI, 26 de Janeiro).

Esta situação vem mostrar estruturas económicas muito diferentes e, em vários domínios, a China está em posição dianteira como na energia, onde predominam as renováveis, e em certas áreas tecnológicas como as telecomunicações, com o 5G.

5. Como vai Joe Biden lidar com a China? E, por outro lado, que postura observará nas relações da União Europeia com a China? Todas as posições se entrecruzam, não tenhamos dúvidas. Nunca são neutras, nem os seus efeitos.

Será que Joe Biden, em termos de fundo, embora de forma mais civilizada, seguirá a política de Trump, olhando a China como inimigo a abater e pressionará os países aliados a seguir a mesma linha?

Biden tem como lema de política externa liderar o mundo, fazendo “ressuscitar” o projecto da hegemonia global. É o que consta de um artigo seu publicado na “Foreign Affairs” de Março/Abril de 2020, e de dois outros muito recentes de conselheiros desta área.

Parece estarmos perante uma política externa mais de confronto que de cooperação. Os EUA vão procurar aliados para esta política sobretudo na União Europeia e Reino Unido, pois sabem que sozinhos não vão longe.

Para aliciar aliados Joe Biden vai tentar demonstrar que não é Trump regressando ao acordo de Paris, à Organização Mundial de Saúde e a outras medidas avulsas “simpáticas” mas pouco eficientes.

Mas a questão de fundo é a globalização. Que política terá Joe Biden para esta grande questão?

Evidente que não poderá haver uma reversão completa da globalização, muito vai mudar, e este processo vai atingir também a evolução da China. Para a China, a grande defesa será virar-se para o seu próprio mercado, o que já vinha a fazer antes da pandemia, e aqui as hipóteses são francamente favoráveis dada a dimensão (1,4 mil milhões de habitantes).

Por outro lado, as boas relações que tem desenvolvido com os países vizinhos, numa lógica de cooperação, ampliam ainda as potencialidades e de algum modo poderão contrabalançar a eventual aliança dos EUA com outros países para o confronto económico e tecnológico.

6. Aqui chegamos ao Acordo de princípio sobre Investimentos, assinado recentemente entre a China e a União Europeia. Entendi em artigo anterior que este acordo abria algumas luzes saudáveis no relacionamento União Europeia-China e não só para a Alemanha e França, como tenho lido em muito sítio. Penso até que pode contribuir para uma nova lógica da globalização e também, ao contrário do que li e continuo a ler, não impede as relações com os EUA, desde que não haja imposição de subordinação de interesses. Esse é que me parece ser o problema dos EUA. Aliados, sim, desde que se sujeitem à nossa estratégia de ser líder mundial.

A China, embora ainda longe de ser a primeira potência mundial, tem francas hipóteses de lá chegar pelo domínio da tecnologia e como planeia a muito longo prazo… deve já ter equacionado os vários cenários.

Daí que o modelo ocidental de primeira potência pelo confronto se apresente de sucesso duvidoso no futuro e prejudicial a todos.

Então porque não partir para a construção de um novo modelo, o de partilha e cooperação, entendendo-se que partilha não é cedência. É negociação. Partilhar é uma escolha do jogo em pé de igualdade com regras definidas de cooperação e troca de saberes.

Com um modelo deste teor poderia impulsionar-se um novo tipo de globalização onde os interesses mundiais ficariam mais equilibrados e gerar-se uma nova ordem mundial multipolar, de menores confrontos e de maior consistência para a Paz no mundo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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