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quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

A indignação com o SEF é tão dezembro de 2020!


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
03/02/2021


A comunicação social segue e alimenta torrentes monotemáticas, acompanhando as necessidades de indignação do mercado. O SEF é tão dezembro de 2020! Agora, são as fraudes na vacinação que estão a dar. Os critérios raramente são editoriais. São comerciais. Achamo-nos cada vez mais vigilantes, somos cada vez mais inconsequentes. É possível que Cristina Gatões nunca volte mesmo a um cargo de direção no SEF, mas voltará a qualquer coisa.. Nunca se demitiu. Apenas esperou que mudássemos outra vez de assunto.



Cristina Gatões chegou ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e não deu qualquer sinal de levar a sério os relatórios da Provedoria de Justiça que lhe diziam que o Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa era uma bomba relógio onde, a qualquer momento, poderia acontecer uma tragédia. Nem a tudo o que de irregular ali acontecia e já tinha sido noticiado. Depois da tragédia acontecer, a ex-diretora do SEF ficou em silêncio público durante nove meses. Não achou que aquele crime lhe exigisse, enquanto dirigente de um serviço que tem à sua guarda cidadãos que nos procuram, qualquer palavra. Contou com a cumplicidade do ministro. Em dezembro, Cristina Gatões demitiu-se por causa de uma enorme pressão pública.

Soubemos ontem que faz parte de um grupo de trabalho de aconselhamento ao SEF para a reestruturação dos “vistos gold”. Se Cristina Gatões se demitiu foi porque ela, o ministro ou os dois assumiram que as suas responsabilidades num caso de enorme gravidade assim o justificavam. Se o assumiram, não faz qualquer sentido que mantenha cargos relacionados com um serviço onde se revelou suficientemente incompetente para uma demissão pública.

Assim seria, se a demissão de Cristina Gatões tivesse resultado de qualquer reconhecimento de responsabilidades. Mas Cristina Gatões demitiu-se para salvar o ministro. E Eduardo Cabrita estava em dívida para com ela. A gestão da carreira da ex-dirigente do SEF revela a forma como a política se relaciona com o espaço público nestes tempos de ciclos mediáticos cada vez mais intensos e curtos. Os políticos sabem que tudo é grave até deixar se ser assunto e não ter gravidade alguma. E que tudo deixa de ser assunto muito rapidamente – menos a pandemia, que afeta demasiado o nosso quotidiano para ter impulsos exclusivamente mediáticos. Mesmo que seja notícia, já ninguém está nessa onda.

Esta semana, estão a dar as fraudes na vacinação (tratarei disso e de como a comunicação social entra em modo histriónico com uma regularidade tão cansativa na minha coluna semanal, na sexta-feira), há duas semanas eram os colégios privados, para a semana que vem será outra coisa qualquer. A comunicação social segue e alimenta estas ondas monotemáticas, acompanhando as necessidades de indignação do mercado. O SEF é tão dezembro de 2020!

A impunidade dos agentes do Estado (ou do sector privado, mas esses estão dispensado de qualquer escrutínio mediático até que aconteça uma falência de um banco qualquer) é fruto do comportamento da comunicação social, que vive de ondas e alimenta ondas. Da comunicação social, não dos jornalistas. Como se viu no caso do SEF, houve jornalistas a acompanhar tudo desde 2018. E a publicar notícias. Como agora o fizeram, perante o regresso de Gatões. Mas como a voragem mediática esmaga todos os assuntos com o que estiver a dar, tudo o resto passa desapercebido porque os focos estão intensamente apontados para outro lado. Os critérios raramente são editoriais. São comerciais. E a indignação que agora vende não é esta. O mesmo se passa com os comentadores, necessitados de partilhas, cliques e temas que lhes permitam insensatas indignações exclamatórias.

Sabendo isto, os políticos fazem o que qualquer um faria debaixo de pressão: cedem um pouco e esperam que passe. E passa cada vez mais depressa. Achamo-nos cada vez mais vigilantes, somos cada vez mais inconsequentes. Gritamos cada vez mais, os nossos gritos querem dizer cada vez menos. Até ficarmos roucos. É possível que Cristina Gatões nunca volte mesmo a um cargo de direção no SEF, mas voltará a qualquer coisa. Ela nunca se demitiu. Apenas esperou que fizéssemos aquilo que fazemos sempre: mudássemos de assunto. Como mudámos poucos dias depois da morte de Ihor Homeniuk.

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