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terça-feira, 2 de novembro de 2021

Onze teses sobre uma crise que ninguém desejou


Por estatuadesal
Pedro Adão e Silva,
in Expresso Diário, 
27/10/2021

1. A ideia de que há sempre racionalidade na ação política está bastante sobrevalorizada. Objetivamente, ninguém desejou a precipitação desta crise, que aliás não foi antecipada, e ela é mais o resultado agregado de opções (racionais) que foram sendo tomadas e que, a certa altura, tornaram o desfecho inevitável (e irracional);



2. O que esteve agora em causa não foi o conteúdo do Orçamento do Estado. De facto, por força da pandemia e com suspensão das regras europeias, o Governo goza de alguma margem de manobra que, até aqui, inexistiu. Além de que, se considerarmos que um orçamento é tanto mais à esquerda quanto mais generoso for na política fiscal e de rendimentos, a proposta para 2022 é, inequivocamente, a mais à esquerda já apresentada. A sua rejeição tem motivações políticas, que não surgiram de rompante no pós-autárquicas;

3. A primeira motivação profunda para a crise é estrutural e remete para a cultura política e o quadro institucional que enforma os debates em Portugal. Com um sistema eleitoral proporcional, desenhado para não formar maiorias de um só partido, e num contexto de crescente fragmentação da representação parlamentar, o desejável era que os partidos se empenhassem na formação de coligações pós-eleitorais. A ideia de governos minoritários é peregrina e condena a estabilidade política e, fundamental, diminui a possibilidade de compromissos em torno de soluções para as políticas públicas. Com governos minoritários, toda a discussão se transfere para o momento do debate orçamental, com aspetos aliás absurdos. Este processo, por um lado, descentra a discussão e avaliação da proposta orçamental propriamente dita; por outro, contamina reciprocamente o debate orçamental e o debate sobre políticas públicas. O modo como, nos últimos anos, se discutem questões de regulação laboral como contrapartida orçamental tem sido paradigmático disto mesmo;about:blank

4. Com uma proposta de Orçamento apresentada pelo Governo, à qual depois os partidos no Parlamento fazem uns quantos enxertos, promove-se a precariedade política. A pressão, do lado do Governo, para apresentar um Orçamento fiel aos seus princípios identitários e, do lado das minorias de suporte, para terem ganhos de causa, tenderá a ser, por definição, crescente e encerra em si as sementes do fim de qualquer solução política. A principal aprendizagem destes anos tem de ser precisamente que não é possível alimentar ilusões de que há espaço sustentado para governações à vista. À esquerda ou à direita, a responsabilidade tem de passar sempre pela construção de programas acordados, capazes de preservar as diferenças das partes, mas que garantam um chão-comum. A incapacidade de negociação, a sua transferência para uma janela de tempo curta (entre a apresentação da proposta de OE e a sua votação na generalidade) e o sistemático jogo de passa-culpas entre partidos ficarão como um sinal de imaturidade política dos vários protagonistas e do regime;

Com governos minoritários, toda a discussão se transfere para o momento do debate orçamental, com aspetos aliás absurdos.

5. Há, contudo, um problema que vai para além da fraca cultura política de negociação. Mesmo com a recomposição à direita, visível no crescimento de forças políticas iliberais, as assimetrias programáticas permanecem substantivamente maiores à esquerda do que à direita. O PS tem como linha vermelha a disciplina orçamental e os compromissos europeus (no que é acompanhado por uma larguíssima maioria dos portugueses) e o BE e o PCP discutem possibilidades que vão invariavelmente para além destes constrangimentos. Em algum momento, os partidos à esquerda vão ter de ser capazes de superar este bloqueio;about:blank

6. Quer isto dizer que o BE e o PCP têm tido posições irracionais? Não, considerando a cultura política dominante e o quadro institucional, os incentivos para a rutura estavam todos presentes e as posições obedeceram a uma racionalidade própria. A questão era saber quando é que deixava de ser sustentável suportar opções políticas que não eram as suas e que, durante muito tempo, se limitaram a ser toleradas;

7. O PCP move-se por critérios distintos dos outros partidos e a frente eleitoral é apenas uma das várias formas de presença social que o partido valoriza. Está aliás longe de ser a prioritária. Para além do mais, um século passado da sua fundação, o PCP continua a alimentar o sonho de um encontro adiado com a História. Se atentarmos na linguagem utilizada nos últimos dias, vemos que o partido recuperou as referências e as expressões que alimentaram a sua retórica no passado. Há, também, a questão da sucessão, que carece de unidade interna e não era compatível com divergências em torno do tipo de relação com “o Governo minoritário do Partido Socialista”;

8. O BE, por sua vez, levou a cabo uma aprendizagem muito particular do chumbo do PEC IV. Na interpretação dos bloquistas, o que terá ficado demonstrado é que, mesmo depois de grandes perdas eleitorais (que o partido certamente antecipa nas próximas legislativas), é possível recuperar. Se assim é, estando esgotada a solução atual do ponto de vista das ambições programáticas, é momento de regressar ao sonho antigo de sorpasso, liderando a esquerda, ou, complementarmente, reativar o entrismo, desta feita procurando influenciar o posicionamento do PS, no pós-Costa, com uma nova liderança, assente numa frente de esquerda, que traduza politicamente a polarização social que é crescente nas democracias europeias;

O PS tem como linha vermelha a disciplina orçamental e os compromissos europeus e o BE e o PCP discutem possibilidades que vão invariavelmente para além destes constrangimentos. Em algum momento, os partidos à esquerda vão ter de ser capazes de superar este bloqueio.

9. O PS partirá para as legislativas com uma grande dificuldade: não é claro que tipo de solução o partido pode oferecer, mesmo que volte a vencer as eleições. Se afastarmos o cenário de uma maioria absoluta (uma inviabilidade aritmética e política), ao PS resta regressar ao diálogo com a esquerda. Ora, mesmo que o conjunto da esquerda seja de novo maioritária, a probabilidade é que se assista a um recuo do voto somado no PS, BE e PCP. Se assim for, por que motivo será a esquerda capaz do entendimento pós-eleitoral de que não foi capaz nestes últimos dois anos? Os últimos dias de debate e o que se seguirá na campanha só acentuarão o clima adversativo e a troca de acusações. Num sistema mais fragmentado e polarizado, o PS só é politicamente viável com entendimentos à esquerda e a acrimónia à esquerda é, como tal, objetivamente contraproducente;

10. A crise, na verdade, é prematura até para quem aparenta beneficiar deste desfecho, o conjunto da direita. Se a próxima campanha for, em importante medida, uma avaliação de quem é capaz de oferecer estabilidade e soluções de governabilidade, o desafio à direita passa muito pela estratégia de coligações. PSD/CDS/IL coligados, não só isolam o Chega (no que será um poderoso antídoto a todos que criticam a aproximação da extrema-direita xenófoba ao arco da governação), como mostram que a direita democrática é capaz de concentrar votos, promovendo uma maioria. Há, contudo, um sério problema de tempo. Com CDS e PSD envolvidos em disputas internas, só depois de 4 de dezembro teremos um quadro de lideranças estabilizado e resta muito pouco tempo para o desenho de programas e listas comuns. Uma direita fragmentada e marcada por divisões intestinas será menos mobilizadora e menos contrastante com a oferta do PS. O PSD em particular ganhava se pudesse esperar mais seis meses ou mesmo um ano por uma crise;

PSD/CDS/IL coligados, não só isolam o Chega como mostram que a direita democrática é capaz de concentrar votos, promovendo uma maioria.

11. No fim, sobra um berbicacho para o Presidente. Em sete vezes que a legislatura foi interrompida (e tal nunca aconteceu por chumbo do OE), com a exceção de 1987, em todos os casos, ocorreu uma mudança de partido do Governo. Desta feita, podemos estar face a uma disfuncionalidade, pois enquanto o PS não tem uma solução política muito diferente da atual para oferecer, (ainda) não há uma alternativa constituída do outro lado do espetro político. Acima de tudo, não há uma alternativa consolidada no eleitorado. Se desta feita, a vontade de mudança não se confirmar (o que aconteceu sempre, designadamente em 1987, quando Cavaco Silva conquistou uma maioria após a dissolução e, em 2005, quando José Sócrates alcançou o mesmo resultado), o Presidente será corresponsabilizado pelo pântano político. Até ver, os portugueses não desejam eleições antecipadas e, independentemente das suas preferências de voto, nos estudos de opinião, revelavam que desejavam que a legislatura chegasse até ao fim. Se nada se alterar profundamente (e as campanhas eleitorais servem para promover mudanças no quadro político), Marcelo Rebelo de Sousa também não sairá beneficiado da crise. Talvez isso explique a proatividade que tem demonstrado, procurando evitar uma crise que não terá ganhadores.

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