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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Na senda do iconoclasta


Por
09 Novembro 2021

Não partilho a ideia de que apenas o sector privado potencia riqueza e emprego como certos partidos apregoam. O Estado é central nesta matéria e certamente que suprir “falhas de mercado” não será a sua acção mais nobre.



O Orçamento do Estado para 2022 tropeçou mortalmente na AR

1. No meu artigo anterior escrevi que “até veria com bons olhos a hipótese do chumbo”. E alertava para a encenação da grande catástrofe, a começar por Marcelo Rebelo de Sousa, que o chumbo do Orçamento do Estado (OE) acarretaria para o País, como se algo de “estonteante” fosse a Assembleia da República (AR) não aprovar um orçamento.

Afirmei ainda que um orçamento não ancorado numa estratégia de desenvolvimento não passa de um mero documento formal para formatar e gerir as receitas e despesas públicas e as cativações, e pouco acrescentava como instrumento de criação de riqueza, ou seja, pouco contribuindo para um esforço de transformação das estruturas do País, aquilo de que verdadeiramente se precisa.

2. O Governo, por seu lado, afirmou que não se demitia, se o OE caísse. Uma posição correcta em termos de gestão política e económica do País, na medida em que, desta forma, fica com maior e melhor margem de actuação.

Há quem aponte elevados riscos a esta situação por falta de controlo da AR. Não é bem assim, pois na ausência da AR por dissolução, Marcelo Rebelo de Sousa, na sua qualidade de Presidente, concentra em si muito mais poder sobre o Governo, podendo, em última análise (há quem não concorde), demiti-lo.

A direita e o Presidente

3. Marcelo Rebelo de Sousa não foi bem sucedido por “gafes” de sua pressa. Certa direita (e comentadores) não perdoa ao Presidente a reunião, dita de cortesia, com Paulo Rangel. A cortesia nem sempre colhe. A reunião foi entendida como um apoio velado a Rangel, candidato a líder do PSD, em detrimento de Rui Rio.

Cada presidente “é o que é”. Marcelo o disse, um pouco na desculpa de ter recebido Rangel. Ficou a suspeita de intromissão na vida interna do PSD, e convenhamos não é mesmo missão do Presidente. Apesar de Marcelo ser “o que é” e ter saído das fileiras políticas do PSD não se lhe permite tudo.

Outro novo Governo precisa-se

4. O OE2022 caiu. Foi um bem para o País.

Acaba-se, assim, com um ambiente de degradação em movimento há bastante tempo, onde as culpas são de muitos, não podendo deixar de se assinalar a completa ineficácia em vários domínios ministeriais. Certamente, este segundo “modelo” da “geringonça” (desde o início em estado de divórcio latente!) não terá sido o apropriado. Não dava confiança aos parceiros e trazia muito ruído quando algumas situações se agudizavam.

Bem mais útil ao País, à sua economia, o chumbo agora, do que adiá-lo por um ano, como muitos admitiam como certo.

Daqui a um ano já estariam em fase de implantação vários projectos de investimento no domínio do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e outros fundos e a crise política traria, então, grande perturbação, atrasos e paralisações com efeitos preocupantes no interior e exterior do País.

Interromper um processo em curso é sempre mais nefasto que na fase inicial de arranque em que os atrasos até são de pouca monta e fáceis de recuperar. Os dinheiros do PRR não resolvem todos os problemas do País, mas darão uma grande ajuda se bem aplicados e há indícios de que, em áreas importantes como a habitação e o hidrogénio, estão a ser contratualizados projectos com bons alicerces.

Eleições a 30 de Janeiro

5. Não havia “viabilidade” para avançar com outras hipóteses para resolver a crise política criada. Urge arejar o ambiente da gestão política do País. Acabar com as incertezas. Abrir um ciclo novo.

Um segundo orçamento para quê? Devaneios que a nada levariam e apenas degradariam ainda mais o ambiente. Menos ainda a ideia peregrina que ouvi, de pelo menos um partido, da gestão por duodécimos.

A única forma objectiva, nas circunstâncias criadas, é avançar para eleições. E aguardar resultados.

Cenários pós-resultados eleitorais

6. Tudo dependerá do decorrer do processo eleitoral, das pontes que se forem criando, da linguagem de confronto mais ou menos civilizada, do equacionamento de linhas-chave de desenvolvimento e das medidas apontadas para ultrapassar as sequelas da Covid-19.

Sobre governos possíveis não pretendo elaborar. Mas permito-me algumas reflexões.

Necessário é que certas linhas mínimas de desenvolvimento sejam abordadas porque prementes e determinantes do futuro de Portugal. Que problemas como a descarbonização da economia, a transição digital da sociedade não sejam núcleos de informação e debate e de tomadas de posição nas eleições não é crível. Seria uma campanha pobre demais.

Não consigo entender que sendo a energia um problema central, estruturante e por toda a parte se fale e discuta o mix das fontes de energia, não se coloque nas eleições o tema do hidrogénio e das energias renováveis ou mesmo o lítio, tendo Portugal francas potencialidades neste domínio, apesar da questão estar enviesada de raiz e de reconhecer dificuldades de a recuperar sem litígios.

Também não entendo porque não se clarifica o que se designa de reindustrialização, nos tempos presentes e futuros. Certamente, não estaremos a pensar na construção e reparação naval ou na electromecânica pesada!

É fácil falar de emprego, de contratualização laboral, saúde, etc., e deixar de lado os assuntos económicos. Entendo que deve ser prestada a atenção devida à ligação entre estes dois domínios. Não nos podemos esquecer que o País necessita de criar riqueza e emprego para melhorar a vida das pessoas, por exemplo, para que os salários se aproximem rapidamente da média da Europa.

Não partilho a ideia de que apenas o sector privado potencia riqueza e emprego como certos partidos apregoam. O Estado é central nesta matéria e certamente que suprir “falhas de mercado” não será a sua acção mais nobre. Sobre isto recomendo a leitura de a “Economia de Missão”, de Mariana Mazzucato, recentemente editado em Portugal.

Penso que foi nesta falta de sintonia, por ausência de debate, sobre estes dois pólos (economia e social) que a “geringonça” se foi desconjuntando.

Possível nova “geringonça”?

O País ficaria bem servido por mais quatro anos. Mas só com novos objectivos, onde os assuntos económicos e os sociais sejam colocados ao mesmo nível de prioridades. E com um modelo diferente de “geringonça” onde uma maior responsabilidade de todos esteja patente. Sem isso, não vale a pena ensaiar.

Agora tudo depende do processo eleitoral, da vontade mostrada pelos potenciais parceiros na campanha. O passado acabou e há ou pode haver Futuro. E para ser claro, sem um PS forte e as esquerdas com mais de 50% dos votos não se pode sonhar. E o sonho comanda a vida.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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