Por
José Sócrates,
in Diário de Notícias,
15/12/2021
No episódio da prisão de Manuel Pinho não sei o que é mais difícil de suportar. Se a violência ilegítima do Estado, se o cinismo de quem assiste a tudo isto limitando-se a dizer que "é difícil compreender". Na verdade, não é nada difícil perceber porque as razões estão bem à frente dos nossos olhos. Os senhores procuradores decidiram aproveitar a janela de oportunidade para agir. Entre a decisão do juiz Ivo Rosa ficar em exclusividade com o processo BES e a próxima entrada em vigor da lei que alarga para sete o número de juízes do tribunal de instrução, este era o momento. Agora têm a certeza de ter o juiz certo.
Dez anos depois, em vez de apresentarem a acusação e as provas para que os cidadãos se possam defender, resolvem prender. Prender para humilhar, para ferir, para poderem exibir a prisão como prova. Nada disto é novo. Tudo isto começou com o governo de Passos Coelho que decidiu criminalizar as políticas do governo anterior, declarando, pela boca da então ministra da justiça, que tinha acabado a impunidade. Depois foi o festival de processos - os gastos de gabinetes, as parcerias público-privadas, a EDP e finalmente o processo marquês, onde constavam as políticas do TGV, da Parque Escolar, da diplomacia económica com a Venezuela, de Vale do Lobo, da Opa da Sonae e do veto à venda da Vivo. Pelo caminho construíram a narrativa da fortuna escondida e da proximidade a Ricardo Salgado. Todas estas acusações foram consideradas fantasiosas, especulativas e destituídas de coerência, para usar as próprias palavras do tribunal. Mas que importa? O que realmente importa é o serviço de difamação que está feito. Durou sete anos.
A operação exigia um Presidente, uma maioria, um governo e uma procuradora geral. Mas precisava também de um juiz. Assim sendo, a distribuição do processo marquês foi viciada e o juiz escolhido de forma fraudulenta. Estes são factos confirmados por decisão instrutória que, nesta parte, já transitou em julgado. Quanto às consequências estamos para ver. No entanto é hoje possível afirmar que naquele tribunal, entre setembro de 2014 e abril de 2016, as normas legais que regulam a distribuição de processos não foram cumpridas. Um ano e meio. Durante um ano e meio aquele tribunal funcionou como tribunal de excepção. E nenhum dos dois juízes que ali prestavam serviço fez nada para corrigir a situação. Os processos simplesmente caíam-lhes nas mãos e era quanto bastava. E, no entanto, os dois juízes conheciam a lei - sabiam que a lei impõe a presidência de um juiz na distribuição e sabiam que a lei manda que esta seja "realizada por meios eletrónicos, os quais devem garantir aleatoriedade no resultado". Os dois juízes sabiam que o sistema de distribuição estava viciado e que garantia constitucional do juiz natural estava a ser negada a dezenas e dezenas de cidadãos. Sabiam e nada fizeram.
E, já agora, talvez devamos ir um pouco mais longe na descrição do escândalo: no mais importante tribunal de combate à corrupção, as regras legais e as garantias constitucionais foram pervertidas em favor de interesses espúrios. O combate à corrupção começou por corromper a lei. Naquele tribunal escolhia -se o juiz de forma ad-hoc. Naquele tribunal, escolhia-se o juiz que mais interessava à chamada "dimensão mediática" do processo.
Tal como nas ditaduras, o juiz era escolhido de acordo com os visados no inquérito. Esta é a dimensão da vergonha do que se passou naquele tribunal. Agora, mais de sete anos depois, voltamos ao mesmo. Agora já nem é preciso fraudar a distribuição porque só está um juiz em serviço no tribunal. Difícil de compreender? Não. Os procuradores simplesmente escolheram o momento em que podiam também escolher o juiz. O juiz adequado ao caso. O juiz que garante aos procuradores o uso de medidas de excecional violência que nada tem a ver com o estado de direito. Difícil de compreender? Não. Agora têm o juiz certo.
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