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terça-feira, 11 de julho de 2023

A União Europeia a esvair-se lentamente


Por
João Abel de Freitas,
Economista

Não é com burocracia, desentendimentos, sobretudo subterrâneos, como na energia em que se reconhece a nuclear como limpa e depois se boicota a legislação, que a UE avança.



1. A Comissão Europeia publicou em 2018 um plano de acção estratégico para a indústria de baterias, com o desígnio de transformar a UE, nesta matéria, numa potência mundial de primeiro nível.

Nesse plano de acção, teoricamente bem elaborado, foram enumerados seis grandes objectivos:

  • garantir o acesso às matérias-primas.
  • apoiar o fabrico de células de bateria em escala na Europa.
  • apoiar a investigação e a inovação da UE no domínio das tecnologias avançadas e revolucionárias.
  • reforçar a mão de obra e as competências da UE.
  • apoiar a sustentabilidade da indústria europeia de fabrico de células de bateria.
  • garantir a coerência do quadro facilitador e regulamentar mais abrangente.

Sem dúvida, seis grandes objectivos com potencialidades de dinamizar a indústria automóvel da União Europeia, ajustada ao cumprimento da transição energética. Mas, um desafio se impunha, criar as condições de os levar à prática, em tempo devido.

Desde então, a União Europeia (UE) aplicou em subsídios, garantias de empréstimos e ajudas de Estado, cerca de oito mil milhões de euros no sector, concentrados em três países, Alemanha, França e Itália.

A falta de visão integrada e desentendimentos provocaram um atraso pronunciado da UE face aos concorrentes de topo. Assim, a China reúne, neste momento, 76% da capacidade da produção mundial de baterias.

Os EUA são uma realidade difícil de contornar, pois é uma economia com grupos como a Tesla, com tecnologia e design muito competitivos e de grande implantação, inclusive, na Europa.

Auditoria do Tribunal de Contas Europeu/TCE

2. Uma auditoria do Tribunal de Contas Europeu sobre a evolução desta indústria consta de relatório, publicado em 19 de Junho de 2023 (como se referiu no artigo anterior).

A auditoria referencia o plano de acção como algo de muito positivo. Mas identifica a ausência de quantificação e calendarização de medidas de concretização e, sobretudo, a descoordenação entre os países. Bem mais inquietante é o alerta para as tamanhas fragilidades organizativas do negócio que lançam sérias dúvidas sobre a consistência futura da produção competitiva das baterias, peça-chave da viatura eléctrica europeia.

Três constrangimentos – aponta o relatório – afectam a produção de baterias na Europa.

O primeiro e com maior destaque liga-se ao objectivo nº1 enunciado no Plano – a garantia do acesso às matérias-primas. Sem matéria-prima assegurada, de forma regular, não há fabrico consequente.

O auditor responsável do TCE pela elaboração do relatório diz expressamente: “A UE não deve ficar numa posição de dependência com as baterias, como fez com o gás natural, pois está em causa a sua soberania económica”.

Atentemos no real significado desta mensagem.

Os países da União Europeia quase não exploram matérias-primas, no seu território, para o fabrico de baterias, ou seja, são dependentes em elevado grau da importação de um reduzido número de países, onde a exploração está concentrada.

Por exemplo, da Austrália importam 87% do lítio; da África do Sul e Gabão 80% do manganês; da República Democrática do Congo 68% do cobalto…

A Europa dispõe de recursos minerais, recentemente identificados, mas não em exploração e, se decidir explorá-los, serão necessários quinze a vinte anos para os tornar comercializáveis. Não pode, assim, a União Europeia responder à necessidade premente da procura no presente.

Mas pior. A Europa não contratualizou, oportunamente, a importação de matérias-primas que assegure a produção de baterias e, neste momento, devido à elevada procura é bem mais difícil e, segundo a Agência Internacional de Energia, a procura vai multiplicar-se por seis vezes, até 2040.

Por outro lado, as relações económico-diplomáticas com alguns deles (a maioria, por alinhamentos económicos divergentes – BRICS e eventuais “novos” BRICS), a guerra da Ucrânia, o seguimento cego das posições hostis dos EUA sobretudo para com a China, o maior produtor do mundo de terras raras, tornam a negociação e assinatura de contratos estáveis e a longo prazo uma tarefa quase impossível para a União Europeia.

Muitos são os problemas a considerar e a corrigir para quem não agiu em tempo. E, assim, como alerta o relatório do TCE, a UE acumulou muitos anos de atraso em diferentes áreas do sector.

Uma segunda questão apontada no relatório é “o desvio” real de investidores do mercado europeu para os EUA que subsidiam a produção de minerais e baterias bem como a compra de automóveis desde que fabricados com componentes produzidas no país. Para a China o problema é diferente. É sobretudo o custo mais baixo das matérias-primas e das baterias que lhe dão grande competitividade no mercado e a posição primeira no mercado mundial. Esperemos que os EUA não interfiram no eventual investimento chinês de baterias, anunciado para Sines. Não seria a primeira vez.

Um terceiro constrangimento subsiste ainda: a grande volatilidade dos preços de energia, aliados à subida das matérias-primas, para quem não tem acordos de longo prazo.

O Futuro das baterias na União Europeia

3. Os auditores do TCE avançam dois cenários.

O mais natural é a Europa não cumprir até 2035 a neutralidade carbónica que tinha decidido, através da proibição da venda de viaturas novas com motores de combustão, por não conseguir capacidade de produção interna.

O segundo cenário é a União Europeia ficar dependente de baterias e automóveis de países terceiros – meras linhas de montagem sem valor acrescentado – prejudicando, de forma irreversível, a sua indústria automóvel que, no passado, desempenhou um papel relevante na sua economia.

Os auditores entendem que a União Europeia atravessa uma fase crítica de grandes incertezas na indústria de baterias, a merecer ponderação, estando em risco o futuro do automóvel europeu.

Recomendações dos auditores

4. A equipa de auditores apresenta 5 recomendações. Todas importantes, mas ligadas a condições do financiamento. Menos uma. A recomendação estruturante é a nº1, que cito: “Atualizar o plano de ação estratégico para as baterias, com especial destaque para a garantia do acesso às matérias-primas”, até finais de 2025.

“Após a adoção, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, da proposta de ato legislativo sobre uma indústria de impacto zero apresentada pela Comissão, esta deve atualizar a sua estratégia para uma cadeia de valor das baterias da UE que seja sustentável e competitiva”.

Uma estratégia renovada deve:

a) refletir a evolução mundial do setor das baterias desde 2018, bem como os seus atuais desafios estratégicos, em especial o acesso às matérias-primas;

b) incluir metas quantificadas e calendarizadas para o duplo objetivo de alcançar a neutralidade climática e um setor automóvel competitivo na UE. Em especial, as metas para a produção interna de baterias devem ser coerentes com a proibição de emissões dos automóveis de passageiros e veículos comerciais ligeiros em 2035 e com o aprovisionamento de matérias-primas e de materiais avançados”.

De nada serve produzir documentos teóricos de alto nível técnico, quando não se constroem as condições para os concretizar.

Não é com burocracia, desentendimentos, sobretudo subterrâneos, como na energia em que se reconhece a nuclear como limpa e depois se boicota a legislação, as condições de financiamento, que a UE avança.

Sem uma estratégia, qualificada, séria, autónoma de cooperação, interna e externa, a União Europeia caminha para uma potência de segundo nível mundial.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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