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sábado, 8 de julho de 2023

Um mundo em desagregação


Por
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
07/07/2023

Nahel pagou com a pena de morte pequenos delitos e pequeno cadastro de juventude. Tinha 17 anos, era argelino em França e conduzia sem carta de condução. Parado pela polícia e ameaçado de morte, assustou-se, deixou o carro avançar sozinho e foi executado por alguém que alguns colegas polícias consideraram um “herói”. Se fosse branco, estaria provavelmente vivo, pelo que este foi um crime de ódio racista, cometido por quem tem o dever de manter a ordem e não de fomentar a desordem.



O racismo nas forças poli­ciais e a infiltração destas pela extrema-direita, dos Estados Unidos a Portugal, é um facto e um motivo de crescente alarme.

E o que se seguiu em França — quatro noites de vandalismo juvenil à solta, de assalto orquestrado nas redes sociais aos símbolos da República e do Estado de Direito, ao comércio e à propriedade privada — já se vai tornando recorrente naquele que é um dos países mais prósperos do mundo. Se não estão na rua a incendiar carros e a lançar cocktails molotov sobre a polícia para protestar porque lhes querem aumentar a idade da reforma (que é a mais baixa do mundo), ou retirar subsídios dos tempos de abundância, tais como o “subsídio do carvão”, dado aos maquinistas de comboio no século XIX e que ainda subsistia no tempo dos TGV, ou porque a política agrícola comum já não suporta a factura dos seus agricultores, os franceses estão nas ruas simplesmente porque estão zangados. Segundo uns, porque protestar e revoltar-se está-lhes na massa do sangue; segundo outros, porque são o país mais politizado do mundo. Ou talvez — atrevo-me a pensar — porque, partindo de um lugar de prosperidade e de conforto do Estado Social ímpar no mundo, a França é o primeiro país a perceber que esses tempos estão a ficar para trás de forma definitiva. Há 30 anos, lembro-me de ter lido no “Nouvel Observateur” uma reportagem sobre a geração francesa mais feliz de sempre: a dos reformados, que então tinham 60 ou menos anos. Hoje, estamos perante a primeira geração desde o pós-guerra que, apesar da baixa natalidade, vai transmitir aos seus filhos uma vida pior do que aquela que viveu. Começa pela França, mas outros se seguirão.

O que houve de novo nestes motins foi a aliança entre os jovens adolescentes brancos, os idiotas das redes sociais, e os jovens argelinos: uma alian­ça contranatura. As sociedades afluentes da Europa escolheram renunciar aos piores trabalhos e fazer filhos para melhor gozarem a vida. Foi uma escolha com consequên­cias, a principal das quais a imigração, que se tornou vital para assegurar os trabalhos que ninguém quer fazer e a própria sustentabilidade financeira da Segurança Social. Os alemães receberam turcos, os ingleses receberam indianos e paquistaneses (os outros querem-nos recambiar para o Ruanda), os italianos e os gregos receberam à força os náufragos do Mediterrâneo, vindos de África e do Médio Oriente, Portugal recebeu os africanos dos PALOP e agora a exótica imigração do Sudoeste Asiático. Mas os franceses receberam o pior: os argelinos, a que eles chamam depreciativamente les arabes. Os argelinos de França são um factor à parte na equação. Bem pode Macron acenar com novos bairros sociais e mais escolas ou projectos de integração — jamais um argelino de França chegará a primeiro-ministro, como indianos chegaram a primeiros-ministros na Inglaterra e na Escócia. Nem os franceses deixariam nem eles próprios querem. Eles não estão em França para se integrarem, mas para a minarem, para a destruírem por dentro, para se vingarem. E para entender isto, que é tão politicamente incorrecto de dizer, é preciso conhecer a História, conhecer a Argélia e conhecer os argelinos.

A Argélia estava logo ali em baixo, à distância de uma curta travessia do Mediterrâneo, tinha petróleo, mar e um imenso e misterioso deserto: era irresistível para um poder imperial como a França. Expulsa a administração otomana, a Argélia tornou-se um departamento francês em 1848 e começou o seu povoamento com os colonos vindos de França. É fácil imaginar o arbítrio que deve ter sido ser colonizado pelos pequeno-burgueses e deserdados de França, de repente feitos senhores coloniais sob a protecção do Exército, da lei e das autoridades administrativas. Camus deixou-nos uma pequena ideia sobre isso, como Duras deixou sobre a colonização francesa na Indochina. Ambos os sonhos coloniais acabaram em guerras de guerrilha prolongadas, em derrotas humilhantes e em debandadas. Por imposição de De Gaulle, a França e os pied-noirs retiraram definitivamente da Argélia em 1962, deixando para trás 500 mil mortos argelinos na guerra e um povo que transmitiu o ódio aos franceses, de geração em geração, até aos bidonvilles, para onde depois emigrariam em França. Mas isso foi há 60 anos: tempo suficiente para a Argélia ter feito alguma coisa com a sua independência, com as lições aprendidas, com o seu petróleo. Não fez nada. É um Estado policial — não apenas no topo mas ao nível da prepotência de cada autoridade — e um povo antipático, hostil e incivilizado por natureza. Como não têm turistas nem esperam ter, desprezam e maltratam os estrangeiros, e nenhum polícia perde uma oportunidade para mostrar como estamos à mercê do seu arbítrio. Se os polacos, por exemplo, são o povo mais intratável da Europa, os argelinos são-no do Magrebe. Emigrados para França, levam tudo isso com eles, mais um desejo secular de vingança. A França tem um problema muito sério.

2 Quem melhor do que Stoltenberg para suceder a Stoltenberg à frente da NATO? Se ele, como dizem, tem feito “um excelente trabalho” como instigador da guerra, para quê mudá-lo em plena guerra? Siga a guerra, siga Stoltenberg.

Entretanto, com a maior das banalidades e perante a apatia geral, Rússia e Ucrânia acusam-se mutuamente de quererem fazer explodir a central nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa. Do lado ucraniano, há um ano que ouvimos relatos de ataques russos à central — todavia, é detida por eles e estão lá homens seus, o que torna a acusação difícil de acreditar. E agora dizem que os russos colocaram explosivos no telhado, o único local não inspeccionado pela Agência de Energia Atómica. Os russos, por seu lado, dizem que estará iminente um ataque da Ucrânia à central. E ninguém se mexe para se interpor entre ambos e evitar uma catástrofe inominável apenas para poder acusar o outro lado da sua responsabilidade?

Jamais um argelino de França chegará a primeiro-ministro, como indianos chegaram a primeiros-ministros na Inglaterra e na Escócia. Nem os franceses deixariam nem eles próprios querem

De facto, brincamos com o fogo, brincamos com a morte de inocentes, brincamos com a guerra. Churchill, com quem alguns ignorantes e oportunistas resolveram comparar Zelensky, estava várias vezes na frente de batalha, mas também estava junto dos civis depois dos bombardeamentos aéreos dos alemães. Vemos várias vezes Zelensky a condecorar tropas e a fazer discursos marciais, mas nunca o vimos na frente de batalha nem junto dos civis bombardeados. Será que tem medo que lhe peçam a paz e não a guerra?

Do lado de lá já sabemos que temos um louco sentado em cima de um arsenal nuclear, que nos dizem que pondera usar todos os dias. Nada que nos dissuada a provocar cada vez mais o louco. Timothy Garton Ash, um dos gurus dessa estratégia da vitória sobre a Rússia até ao último ucraniano vivo, esteve em Lisboa em pregação, fazendo-se entrevistar por dois acólitos. A Teresa de Sousa disse que “foi fantástico” ter acompanhado a marcha das tropas do insano Prigozhin em direcção a Moscovo — louco por louco, preferia este. A José Manuel Fernandes explicou que a guerra só podia terminar com a recuperação da Crimeia por parte da Ucrânia, não importando o estabelecido no Tratado de Minsk. Não por razões históricas, que ele, historiador, sabe que não cabem à Ucrânia, mas porque “a Crimeia é um porta-aviões terrestre que ameaça o flanco sul da Ucrânia”. Pois, e também ameaça o da Rússia, e por isso é que Potemkine a conquistou (aos tártaros e não aos ucranianos, que lá não exis­tiam) para Catarina a Grande, no século XVIII. Mas se esta teoria da ameaça do porta-aviões terrestre fizer caminho, basta procurar no mapa-múndi e não faltarão guerras justas para os novos cruzados do Ocidente.

E enquanto já se esfregam as mãos e se alinham os candidatos ao grande negócio da reconstrução da Ucrânia, prepara-se também a ida à Justiça dos responsáveis dos crimes de guerra do lado russo — e apenas deste, pois do lado ucraniano, não obstante as “calúnias” divulgadas pela ONU ou pela Amnistia Internacional, não há, como se sabe, crimes de guerra alguns. Perante a falta de alçada do TPI, decidiu-se criar um tribunal ad-hoc, sediado em Haia, com jurisdição própria e cujos jurados serão a União Europeia e os Estados Unidos — os fornecedores de armas à Ucrânia — e a própria Ucrânia, uma das partes beligerantes. Antecipam-se resultados mais rápidos do que os daquela comissão que há longos meses investiga em vão quem serão os responsáveis pela sabotagem dos Nordstream — um acto de terrorismo cometido contra estruturas civis, fora do teatro de guerra e em águas territoriais de um país da UE. Quando o direito à justiça, à informação e à verdade sobre todos os factos se submete preventivamente a um juízo sobre o que deve ser contado e feito, por melhores que sejam as razões invocadas, não há razão que se aguente.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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