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domingo, 23 de julho de 2023

A teia

 

Interrogo-me: como é possível, quase 50 anos depois de Abril de 1974, na Região Autónoma da Madeira, não ter existido qualquer alternância política? Que é legítimo, eu sei. Mas que é estranho, também o é. E na sequência desta preocupação surge-me uma outra interrogação: será, apenas, por demérito da oposição política ou muito mais se esconde para além do que é observável?



Tenho presente o essencial do guião do filme destes 47 anos de vivência alegadamente democrática, os nomes de grandes figuras madeirenses oposicionistas, figuras socialmente credíveis, muitos eloquentes, a sensatez dos seus discursos qualquer que fosse o quadrante político, tenho bem presente, grosso modo, os projectos emblemáticos em todos os sectores e áreas que apresentaram e defenderam, porém, apesar de todo esse notável esforço político, constante no "Diário das Sessões da Assembleia Legislativa", os resultados jamais possibilitaram que a maioria do povo lhes concedesse, no mínimo, o benefício da dúvida. E assim se passaram 47 anos. Regresso à pergunta: porquê? Por demérito? Não estou disso convencido, embora tenha consciência que nem sempre a oposição, por esgotamento das pessoas ou por opções menos consistentes, tivesse merecido esse tal benefício da dúvida.

O problema, portanto, parece-me ser outro, por ter raízes históricas profundas, múltiplas e entrecruzadas de uma ponta à outra do arquipélago. Paulatinamente, assisti à construção de um edifício político, labiríntico, de complexas teias de interesses, de claros favorecimentos embora sempre negados, assisti à excessiva multiplicação de instituições dependentes e interdependentes dos apoios financeiros que obrigam a silêncios cúmplices, assisti à proliferação de serviços públicos, muitos desnecessários, mas que garantiram emprego, assisti às tais designadas "obras inventadas", alicerçadas em megalomanias desproporcionais ao espaço que habitamos, servindo interesses empresariais e sobretudo políticos, mas que não serviram os princípios pelos quais se regem os princípios desenvolvimento, assisti à declaração, nada inocente, junto dos jovens, preparando o futuro partidário, que "temos de ser uma máfia boazinha", assisti à sementeiras das festas com palcos de propaganda pagos pelos próprios que assistiam sem disso darem conta, assisti, durante anos, à cumplicidade de uma certa comunicação social até à situação de hoje, legítima mas preocupante, da compra dos principais órgãos de comunicação social, pelos beneficiários directos do sistema político, assisti à perseguição de pessoas que não se reviam no discurso da maioria, assisti ao estraçalhar do primeiro órgão de governo próprio, a Assembleia Legislativa, menorizando-a e catalogando-a de "bando de loucos", assisti aos inúmeros chumbos de propostas, mais tarde recuperadas e aprovadas com o selo da maioria, assisti a declarações do tipo "com dinheiro faço inaugurações e com inaugurações ganho eleições", assisti a deliberadas ofensas públicas e à subtil colocação na prateleira de todos quantos se manifestaram contra qualquer coisita, assisti à ausência de diálogo com a República, repetidamente, batendo na tecla que o que bom é feito a nós diz respeito e tudo resto fica a dever-se àqueles malandros da República (o tal contencioso das Autonomias), assisti ao maná atribuído às autarquias da mesma cor política e ao desprezo das outras, assisti ao vergar da população através do cabaz, do subsídio, do emprego, enfim, às migalhas do que vai caindo da nobre mesa, assisti ao esconder da dívida pública de 6.3 mil milhões até ser, factualmente, desmascarada por um ministro da mesma cor política, assisti aos pactos com a Igreja Católica que alinhou e nunca teve a coragem de contextualizar a Palavra em defesa do Povo de Deus, assisti ao planeamento no adro das igrejas prometendo e assim comprando consciências, assisti à subversão dos instrumentos de planeamento, assisti à luta pela sobrevivência de milhares atirados para as margens, assisti, embora com outras designações e justificações, ao domínio do mercado por alguns, desvirtuando a sã concorrência, assisti à "quase morte" e venda ideológica da Democracia-Cristã, depois de anos e anos a combater o adversário, assisti à ausência de investigação aos subterrâneos do exercício da política e de certas fortunas "mal explicadas" como me referiu um ilustre membro da maioria, assisti ao desmesurado aumento de camas num destino onde deveria prevalecer a qualidade, assisti a atentados contra o património e o ambiente, assisti, porque tudo o que está para trás assim exigia, a um sistema educativo muito mais próximo da Sociedade Industrial do que aberto ao mundo que está aí aos olhos de todos, assisti à emigração de milhares de jovens e adultos e ao desencanto de milhares que não estudam nem trabalham, assisti tantas vezes ao incessante vaivém de carrinhas entre as residências e as assembleias de voto, eu sei lá ao que eu assisti durante estes longos anos.


Tudo isto não foi "obra" do acaso, antes foi meticulosamente arquitectado. E hoje, o mesmo partido hegemónico, com uma bengalinha, é certo, com muitos a dizerem que "não havia necessidade", comentadores, cronistas e articulistas dão-se ao luxo de, a sessenta dias das eleições, assumirem que o que está em causa é determinar qual a percentagem da vitória absolutíssima. É surreal que tal se assuma e não sei se, no panorama europeu, existe algum caso semelhante. Natural seria que, no plano da democracia sentida e vivida, a disputa, no mínimo, ao final de 47 anos, fosse de dúvida quanto ao vencedor.

O que significa tudo isto é que a sociedade foi capturada e está globalmente cristalizada. Comodamente instalada, talvez porque transporta, também, o medo por défice de cidadania, portanto, num quadro destes, fácil é que assuma que não existe alternativa! Apenas por demérito da oposição (?), volto a questionar. Não. 

Hoje é mais difícil ser oposição que ontem e ontem os tempos vividos não foram fáceis. 

A captura foi conseguida através de um processo lento, meticuloso, ardiloso, astucioso, peça por peça, bloco a bloco, consolidando os pilares e reforçando as vigas, de tal forma que os que não querem habitar esta casa, ou desistem ou vão embora. Não me parece que exista demérito, antes uma arquitectura social desvirtuada onde só na aparência é livre e democrática.

Para que não subsistam dúvidas sobre a minha leitura de todo este processo, sublinho que não ignoro que há muita obra física feita e bem realizada. Se assim não tivesse acontecido, com os milhares de milhões que foram disponibilizados "não seria um caso de política mas de polícia". O que está em causa não é isso, mas sim o esmagamento da sociedade com todas as consequências que daí advêm e advirão. Está pois por realizar a grande "obra" de emancipação do ser humano.

Dizia-me, com humor, um velho amigo: "se o Al Capone regressasse, a primeira pergunta que faria seria esta: "como é possível fazer tanto sangue sem um único tiro?".

Ilustração: Google Imagens.

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