“Quantas estradas um homem deve percorrer Para merecer o nome de homem?
Quantos oceanos uma pomba branca deve navegar Para poder dormir na areia?
Sim, e quantas vezes as balas dos canhões devem voar Antes de serem banidas para sempre?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento. A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantas vezes um homem deve olhar para cima Antes de conseguir ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter Para conseguir escutar o choro das pessoas?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até o homem saber Que demasiadas pessoas já morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento. A resposta está soprando no vento!”.
Na cultura desportiva, cabem inteiramente estas palavras de Bob Dylan.
Quando se fala em “cultura” procura enfeudar-se esta palavra tão-só à “cultura ilustrada”, isto é, mormente à filosofia, à literatura e às artes e aos seus mais famosos intérpretes, a chamada intelligentsia, a qual, para o ato da criação, não esconde um anseio constante de liberdade. Nas ditaduras políticas, escutam-se sempre, com maior ou menor dificuldade, as reivindicações e aspirações justas de alguns escritores que jazem aferrolhados nas cadeias, pela única razão de gritarem, sem medo, a palavra “liberdade”.
Assim, as mulheres ou os homens cultos, são, para muita gente, pessoas filosófica, literária e artisticamente informadas e com prática reconhecida e de indiscutível originalidade, no pensamento, na ficção e na arte. Alguns deles são mesmo autores de obras imortais, que dão ao que fazem sinais evidentes de eternidade. O sistema cultural integra um sentido antropológico de cultura, onde a cultura se distingue da natureza e do que não decorre das disposições hereditárias do indivíduo; um sentido etnográfico, onde cabem as crenças, os ritos, as normas, os valores, os hábitos, os modelos de comportamento de uma região ou de um povo; e, como vimos acima, uma cultura aristocratizante e elitista, só ao alcance da intelligentsia. No meu entender, a cultura humaniza e não civiliza. E, quando civiliza, é para melhor humanizar. Assim, a cultura desportiva não se divisa, ao jeito do que se passa na cultura científica ou na cultura literária, em pessoas unicamente de grande erudição mas, nos “agentes do desporto” que operam uma dialética orientadora e estruturante, entre a teoria e a prática desportivas, para que o Desporto satisfaça as exigências de um diálogo, em cada um de nós, entre as dimensões biológica e existencial, entre o pensamento científico e o pensamento sapiencial, entre a motricidade humana e a vida. Segundo a célebre definição de Ortega y Gasset, na sua História como Sistema: “El hombre es el ente que se hace a si mismo” (p. 33). E como? No meu entender, superando-se! Como no Desporto que é “movimento intencional e em equipa da transcendência”.
A cultura desportiva, pela transcendência, reconhece, no ser humano, a sua dignidade. O que caracteriza o ser humano, para que ele seja confirmado na sua eminente dignidade? O desportista culto responde: A capacidade de transcender e transcender-se até ao ponto em que ser, na sua complexidade, e dever ser, como imperativo categórico, coincidam. A cultura resulta de uma vida que se faz e que se pensa. Portanto, a cultura desportiva não a têm (se não laboro em erro) os que praticam Desporto e desconhecem o sentido último da prática desportiva, nem os teóricos que não foram nunca “agentes do desporto”, manifestando, muitas vezes, uma serena indiferença pelo horizonte social e histórico do desporto. Para mim, quem só teoriza - não sabe; e quem só pratica – repete. “A cultura (escutei ao Padre Manuel Antunes) é a aliança do saber e da vida”, isto é, urge assumir, na cultura desportiva, uma incoercível responsabilidade prática, vivificada pelos grandes desafios culturais do nosso tempo. E assim a cultura desportiva significar o advento de um desporto novo! O Desporto é a experiência vivida de um comportamento complexo que, em movimento intencional e expressivo, procura a transcendência. Um comportamento complexo, quero eu dizer, servindo-me de palavras de Buytendijk: “um movimento existencial”. E portanto, um sujeito que, em movimento, intencional e afetivamente, transcende e se transcende. O movimento surge como elemento básico, na relação com o nosso semelhante e com a natureza. E, tendo em conta a complexidade humana, transforma-se num dos aspetos da fenomenologia da verdade sobre o ser humano. Com efeito, o Desporto é tanto um espaço do físico como do espírito e até do religioso. Está por tentar-se uma teologia do Desporto, onde bem possa compreender-se a diferença entre indivíduo e pessoa e possam ainda escutar-se as palavras de E. Mounier: “A pessoa só cresce na medida em que, sem cessar, se purifica do indivíduo que nela está” (Oeuvres, vol. I, Seuil, Paris, p. 62). O indivíduo, queria dizer Mounier: a total ausência de transcendência, pois que, na transcendência, diviso o outro, diviso os outros, diviso o Absoluto…
O ser humano é um “animal axiológico”, pois que vivemos reconhecendo valor aos produtos da Natureza e da Cultura, em poucas palavras: às coisas materiais e às ações humanas. No entanto, o que de mais importante a vida tem não atribuímos preço, mas valor. Uma pessoa não tem preço, mas valor. Não há preço que pague uma vida humana. Releio uma página de Edgar Morin do livro A Via – para o futuro da humanidade (I. Piaget, Lisboa, 2016): “É especialmente importante sublinhar a necessidade de uma reforma do conhecimento, pois atualmente (…) o problema da educação e o problema da investigação estão reduzidos a termos quantitativos: mais créditos, mais professores, mais informática, etc. Mascara-se, deste modo, a dificuldade maior que sobressai do fracasso de todas as reformas sucessivas do ensino: não podemos reformar a instituição sem ter, previamente, reformado os espíritos, mas não podemos reformar os espíritos, se não tivermos, previamente, reformado as instituições (…). Temos de nos opor à inteligência cega que tomou o controlo, em quase todo o lado, e temos de reaprender a pensar, uma tarefa de salvação pública (…). Com a marginalização da filosofia e da literatura, falta cada vez mais, na educação, a possibilidade de enfrentar os problemas fundamentais e globais do cidadão, do ser humano. Estes problemas necessitam, para serem abordados, da possibilidade de reunir múltiplos conhecimentos, separados em disciplinas. Exigem um modo mais complexo de conhecer, um modo mais complexo de pensar” (pp. 161/162). Um problema humano não se conhece, servindo-nos, unicamente, do conhecimento científico. Há necessidade também da filosofia, da religião, da cultura. Para mim, a motricidade é o elemento fundamental da educação, pois que é (é mesmo) o fio condutor que promove e realiza a unidade corporal e mental da pessoa. Ainda para mim, há três princípios teóricos fundamentais, na motricidade humana: 1. O conceito de complexidade, que une e explica a natureza humana. 2. O princípio homeostático de relação. 3. O princípio axiológico-transcendental, que dá sentido a cada uma das nossas ações.
Termino, com a letra de uma canção de Bob Dylan, Prémio Nobel da Literatura de 2016:
“Quantas estradas um homem deve percorrer Para merecer o nome de homem?
Quantos oceanos uma pomba branca deve navegar Para poder dormir na areia?
Sim, e quantas vezes as balas dos canhões devem voar Antes de serem banidas para sempre?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento. A resposta está soprando no vento.
Sim, e quantas vezes um homem deve olhar para cima Antes de conseguir ver o céu?
Sim, e quantos ouvidos um homem deve ter Para conseguir escutar o choro das pessoas?
Sim, e quantas mortes serão necessárias até o homem saber Que demasiadas pessoas já morreram?
A resposta, meu amigo, está soprando no vento. A resposta está soprando no vento!”.
Na cultura desportiva, cabem inteiramente estas palavras de Bob Dylan.
Artigo de MANUEL SÉRGIO, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto.
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