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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

CRISES OLÍMPICAS


Independentemente de se aguardar com alguma expectativa a divulgação pública do Relatório da Missão Olímpica elaborado sob a responsabilidade de José Garcia o chefe da Missão Olímpica, documento que, certamente, trará à colação mais um conjunto de informações bem importantes acerca daquilo que, em termos de liderança da Missão, efetivamente, se passou no Rio De Janeiro, o Comité Olímpico de Portugal (COP), perante a desilusão da generalidade dos portugueses, mais uma vez, chegou ao fim de um Ciclo Olímpico, desta feita o do Rio de Janeiro (2016), num ambiente de profunda crise, fundamentalmente porque, há muito que não tem uma ideia clara e objetiva para o seu próprio desenvolvimento no quadro do desenvolvimento do desporto no País. Em consequência, como tem vindo a acontecer desde 2004, o que se pode esperar do Ciclo de Tóquio (2020) é, tão só, mais do mesmo ou pior sem que o atual Governo, à semelhança dos anteriores, revele a mínima capacidade ou, sequer, interesse para equacionar um problema que está a conduzir o desporto nacional para um “beco sem saída”. 


A crise que, atualmente, o MO nacional vive não é a primeira nem, certamente, será a última já que, ao longo dos seus quase cento e vinte anos de existência, passou por diversas crises desde que, a 9 de Junho de 1906, por ação conjunta do Rei D. Carlos e de Pierre de Coubertin, o tísico António Lancastre foi cooptado como membro do Comité Olímpico Internacional (COI) a fim de representar os interesses da organização em Portugal. 
A primeira crise do MO nacional aconteceu em 1910 quando António Lancastre se demitiu do lugar que ocupava no COI por entender que, enquanto monárquico convicto que era, deixou de ter condições para representar o COI num Portugal republicano. Esta crise prosseguiu até 1919: Em Dezembro de 1913 faleceu Mauperrin Santos presidente do Comité Olímpico Português fundado a 30 de Abril de 1912; Em 1914 foi eleito e reconhecido pelo COI como o segundo presidente do COP o Conde de Fontalva que não chegou a ter qualquer ação significativa para além de, presumivelmente, ter respondido a uma carta de Pierre de Coubertin onde se comprometia a desenvolver um conjunto de ação que, que se saiba, nunca chegaram a acontecer; Ainda em 1914 surgiu a Federação Portugueza de Sports (FPS) liderada por Álvaro Gaia que, devido a “lutas intestinas” que, em grande parte, decorriam das lutas políticas da 1ª República, pretendia substituir o COP junto do COI, tendo até escrito uma carta endereçada a Pierre de Coubertin; Em 1916 os organizadores do 1º Congresso de Educação Física ostracizaram e denegriram o desporto e os seus praticantes. Em consequência, o MO entrou em profunda decadência ao ponto de, em 1919, após o término da Grande Guerra, o Governo da República ter de intervir (DG n.º 192, IIª Série, 19-08-1919) a fim de pôr ordem no COP que, acabou por ser reativado sob a liderança de Prestes Salgueiro com o objetivo de organizar a Missão Olímpica portuguesa que havia de estar presente nos Jogos Olímpicos de Anvers / Antuérpia (1920).
A segunda grande crise no MO nacional aconteceu nos anos quarenta quando, o então presidente do COP José Pontes foi posto na ordem pelo Governo, através dessa grande figura do desporto nacional que foi Salazar Carreira que, em matéria de desporto, era considerado um dos ideólogos do regime Salazarista. Ao tempo, Salazar Carreira, que desempenhou diversos cargos oficiais, nomeadamente o de Inspetor dos Desportos da Direção Geral de Educação Física Desportos e Saúde Escolar (DGEFDSE), em nome do Governo, protagonizou um confronto institucional com o COP e o seu presidente José Pontes. E a situação azedou de tal maneira que, no dia 27 de fevereiro de 1948, Salazar Carreira assinou um ofício dirigido a Otto Mayer, chanceler do COI, em que dizia que tinha sido encarregue pelo então Diretor-geral dos Desporto de lhe comunicar o seguinte: “Pelo Decreto-Lei 36:762, de 20 de Fevereiro corrente, o Governo português retirou todas as prorrogativas ao Comité Olímpico Português porque os seus membros não quiseram submeter-se às disposições legais em vigor”. E continuava: “…o Comité Olímpico Português está de hoje em diante fora de toda a hierarquia desportiva e já não tem competência para representar o país nas relações olímpicas”. O que aconteceu foi que, José Pontes, provavelmente, devido à enorme vaidade que, geralmente, toma conta dos homens de pouca altura (ele não devia ter mais de 1,60m) resolveu pôr-se em “bicos dos pés” e recusar-se a cumprir o que tinha sido estatuído no artigo 9º da Lei nº 32241 que obrigava as organizações desportivas a submeterem os seus corpos gerentes à recém-criada DGEFDSE se desejassem continuar a receber os apoios financeiros do Estado. A situação era de tal maneira pungente que Salazar Carreira, numa carta pessoal datada de 20 de janeiro de 1948, que enviou ao Chanceler do COI, chegou ao ponto de lhe perguntar se era possível manter José Pontes enquanto delegado em Portugal do COI (funções que já exercia) e, tal como acontecia em Espanha, atribuir a presidência do COP ao Diretor-geral dos Desportos.
Nos anos cinquenta ocorreu mais uma crise que se desenvolveu entre os Jogos Olímpicos de Helsínquia (1952) e os Jogos Olímpicos de Roma (1960) com repercussões até 1962. Esta crise, que foi desencadeada por Nobre Guedes, conduziu à demissão de José Pontes e à dramática expulsão do português Saúl Ferreira Pires de membro do COI. O que aconteceu foi que, Nobre Guedes, que exercia as funções de secretário do COP desde 1919, através de uma carta datada de 28 de Junho de 1953, em virtude da deficiente organização da Missão do COP aos Jogos Olímpicos de Helsínquia (1952), renunciou assumir o cargo de secretário-geral para o qual tinha sido cooptado na reunião de 25 de Junho de 1953. Em consequência, durante o Ciclo Olímpico de Melbourne (1956), Nobre Guedes viveu em conflito permanente com José Pontes que, bem vistas as coisas, já não estava em condições de gerir a instituição. Em resultado da disputa, Nobre Guedes, apesar dos protestos de José Pontes, acabou por ser eleito presidente da Comissão Executiva do COP na reunião plenária eleitoral realizada em 25 de Março de 1957. Esta crise teve custos elevadíssimos para o MO ao ponto de ter obrigado a uma intervenção do próprio COI que suportava José Pontes e, indiretamente, ter originado a kafkiana expulsão do português Saúl Ferreira Pires de membro do COI, uma questão que, ainda hoje, não está totalmente esclarecida.
Nos anos setenta, após o 25 de Abril de 1974, quando no País, a par da alegria da queda do regime de Salazar e Caetano, reinava uma enorme confusão, o MO nacional foi submetido a um rude golpe desencadeado pelos movimentos populistas que assaltaram as mais diversas organizações ligadas ao desporto. O que aconteceu foi que uma seita maoista que dominava as universidades e escolas universitárias entreteve-se a sanear vários professores do Instituto Nacional de Educação Física (INEF) entre eles Mário Moniz Pereira. Ao tempo, o COP estava “debaixo de fogo” e o esquerdismo maoista que campeava “sem rei nem roque” no País acusava a instituição olímpica de ser dirigida por contrarrevolucionários ao serviço dos imperialismos americano e soviético. Recordamos que a visão maoista do desporto fundamentava-se num manual de educação física do próprio Mao Zedong bem como no célebre “livro vermelho” que orientava a Revolução Cultural chinesa, para quem os resultados das competições deviam ser ajustadas aos interesses do Partido, quer dizer, resultados combinados. Em conformidade, na sedutora presença do primeiro-ministro Zhou Enlai, os atletas chineses eram “aconselhados” a perderem voluntariamente determinadas competições porque tal era do interesse do Partido ou do País o que era a mesma coisa. Nesta perspetiva, em Portugal, os chino-portugueses que assaltaram o poder, entre outros epítetos, acusavam Moniz Pereira de “andar a gastar o dinheiro do povo” por ir para o Algarve orientar um estágio de atletas que haviam de participar nos Jogos Olímpicos de Montreal (1976). Felizmente, a deriva maoista foi superada por Melo de Carvalho, entretanto nomeado Diretor-geral dos Desporto que, através dos designados Planos de Desenvolvimento, pôs cobro às chinesices que puseram a ferro e fogo o desporto nacional. E, em consequência da ação de Melo de Carvalho, os Jogos Olímpicos de Montreal (1976) foram salvos ao ponto da Missão Portuguesa ter conquistado duas medalhas de prata: Carlos Lopes no Atletismo (10 000m) e Armando Marques no Tiro (fosso olímpico), resultados que contrastam com os resultados conseguidos nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. 
Em 1980, o boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo, liderado pelos EUA por motivo da invasão do Afeganistão pela União Soviética ocorrida no ano anterior, originou uma crise nos mais diversos Comités Olímpicos Nacionais (CONs) que defendiam a posição de que os Jogos Olímpicos, na sua tradição milenar, deviam estar fora do confronto entre as duas potências. Em Portugal, o COP foi sujeito a várias pressões tanto internas como externas. Do ponto de vista interno era advogada a ida incondicional a Moscovo. Do ponto de vista externo o COP foi submetido a uma forte pressão por parte do VI Governo Constitucional liderado por Sá Carneiro no sentido de uma recusa à participação nos Jogos Olímpicos de Moscovo. Infelizmente, como nos relatou José Carvalho, ao tempo, uma atleta com “mínimos olímpicos”, os atletas foram envolvidos num processo com o qual nada tinham a ver e acabaram por, efetivamente, ser os únicos prejudicados. Salles Grade, então presidente do COP, mesmo perante uma resolução emanada do Conselho de Ministros que recomendava um boicote aos Jogos Olímpicos de Moscovo (1980), aguentou a “pé firme” todas as pressões a que o COP foi sujeito. E, a fim de cumprir uma das principais missões que competem aos CONs que é a de enviar atletas aos Jogos Olímpicos, organizou uma subscrição pública a fim de garantir os custos da operação. Depois, às Missões Olímpicas que se deslocaram a Moscovo contra a opinião dos Governos dos respetivos países não lhes foi permitido desfilar na cerimónia de abertura com a bandeira do respetivo país. Em alternativa, desfilaram sob a bandeira olímpica. A crise de 1980 vivida pelo COP terá, certamente, sido a única em que a instituição foi capaz de mostrar uma absoluta independência perante o poder político e, claramente, afirmar a sua posição singular no Sistema Desportivo nacional. A Missão Olímpica a Moscovo acabou por ser uma lição de liberdade, independência, afirmação e competência do COP que os atuais dirigentes deviam ter em atenção. 
Finalmente, a atual crise pela qual o MO está a passar, paradoxalmente, tem origem nos Jogos Olímpicos de Atenas onde a Missão portuguesa conquistou uma das melhores participações de sempre: três medalhas. Entusiasmados com os resultados os dirigentes tanto políticos como desportivos, ao tempo do XV Governo Constitucional chefiado por Durão Barroso, convenceram-se que estavam perante um maná pelo que era tão só necessário desviar o dinheiro das Federações Desportivas para o COP para que, nos Jogos Olímpicos seguintes, a realizar em 2008 em Pequim, as medalhas surgissem em profusão. Então, foram previstas nada mais, nada menos do que cinco medalhas e o presidente do COP, num momento de euforia, até chegou a anunciar ao País seis medalhas olímpicas. E, a fim de consumar esta nova visão para o desenvolvimento do desporto nacional, em 2005, já durante o XVI Governo chefiado por Santana Lopes, foi assinado um Contrato Programa entre o COP e o Instituto do Desporto de Portugal (Contrato nº 872/2005 - Contrato-programa de desenvolvimento desportivo nº 48/2005) que, do ponto de vista ideológico, numa dinâmica neomercantilista, assumia os resultados dos atletas conseguidos nas competições internacionais como um meio de afirmação político-económica do regime. Esta perspetiva, à revelia da Carta Olímpica e da Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, tem vindo a ser processada desde então com resultados cada vez mais medíocres, sem que os dirigentes desportivos e políticos sejam capazes de reconhecer o erro que cometeram e o “beco sem saída” para onde conduziram o desporto nacional. Quer dizer, enquanto a prática desportiva nacional definha a “olhos vistos”, os Ciclos Olímpicos têm sido caracterizados pela mais profunda mediocridade que, invariavelmente, tem tido o seu epílogo numa participação medíocre nos Jogos Olímpicos. Depois de nos Jogos Olímpicos de Atenas (2004) terem sido conquistadas três medalhas, em Pequim (2008) foram conquistadas duas, em Londres (2012) foi conquistada uma única medalha de prata e, no Rio de Janeiro (2016), uma única medalha de bronze depois de, pomposamente, o presidente do COP ter anunciado seis medalhas em seis modalidades diferentes o que, orgulhosamente, colocaria o País ao nível do sucesso da Coreia do Norte. Tudo isto revela o profundo estado de desorganização do desporto nacional. Quer dizer, enquanto os responsáveis “tentam salvar a pele” a fim de conseguirem mais quatro anos de poder, os portugueses são obrigados a pagar muitos milhões de euros por um Sistema Desportivo profundamente injusto que serve cada vez mais e tão só para dar guarida a uma oligarquia político partidária que dele se apropriou. Nunca se investiu tanto dinheiro no COP e na preparação olímpica, bem como nas mais diversas áreas, setores e etapas do desporto, da educação física e do Desporto Escolar ao alto rendimento. A bem ver, o Ciclo Olímpico do Rio de Janeiro (2016), representa, tão só, mais um ponto alto da hecatombe que, desde 2004, tem sacrificado o desporto nacional em nome de uma oligarquia cujos membros, de festival dionisíaco em festival, se vão condecorando e agraciando uns aos outros. 
Por isso, quando, a quente, se admitiu o fracasso que foi a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos do Rio (2016), se vem agora dizer que, “afinal, os resultados não foram assim tão maus quanto isso”, está-se decididamente a entrar numa dinâmica de “pós verdade” em que os factos dão origem a ficções que só podem conduzir a um novo fracasso nos Jogos Olímpicos de Tóqui (2020). Por isso, o que se exige é um mínimo de realismo e bom senso na medida em que estão em causa o dinheiro e os sentimentos dos portugueses que tiveram a oportunidade de constatar que, à partida para o Rio de Janeiro, enquanto o presidente do COP estava preocupado com o “dress code” das cerimónias olímpicas, como se os Jogos Olímpicos fossem um “reality show”, pelo menos um atleta, potencialmente candidato a uma medalha, embarcou com a bolsa e os apoios a que tinha direito mal resolvidos. E, perante esta situação, que aconteceu sem que a tutela política, que investiu nos Jogos Olímpicos mais de vinte milhões de euros, tivesse mandado levantar um processo de averiguações, só podemos chegar à conclusão de que o Governo perdeu completamente o controlo do desporto nacional. E o pior é que não revela ter a mínima consciência da incoerência sistémica em que as mais diversas organizações desportivas estão a funcionar com custos elevadíssimos para os portugueses, para o desporto e para o País. 
Entretanto, como enquanto há vida há esperança, os portugueses continuam a aguardar a prometida “nova agenda para o desporto”. Agenda que, até pelos olímpicos “golpes de mão” que estão a acontecer no desporto nacional, só o Governo tem legitimidade democrática para, numa abordagem transversal, mobilizar todas as entidades públicas e privadas que devem ser chamadas a participar num projeto de desenvolvimento do desporto nacional partilhado e continuado no tempo longo. Porque a última coisa que, agora, pode acontecer ao desporto português é ficar cativo de um qualquer grupo de interesses corporativos. Não se trata de mais Estado. Trata-se de um Estado com a medida certa e a ação exata que, decididamente, no cumprimento das suas responsabilidades constitucionais, proteja o desporto de aventureiros que, na maior das ignorâncias e irresponsabilidades, julgam que, para desenvolver desporto, é só, ao estilo “magister dixit”, “chegar ver e vencer”, bem como dos burocratas que, agarrados ao poder, saltam de partido político em partido político, de organização em organização, de lugar em lugar, de opinião em opinião, com o único intuito de, ao estilo de pequenos napoleões, numa de “quero posso e mando”, defenderem os seus próprios interesses. O desporto, a acontecer a proclamada “nova agenda para o desporto”, deve promover uma filosofia de vida ativa ao serviço do desenvolvimento humano. A não ser assim, tudo leva a prever que, ao cabo do Ciclo Olímpico de Tóquio (2020), em concordância com a progressão negativa que tem caracterizado o índice de prática desportiva, a participação olímpica portuguesa será, novamente, para além de uma confrangedora miséria, uma deprimente tristeza nacional.
NOTA
Um artigo do Professor Gustavo Pires, professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa, publicado no Jornal A Bola e  aqui transcrito com a devida vénia.

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