(Kaushik Basu, in Jornal de Negócios, 07/01/2017)
Depois de um ano medíocre e desonesto, reminiscente da "década medíocre e desonesta" sobre a qual W.H. Auden escreveu no seu poema "1 de Setembro de 1939", as "inteligentes esperanças" do mundo estão a dar lugar ao reconhecimento de que muitos problemas graves devem ser abordados. E, entre os mais severos, com as mais graves implicações de longo prazo e até mesmo existenciais, está a desigualdade económica.
O nível alarmante de desigualdade económica em todo o mundo foi bem documentado por economistas proeminentes, incluindo Thomas Piketty, François Bourguignon, Branko Milanovic e Joseph E. Stiglitz, e instituições bem conhecidas, incluindo a OXFAM e o Banco Mundial. E é óbvio mesmo num passeio casual nas ruas de Nova Iorque, Nova Deli, Pequim ou Berlim.
Vozes à direita afirmam muitas vezes que essa desigualdade é não apenas justificável, mas também apropriada: a riqueza é uma recompensa justa pelo trabalho árduo, enquanto a pobreza é uma punição da preguiça. Isto é um mito. A realidade é que os pobres, na maioria das vezes, têm de trabalhar muito, geralmente em condições difíceis, só para sobreviver.
Além disso, se uma pessoa rica tem uma ética de trabalho particularmente forte, provavelmente isso é atribuível não apenas à sua predisposição genética, mas também à sua educação, incluindo quaisquer privilégios, valores e oportunidades que os seus ascendentes lhe possam ter proporcionado. Portanto, não há um verdadeiro argumento moral para a riqueza extrema no meio da pobreza generalizada.
Isso não quer dizer que não haja justificação para nenhum nível de desigualdade. Afinal, a desigualdade pode reflectir diferenças nas preferências: algumas pessoas podem considerar a busca da riqueza material mais valiosa do que outras. Além disso, recompensas diferentes criam incentivos para que as pessoas aprendam, trabalhem e inovem, actividades que promovem o crescimento geral e a redução da pobreza.
Mas, a partir de um certo ponto, a desigualdade torna-se tão grave que tem o efeito oposto. E estamos muito além desse ponto.
Muitas pessoas - incluindo muitos dos mais ricos do mundo - reconhecem que a desigualdade severa é inaceitável, tanto moral como economicamente. Mas se o dizem abertamente, são muitas vezes rotulados de hipócritas. Aparentemente, o desejo de diminuir a desigualdade só pode ser considerado credível ou genuíno se as pessoas sacrificarem a própria riqueza.
A verdade, claro, é que a decisão de não renunciar, unilateralmente, da riqueza não desacredita a preferência por uma sociedade mais equitativa. Rotular uma pessoa rica, que é crítica da desigualdade extrema, como hipócrita, equivale a um ataque ad hominem e a uma falácia lógica, destinada a silenciar aqueles cujas vozes podem fazer a diferença.
Felizmente, esta táctica parece estar a perder alguma da sua força. É encorajador ver pessoas ricas que desafiam esses ataques, não só reconhecendo abertamente os danos económicos e sociais provocados pela desigualdade extrema, mas também criticando um sistema que, apesar de lhes permitir prosperar, deixou muitos sem oportunidades.
Em particular, alguns americanos ricos estão a condenar a reforma fiscal da administração Trump, que oferece cortes extraordinários aos que têm maiores rendimentos - pessoas como ele. Como Jack Bogle, fundador do Vanguard Group e beneficiário dos cortes propostos, disse, o plano - que irá certamente acentuar a desigualdade - é uma "abominação moral".
No entanto, reconhecer as falhas nas estruturas actuais é apenas o início. O grande desafio é criar um modelo viável para uma sociedade equitativa. (Foi a ausência de tal modelo que levou muitos movimentos bem intencionados na história a acabar em fracasso). Neste caso, o foco deve ser a expansão dos acordos de participação nos lucros, sem sufocar ou centralizar os incentivos de mercado que são cruciais para impulsionar o crescimento.
Um primeiro passo seria dar a todos os residentes de um país o direito a uma certa parcela dos lucros da economia. Esta ideia foi avançada em várias formas por Marty Weitzman, Hillel Steiner, Richard Freeman e Matt Bruenig. Mas é particularmente vital hoje, à medida que a proporção dos salários no rendimento nacional diminui e a proporção dos lucros e rendas aumenta - uma tendência que o progresso tecnológico está a acelerar.
Há outra dimensão da participação nos lucros que tem recebido pouca atenção, relacionada com os monopólios e concorrência. Com a tecnologia digital moderna, a economia de escala é tão grande que já não faz sentido exigir que, por exemplo, 1.000 empresas produzam versões do mesmo bem, cada uma respondendo a uma milésima parte da procura total.
Uma abordagem mais eficiente seria ter 1.000 empresas, com cada uma a criar uma parte desse bem. Quando se trata de automóveis, por exemplo, uma empresa produziria todas as manetes de mudanças, outra produziria todas as pastilhas de travões, e assim por diante.
A legislação tradicional anti-monopólio e pró-concorrência - que começou em 1890 com a Lei Sherman nos EUA - impede que um sistema tão eficiente se estabeleça. Mas o monopólio da produção não precisa de significar um monopólio dos rendimentos, desde que as participações em cada empresa sejam dispersas. É tempo de uma mudança radical, que substitua as leis tradicionais anti-monopólio por uma legislação que exija uma maior dispersão das participações em cada empresa.
Estas ideias ainda não foram testadas, pelo que seria necessário muito trabalho antes de as pôr em prática. Mas, com o mundo a passar de uma crise para outra, e com a desigualdade a crescer, não nos podemos dar ao luxo de manter o status quo. A menos que enfrentemos o desafio da desigualdade, a coesão social e a própria democracia ficarão ameaçadas.
NOTA
Kaushik Basu, antigo economista-chefe do Banco Mundial, é professor de Economia na Cornell University.
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