Por
João Abel de Freitas,
Economista
01 Junho 2020
Não concordo que a Cultura não deve ser vista pelo
ângulo da economia. Deve, no sentido global da Economia “político/pública”, e
também ser gerida por princípios de eficiência.
Os meus últimos artigos cruzaram-se com aspectos da
União Europeia, em que se procurou realçar a falta de solidariedade sistemática
de um grupo de países ditos do Norte para com os restantes em termos de
política de cooperação no desenvolvimento. E a necessidade de abanar essa
realidade podre.
A recusa mais recente pela Áustria, Dinamarca, Holanda
e Suécia do plano apresentado por Angela Merkel e Emmanuel Macron para o
relançamento da economia europeia, na sequência da pandemia, é um insulto aos
países europeus do Sul, designadamente pelos fundamentos da rejeição:
“permitiria que as economias europeias menos disciplinadas e mais fracas
beneficiassem indevidamente de um financiamento mais barato, graças às
economias mais fortes dos países do Norte”.
Maior falta de solidariedade e pudor é difícil de se
manifestar de maneira tão expressiva. Resta-nos apenas questionar os fins do
projecto europeu, se a cooperação no desenvolvimento passa ao lado!
1. O tema de hoje é, porém, a Cultura na sociedade portuguesa – entendida
como o espaço das indústrias culturais e criativas (ICC). É bastante ousado da
minha parte entrar neste tema, não sendo do sector, nem um estudioso do mesmo.
Com esta limitação, o que tentarei referenciar é a
importância da Cultura na sua dinâmica com a economia, o significado/medição
que, hoje, detém a Cultura em Portugal em termos de grandes números, chamando a
atenção para a leitura desses números, pois a Cultura neles traduzida abarca
actividades muito diversas, desde os produtos das TV’s, aos grandes grupos
editoriais, às agências de publicidade, até ao designer a recibo verde,
passando pelo artista criativo ou actor em trabalho individual e intermitente.
E, finalmente, a situação de precariedade nas relações de trabalho das pessoas
destas actividades económico-culturais.
E porque entra aqui a Covid-19?
Porque foi a pandemia que veio pôr a nu a situação
caótica, precária e de desespero em que muitas pessoas ligadas a esta
actividade se encontram em termos de garantia de trabalho e de miséria na retribuição
remuneratória, por não terem relações de trabalho definidas nem uma carreira
profissional.
Daí a indignação justa dos profissionais que avançaram
e bem para um movimento alargado de reivindicação junto do Governo por uma
política cultural em bases sólidas para o País. É evidente acentuar: uma
política sólida das ICC não pode deixar de responder à situação caótica
existente nas relações laborais.
A Cultura e a Economia
2. As actividades culturais e criativas assumem cada vez mais um dinamismo
crescente na criação de emprego e riqueza em cada país. E quando bem
alicerçadas em projectos sólidos e projectadas nos mercados, constituem um
elevado factor de competitividade económica, social e do território.
São muitos os espaços conhecidos, sobretudo cidades
por esse mundo fora, em que a Cultura na sua diversidade funciona de chamariz
das pessoas. São museus, centros de congressos, exposições, concertos,
festivais de cinema, de jazz, de teatro, campos de pesquisa, etc. e, a um outro
nível, a integração/divulgação de forma inovadora das realidades históricas em
circuitos do conhecimento.
A sua interligação com o turismo é cada vez maior,
dando origem à vertente multifacetada do turismo cultural ou da descoberta
económica. O seu impacto em muitas outras áreas da economia está em
alargamento. Aliás, a conta satélite da Cultura, que merece aprofundamento e
divulgação de resultados, aponta nesse sentido.
A indústria cultural portuguesa não vinha a acompanhar
a dinâmica da União Europeia no pré-Covid-19. A cultura como componente
económica importante que gera dinheiro, emprego e riqueza “assentou raízes” na
UE, tanto que se tornou/é um dos motores mais dinamizadores da economia
europeia. O seu contributo para a criação de riqueza é, assim, na maior parte
dos países avançados, superior em duas ou três vezes ao do nosso país (6-7%,
quando em Portugal anda oscila entre 2 a 3%).
Em Portugal, apesar da importância que já detêm as
actividades da Cultura, muitos segmentos estão ainda em subdesenvolvimento. A
saída deste atraso exige uma estratégia e um orçamento à altura que coloque o
país em linha com a Europa. Exige colocar as ICC no centro do desenvolvimento
como preconizam muitos estudos internacionais. A elaboração dessa estratégia
requer uma participação real dos agentes do sector.
Os grandes números das Indústrias Culturais e
Criativas
3. As pessoas ao serviço das ICC, em 2018, eram, segundo o INE, pelo menos
131,4 mil, correspondendo a 2,7% do emprego total do País, quando, em 2015,
eram 117,2 mil (2,6% do total). Isto significa que o sector em três anos criou
24,2 mil empregos –muitos deles precários, é certo.
Recuando um ano, pelo facto de dispormos de maior
número de variáveis, as actividades culturais e criativas registavam 61.916
empresas, 113,4 mil trabalhadores, 1,3 mil milhões de euros de gastos com
pessoal e um volume de negócios de 6,3 mil milhões de euros. Os gastos com o
pessoal são inferiores a 20% do volume de negócios, um rácio muito desfavorável
quando comparado com a grande maioria dos sectores económicos similares.
Indicadores económicos interessantes
A distribuição dos trabalhadores pela dimensão das
empresas, segundo escalões de emprego, era a seguinte: empresas com menos de 10
pessoas ao serviço empregavam 80.595 trabalhadores; empresas situadas no escalão
de emprego (10-49), 16.163 trabalhadores; empresas do escalão (50-249), 10.738,
e as empresas com 250 e mais pessoas ao serviço, 5.859 pessoas.
No ano de 2018, 57,8% dos 131,4 mil trabalhadores
destas actividades tinham curso superior contra 26,8% no emprego global; 26,1%
curso secundário ou pós-secundário contra 27,1% no emprego global; e 16,1%
habilitações ao nível 3ºciclo do ensino básico contra 45,9% no emprego geral.
Há uma diferença bem marcante de habilitações nas
actividades culturais e criativas. Acresce que é um sector bastante jovem face
ao emprego global: 35,5% com idade inferior a 35 anos contra 25,3%. Em síntese,
a sua melhor qualificação e o predomínio de recursos humanos jovens reúnem
francas potencialidades de desenvolvimento, se alicerçado numa estratégia e
recursos financeiros à altura.
Uma reorganização que se impõe
A grande anarquia em termos de relações laborais que
caracteriza as ICC acentuou-se e tornou-se dramática com a Covid-19. A ministra
da Cultura não teve “arte” para minimamente agarrar a situação caótica, mesmo
quando avançou com linhas de apoio de emergência às artes. Nem o lay-off,
ou uma sua variante, foi aplicada com decência social.
A sua
precariedade é aguda, em muitos casos pelo tipo de trabalho intermitente e pelo
facto de terem de andar a oferecer a sua força de trabalho a várias entidades,
a angariar trabalho quase à jorna.
Não concordo, como por vezes vejo escrito, que a
Cultura não deve ser vista pelo ângulo da economia. Deve, no sentido global da
Economia “político/pública”, e também ser gerida por princípios de eficiência,
diferente de ser vista predominantemente sob a óptica do lucro.
Nas ICC, os aspectos da Cultura devem interpenetrar-se
profundamente com os do Trabalho e da Economia como nas restantes actividades,
de maneira a que a sociedade possa articular-se e movimentar-se de forma
harmoniosa.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sem comentários:
Enviar um comentário