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sábado, 21 de outubro de 2023

Disse o abastado: "Não sei nada de POBREZA"

 

Cristina Pedra recusou, ontem, a existência de pobreza extrema na Madeira dizendo que o País e a Madeira, "estão bem longe da tristeza que é a falta de rendimento" (...) na Madeira não é preciso roubar para comer" (...) porque "há uma rede integrada de associações e entidades" que garantem refeições em lugares condignos. (Dnotícias, página 13, 21.10.2023)



Não existem aqui palavras transcritas fora do contexto. Seja em que contexto for, sublinho, o peso daquelas declarações vale pelas palavras ditas. E sendo assim, assumo que a Senhora Vice-Presidente da Câmara Municipal do Funchal não sabe nada sobre pobreza. Ao ler as suas declarações, lembrei-me de uma situação vivida, no Brasil, por um amigo meu, situação que, aliás, já aqui descrevi. Jantava na casa de um abastado. A páginas tantas, questionou-o sobre as favelas. A resposta veio célere: "Amigo, eu não sei nada de pobreza". O assunto ficou ali esclarecido.

Com aquelas declarações, a Drª Cristina Pedra clarificou o seu posicionamento: desde que haja uma rede que, digo eu, esconda a pobreza extrema ou não, desde que se disponibilizem uns apoios financeiros, desde que o associativismo possibilite umas salas, mesas, cadeiras e umas refeições, tudo com dignidade, o drama da pobreza fica resolvido ou atenuado e a consciência política tranquilizada. Ora, em circunstância alguma, devemos adoçar as asperezas da vida e a dignidade do ser humano. As questões sociais devem ser encaradas com a máxima frontalidade e de forma nua e crua. Muitas vezes leio assuntos que me preocupam, mas deixo-os passar. Falta-me a paciência. Desta vez, não. Irritou-me. Porque, enquanto cidadão e porque sou feliz, pergunto-me: por que raio muitos milhares não o são?

Não é de migalhas que os excluídos precisam. A esmagadora maioria precisa de um pensamento económico estruturado que torne mais igual o que é estruturalmente assimétrico e dependente; a esmagadora maioria dos pobres não precisa quem lhes venham dizer que "têm de tomar a cana em suas mãos e pescar", quando o pensamento político rouba-lhes as canas, as linhas, os anzóis e o próprio isco em benefício de alguns que conhecem bem os corporativismos, os subtis "monopólios", as "fortunas mal explicadas", os interesses partidários e, sobretudo, as teias e os labirintos dos vários poderes; a esmagadora maioria precisa de uma escola para a vida e não de uma escola que, sorrateiramente, promova a triagem fazendo-os desistir; a esmagadora maioria precisa de salários decentes que evitem a rua, a mão estendida à caridade (palavra que me irrita), a vergonha e o assistencialismo que cresce à vista desarmada; a esmagadora maioria precisa de uma cultura e mentalidade que a escola e a família não disponibilizam; a esmagadora maioria necessita de políticos que não olhem para a eleição seguinte, mas para a geração seguinte. Tanto que aqui me apetece  dizer! 

Ora, Senhora Vice-Presidente, não me leve a mal, mas tal como o outro, o brasileiro, repito, a Senhora não sabe nada de pobreza, não conhece o círculo vicioso da pobreza e as inúmeras iliteracias que por aí andam. Do pouco que sei e por aquilo que sou, digo-lhe que, em circunstância alguma, seria capaz de olhar para a pobreza circunscrita à necessidade de uma refeição. Porque a pobreza é muito mais do que isso. Resolvendo as outras, as estruturais, reduzem-se ou resolvem-se as das associações assistencialistas. E o que é grave é que a Senhora sabe, ora se sabe, que há seres humanos que trabalham e são pobres. Alguns extremamente pobres! Se pagam o tecto falta-lhes capacidade para cobrir outras e importantes carências de bens e serviços essenciais; se pagam a habitação, falta-lhes para a saúde, para a educação e para a cesta básica dos alimentos. Por aí fora!

A Drª Cristina Pedra sabe, ora se sabe, que, por algum motivo, nos últimos anos, 17 000 pessoas, a maioria jovens, saíram da Madeira, certamente porque, na Região, não viam futuro; sabe, que o tecido empresarial está maioritariamente esfarrapado; sabe que, segundos os últimos Censos, 36.485 residentes não terminaram a primeira fase (4º ano); 50,3% tinham escolaridade até ao 9º ano; 15 em cada 100 não tinham qualquer nível de escolaridade; 8,1% com 15 ou mais anos não possuíam nível de escolaridade completo e o analfabetismo continua superior à média nacional. Quase 50 anos depois de Abril! Certamente que também sabe da existência de políticos sem um pingo de decência e sem um mínimo de pudor, que saquearam e atiraram os que viviam com alguma dignidade para o grande buraco da pobreza escondida; sabe, ora se sabe, que 32% são pobres, o que equivale, aproximadamente, a 75.000 na Região da Madeira. Sabe, ora se sabe, que existem muitos milhares que vão vivendo. Não morrem de fome, isso não, sobrevivem, conjugando, diariamente, o verbo esticar. Porque, entre outras instituições, o Banco Alimentar (durante anos a fio negado pelo seu partido político como uma instituição desnecessária), a Cáritas, a Cruz Vermelha, as paróquias, a agricultura de subsistência e muitas pessoas de coração enorme, atenuam os dramas e disfarçam a situação. Foi a secretária dos Assuntos Sociais que, na mesma edição, falou da existência de 3 000 famílias que beneficiam de um apoio de € 80,00 mensais para ajuda às despesas mensais fixas. Portanto, como Vereadora na autarquia do Funchal, julgo que devia calçar as sapatilhas e meter-se pelos caminhos, becos, travessas e impasses do Funchal, entrar nas casas, falar com as pessoas e tomar consciência do cheiro da pobreza! Não é necessário ir para outros concelhos. Aqui mesmo, à sua beira, quase à saída do edifício central da Câmara.

Senhora Vice-Presidente, a Senhora sabe, ora se sabe, como se chegou a esta situação numa Região que tinha tudo para ser próspera e distintiva. Porque somos poucos. Sabe como foram desenhados os contornos do regabofe financeiro, a partir do qual impende, hoje, uma austeridade paralisante. Houve e há aqui, também, uma pirataria organizada e uma pilhagem que está a ser, silenciosamente, consumada. 

Ai se JUSTIÇA houvesse! Temos mais direitos que justiça social. 

Ressalvo, Senhora Vice-Presidente, o que aqui deixo não é contra si, é contra uma política que utiliza os pobres para a sua própria sobrevivência. E por incultura sentem-se agradecidos pelas migalhas.

Ilustração: Google Imagens.

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