Por
Hoje, com a guerra da Ucrânia, a desdolarização passou a ser um tema presente na comunicação social internacional, com relevo na comunicação escrita e abordado nos mais diversos ângulos.
Há quem não se fique por medidas paliativas e lhe aponte um “míssil”: a criação de uma moeda alternativa ao dólar.
Mas, falar de desdolarização requer umas linhas prévias, breves, sobre o percurso do dólar (EUA) no ganho de tanta influência e pujança na economia Mundo.
O dólar como moeda que domina o Mundo é uma consequência da Segunda Guerra Mundial.
Até aí comandava a libra esterlina. Mas o estado de fragilidade, em que a economia britânica sai da Segunda Guerra, tornou impraticável a sua continuidade de liderança.
E o dólar, que, na Segunda Guerra, ainda mais se reforçara, inclusive pelos lucros das vendas de armamento e dos empréstimos financeiros aos seus parceiros e, depois, com o plano Marshall de apoio à reconstrução da economia europeia, acentua o estatuto de única moeda forte, substituindo, assim, naturalmente a libra nas suas funções, designadamente como moeda de reserva mundial e principal veículo de transação comercial e serviços.
Múltiplas são as consequências dessa situação na economia como um todo, sendo a principal, uma elevada dependência dos países dos EUA. Por exemplo, os bancos centrais mundiais passaram a acomodar nas suas reservas cambiais uma elevada percentagem em dólares que, segundo o FMI, em finais de 2022, era da ordem dos 60% e as trocas comerciais e de serviços tornam-se predominantes em dólares até agora.
Com a guerra da Ucrânia, as sanções económicas contra a Rússia geram um ambiente de desconfiança mesmo em países (economias emergentes) com poucas ou nenhumas ligações directas com a guerra.
O medo de represálias levou a uma corrida na diversificação das reservas cambiais dos bancos centrais de muitos países, no sentido de reduzir a dependência do dólar na constituição dos seus activos.
Como se liga esta situação das reservas cambiais com a intranquilidade gerada pelas sanções?
Não nos podemos esquecer que quem tem o domínio da moeda universal pode limitar/paralisar o funcionamento da economia de outro país através da aplicação de sanções económicas variadas.
Foi o que aconteceu com o congelamento de activos do Banco Central da Rússia. Quase 300 mil milhões de dólares russos foram congelados, em todo o Planeta, pelos países do mundo ocidental, para além da sua expulsão do sistema Swiftt, ou seja, do mecanismo, criado em Bruxelas em 1973, visando tornar fáceis e rápidas as operações entre as instituições financeiras do Mundo. Anote-se que a expulsão de um país deste sistema não prejudica apenas o país expulso, condiciona também os países com quem negoceia, pois deixam de poder operar entre si, em dólares.
Os países emergentes olhando para estes procedimentos dos EUA (que, aliás, já conheciam de outras situações) ficaram receosos e começaram a agir no sentido de transformar esta composição de activos, na medida em que esta elevada dependência constituía uma fonte de grande vulnerabilidade para as suas economias.
Nada lhes garante que não viessem a deparar-se com uma situação semelhante, caso viessem a passar por um problema de relacionamento difícil com o país do dólar.
Mas um outro problema ocorre nesta diversificação. Que moeda ou moedas escolher?
O euro, a libra, o iene, etc. Estas não, pois são moedas do campo do Ocidente, facilmente alinhadas com o dólar, ou seja, de risco idêntico.
Outras moedas como o real, a rupia, o rand e muitas outras não oferecem o mínimo de garantias devido à sua grande volatilidade (depreciação) e ainda nenhuma garantia de que, como represália, não pudessem ser expulsas do Swift.
A única “reserva de valor” segura era o ouro. E aqui se inicia uma certa corrida ao ouro.
E as estatísticas sobre transacções do ouro vêm confirmar movimentações significativas. Por exemplo, entre 24 fevereiro de 2022 (data da invasão da Ucrânia) e a aplicação das sanções, a China adquiriu cerca de 200 toneladas de ouro. O mesmo aconteceu com outros países.
Eis uma consequência das sanções económicas com efeitos na redução da fatia de incidência do dólar a nível mundial.
Mas outras movimentações, já antes em curso, aceleram-se através de acordos de transacções de bens em moeda própria (ou do país comprador ou do país vendedor ou nas duas).
Sobretudo nas energias e produtos agrícolas esta movimentação está a acelerar-se, mas também nos minérios, muitos deles estratégicos na transição energética como o níquel, cobre, terras raras, lítio, etc.
Antes, utilizava-se muito a designação de petrodólares. Hoje, desconhecendo qual a percentagem média de petróleo transaccionado em dólares, sabemos que muito do petróleo da Rússia é numa das moedas dos países intervenientes, mas não só. Hoje, há contratos até de longo prazo entre diversos países da OPEP e países compradores como a China, Índia e muitos outros em moedas como a rupia, renmindi, real. Deste modo, fatias de dimensão variável em diferentes mercados estão a sair da órbita do dólar.
E aqui interrogamo-nos, até onde isto irá?!
Não tenho resposta. Mas ligado a esta questão, a experiência empírica mostra que o dólar e a economia do Ocidente estão a ser afectados por um grupo muito representativo de países que assumiram uma posição de não alinhamento nas sanções económicas contra a Rússia. Um não alinhamento que não é de índole política, mas de interesses económicos, de negócios. Uma neutralidade estratégica.
Países como a Índia, a Indonésia, a Arábia Saudita e mesmo o Brasil, embora mantendo relações próximas com os países do Ocidente, não alinharam nas sanções porque procuram manter relações económicas equilibradas e alargadas.
No entanto, esta neutralidade apresenta, por vezes, limitações. Os EUA ameaçam certos contratos, fazendo mesmo abortar alguns. Entre outros, cite-se “a compra” pela Indonésia de aviões de combate Soukhoi-35 russos por troca de óleo de palma que foi anulado. E este desrespeito e pressão, escusado será dizer, mina a confiança.
A terminar, o míssil contra o dólar – uma outra moeda. Lula da Silva é um acérrimo defensor em palavras de uma moeda comum dos BRICS, uma moeda para substituir o dólar nas suas relações comerciais e financeiras.
A libra esterlina saiu de cena porque a economia britânica quase entrou em falência. Esta não é a situação da economia americana que embora enfrente problemas sérios, continua a dispor de “armas” económicas de defesa. O conjunto de países que falam de moeda alternativa têm economias tão diferenciadas e frágeis que não aconselham esse caminho a curto prazo. Primeiro têm de estabilizar e desenvolver as suas economias e relações comerciais. Precisam de amadurecer o caminho.
Conclusão. Nada está amadurecido: nem o dólar para “cair”, nem as condições para a criação de uma nova moeda alternativa. Nem creio que um país, como a China, que necessariamente deveria estar interessado no afundamento do dólar veja interesse na criação de uma moeda com pés de barro.
Sem comentários:
Enviar um comentário