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segunda-feira, 6 de julho de 2020

Gato & Rato


Por 
Angela Silva, 
in Expresso, 
04/07/2020

Esta é a saga de um professor e de um aluno que, após 40 anos de encontros e desencontros, coincidiram no topo do Estado. Adoram jogar, competem entre si, mas já não vivem um sem o outro. A covid, as presidenciais (e o faro) tornaram-nos cúmplices. Até ver...

Tom e Jerry é uma velha série de curtas-metragens sobre dois simpáticos animais, um gato e um rato, para quem a vida é um eterno jogo, uma divertida rivalidade e um histórico sucesso de bilheteira. A coabitação entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa não foge muito a este guião. Não são propriamente rivais nem consta que se queiram comer um ao outro (estão, aliás, a viver uma superlativa lua de mel sob o signo da covid e com os cálculos para a reeleição de Marcelo em pano de fundo). Mas, como acontece com o gato e o rato, o destino dos dois está ligado, e Tom e Jerry também viveram tempos pacíficos. Em 1971, Hanna e Barbera, que 30 anos antes tinham criado a série, associaram-se com a MGM Television para fazer uma nova temporada em que Tom e Jerry regressavam como amigos. Não tiveram o mesmo sucesso — aparentemente, o público preferia-os como adversários, exatamente como acontece com a direita portuguesa, que odeia ver Marcelo aninhado em Costa. Mas a dupla resistiu.

Por cá, que a dupla política do momento continua a assinar uma marca poderosa são as sondagens que o dizem. Ninguém tira aos dois homens fortes do regime entre 60% e 70% de popularidade. E os protagonistas não brincam em serviço quando se trata de zelar pela marca ao milímetro, como prova o facto de nem um nem outro ter querido falar com o Expresso sobre os quase 40 anos em que por várias vezes se cruzaram, primeiro na vida académica, depois na vida política. Um só falava se o outro falasse; um talvez falasse, o outro não queria; um não queria, o outro talvez quisesse. Mas estava tudo combinado — não falava nenhum.

A situação não está para brincadeiras. António Costa está em alta, mas o controlo da epidemia escorrega-lhe das mãos e o que tem pela frente pode a qualquer momento virar-lhe o jogo. Marcelo vai a votos daqui a seis meses e, porque precisa da esquerda, deixou-se agarrar por um momento felino de Costa, que ficará para a história como o 13 de maio na Autoeuropa. Após cinco anos de coabitação no topo do Estado em que houve de tudo — convergiram, divergiram, chocaram de frente, desconfiaram um do outro, amuaram, espicaçaram-se em público e acabaram de mãos dadas —, Presidente da República e primeiro-ministro sentem-se reféns um do outro.

Costa porque precisa do apoio do Presidente, que chega ao povo para almofadar as sequelas do terramoto económico e social que aí está. E Marcelo porque, com a direita a valer 30%, precisa dos votos socialistas para somar com folga os 51% necessários. Mas, como entre os dois o jogo nunca pára, mais do que pôr as mãos no fogo pela trama que se segue é aconselhável esperar pelas cenas dos próximos capítulos. Até porque o tempo opera sempre alterações nos personagens. Na saga cinéfila, Jerry (o rato) permaneceu bastante estável, mas a personalidade de Tom mudou consideravelmente. No início, andava sobre quatro patas e comportava-se sempre ao ataque, mas com o tempo passou a andar sobre duas patas e a ter um registo mais humano, ao ponto de sentir culpa por alguns comportamentos contra Jerry. Há episódios em que o gato chega até a parecer deprimido. E embora nestes cinco anos Marcelo e Costa tenham alternado nos dois papéis — nos fogos de 2017, o Presidente foi o gato que engoliu o rato, mas na gestão da pandemia foi o primeiro-ministro quem soube agarrar o parceiro —, a verdade é que Marcelo Rebelo de Sousa entrou em cena com a expectativa de ser o felino e foi ele quem mais surpreendeu o público por, em vez de comer o rato, se ter em alguns momentos deixado comer por ele.

Diogo Lacerda Machado, grande amigo e confidente de António Costa, exibe, aliás, confiança na prevalência do suposto rato desta história, que, como se tem visto, é tão ou mais jogador do que o Presidente da República. “Marcelo já não consegue surpreender o António”, arrisca Diogo, convicto de que António percebeu que o Presidente já não tem a mesma jovialidade e que “isso também lhe diminui a imprevisibilidade”. Com uma ressalva: “Desde que Marcelo não volte à juventude depois dos 70...” Quem trabalha com o Presidente em Belém aconselha prudência, porque “Marcelo já não toca às campainhas [coisa que fazia na juventude], mas se for preciso ainda abana a cama da avó para simular um terramoto [que o próprio confessou ao biógrafo Vítor Matos que adorava fazer na infância]”. Nas sagas de sucesso, todo o cuidado é pouco. E Marcelo e Costa andam há 40 anos a surpreender-se um ao outro.

Ironicamente, a 5 de março de 2021, a Warner Bros. projeta o lançamento de um novo filme sobre a eterna aventura do gato e do rato. E quatro dias depois, em Lisboa, tomará posse o próximo Presidente da República, que, tudo indica, será um reeleito Marcelo Rebelo de Sousa. Também para os dois (ele e Costa) será o início de uma nova aventura, agora com o picante inerente a um segundo mandato presidencial, que a tradição diz ser sempre mais interventivo mas que, desta vez, tem condimentos acessórios: uma crise sem precedentes que leva o primeiro-ministro a contar com um Presidente amigo na gestão de uma das mais dramáticas páginas da história recente.

Para já, há um pacto firmado nas ‘barbas’ do país. Costa não apoiará outro candidato a Belém e os socialistas ajudarão a engrossar a esperada reeleição do atual Presidente; e o atual Presidente não faltará no apoio ao Governo, apesar dos riscos de desgaste se a crise da covid começar a queimar o poder político. Consciente de que pisa gelo fino, Marcelo preveniu-se com uma declaração justificativa no Expresso — “Não se espere que o Presidente crie uma crise política ou um afrontamento com o Governo durante uma pandemia em que existe um esforço comum.” Mas o PR conhece a astúcia do parceiro e sabe que António Costa foi hábil quando, há meses, lhe ofereceu a dianteira e lhe sugeriu que fosse ele a falar no final das reuniões com especialistas que, semana após semana, vão dando pistas para a gestão da crise. A última deu para o torto, Costa atirou culpas para os técnicos pelo desnorte dos políticos que não conseguem controlar os contágios na Grande Lisboa, e Marcelo, que preocupa os amigos porque “já se atravessou demais”, teve de fazer as honras da casa. Subitamente, o mundo político parecia de pernas para o ar — o primeiro-ministro a reconhecer que há problemas e o Presidente da República a deitar água na fervura. A atual temporada, confirma-se, é de compromisso. Mas nada de precipitações, porque a história desta dupla é um filme animado.
Cúmplice Quando chegou a Belém, Marcelo confiou que Costa seria moderado e, sem uma alternativa à direita, jogou na estabilidade. O PM confessou que Marcelo “ajudou muito” MÁRIO CRUZ/LUSA

“AINDA HOJE 
ACHO QUE FOI O COSTA”

“António Costa diverte-se com Marcelo Rebelo de Sousa desde a Faculdade”, recorda Diogo Lacerda Machado, que foi colega do primeiro-ministro em Direito e lembra-se do fascínio dele pelas aulas do professor mais popular da clássica Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. “Marcelo era divertido, e o António adorava as aulas.” Só se queixava de que ele falava a mil e era difícil tirar notas, mas que importância tinha isso quando tudo o resto era lucro. Aulas nada chatas, ambiente bem-disposto e um convívio raro entre professor e alunos, com direito a jantares na Churrasqueira do Campo Grande, na Portugália da Almirante Reis ou no David da Buraca, muitas vezes com prolongamento para discotecas.

Extrovertido e excêntrico, Marcelo chegou a alinhar com os alunos em incursões no Plateau e no Kremlin, como relata Vítor Matos na biografia “Marcelo Rebelo de Sousa”. Mas por detrás da boa relação professor-aluno, que chegou a levar Marcelo a dar um raro 17 a Costa em Direito Público Comparado, e do clima de galhofa que ambos curtiam, havia um cimento especial: um e outro adoravam política, e Marcelo foi rápido a farejar um futuro promissor ao então ativista na Associação de Estudantes, que após uma primeira aliança com o PCP acabou por conseguir, com raros dotes de oratória e de negociação, levar o PS ao poder na Faculdade.

No último ano do curso, em 1985, a relação estreitou-se ainda mais. Costa foi um dos três alunos eleitos para a Comissão de Finalistas que iria organizar a viagem de fim de curso. E passou a ter reuniões com o presidente do Conselho Diretivo, que era Marcelo Rebelo de Sousa. Lacerda Machado integrava o grupo e diz que “era visível que Marcelo olhava para o António de forma diferente. Aos outros, ele achava graça, mas o António distinguia-se por ser top nas cadeiras políticas, e era evidente que ele dava-lhe mais atenção”.

Era de tal maneira que, quando precisaram de pedir ajuda para angariar fundos para a viagem de finalistas, os outros apertaram com António: “Tu é que pedes, que ele a ti dá.” E Marcelo deu-lhes uma ideia: aparecerem num jantar de antigos alunos da Faculdade e levarem um caixote na mão para os contributos. Os três fizeram-se ao caminho, tiveram sorte, mas quando foram desafiados pelos ex-alunos para se sentarem à mesa Diogo conta que olhou para o lado e António Costa já lá não estava: “Ele pediu e pirou-se.” Disse que tinha atividades inadiáveis da JS (Juventude Socialista). A política estava sempre primeiro.

Quatro anos após terminar Direito, é já na política pura que António Costa volta a cruzar-se com Marcelo Rebelo de Sousa. Muito ligado a Jorge Sampaio, em cujo escritório de advogados estagiara, Costa é chamado para dirigir a campanha do então líder socialista à presidência da Câmara Municipal de Lisboa e vê-se subitamente envolvido num duelo político com Marcelo Rebelo de Sousa, que se candidatou pelo PSD. Todas as sondagens davam a derrota ao professor, e a desconfiança minou a campanha que marcaria o primeiro embate político entre ‘o gato e o rato’. “A minha taxa de notoriedade era dramática e foram precisas várias ações de campanha espetaculares para chamar a atenção dos lisboetas” reconheceu recentemente Marcelo ao “Observador”. E foi o desespero de querer combater os 80% que os estudos de opinião davam ao candidato de Costa que o levou ao célebre mergulho no poluído Tejo, a andar a conduzir um táxi ou a passar uma horas pendurado num carro de recolha de lixo.

Conhecedor da postura ‘fora da caixa’ do antigo professor, António Costa aconselhou Sampaio a demarcar-se dos números mediáticos do adversário e a assumir uma atitude madura. “O Rebelo de Sousa é um rapaz divertido, mas eu não ando a brincar com Lisboa e com os lisboetas”, atirou-lhe Jorge Sampaio no frente a frente televisivo que deixou Marcelo no tapete. O resto foi o que se viu: Sampaio ganhou com 49% e Marcelo ficou sete pontos atrás. Nas ruas de Lisboa, os cartazes do candidato do PSD onde começara por se ler “Marcelo” exibiam há semanas duas letras a mais — “TV Marcelo”, marca de uma empresa de reparações. Alguém tinha jogado na descredibilização do candidato da direita, e o visado não tem dúvidas: “As maiores maldades que a campanha de Jorge Sampaio me fez, atribuo-as a ele [António Costa]”, relatou o próprio a Bernardo Ferrão e a Cristina Figueiredo no livro “Os Caminhos de António Costa para Chegar ao Poder”. “Ainda hoje acho que foi o Costa. Ele foi muito útil ao Sampaio, que era um bocado ingénuo”, confessou. Já ao atual primeiro-ministro, se há coisa de que Marcelo nunca o acusou foi de ingenuidade.

“ELE TAMBÉM NÃO É UM GÉNIO”

Exatamente por isso, a jogada de Costa para chegar ao poder após ter perdido as eleições em 2015 não surpreendeu o comentador televisivo Marcelo Rebelo de Sousa. Por esses anos, eles falavam muito, Marcelo era simpático com Costa, mas nem por isso achou que a tarefa fosse fácil. Pelo contrário, chegou a dizer que “só um génio” ganharia as eleições para o PS após o terramoto José Sócrates e que “ele [Costa] também não é um génio”. Outra coisa é ser arguto, e aí Marcelo nunca teve dúvidas. Mal lhe ouviu o discurso de derrota na noite eleitoral, percebeu o ‘golpe’ e antecipou: “Ele deve ter na cabeça um Governo minoritário com o apoio dos outros partidos.”

Luís Marques Mendes diz que “Marcelo sabe que o António Costa é um político muito talentoso e foi das primeiras pessoas a perceber que aquela solução de Governo iria acontecer”. E porque argúcia com argúcia se paga, se tinha chegado a hora de ambos coincidirem no poder, para quê perder tempo? No domingo seguinte, o país já não teve direito ao comentário dominical do professor, porque os seus calendários foram subitamente acelerados. Na quinta-feira, decide precipitar o anúncio de que será candidato a Belém e convoca a comunicação social para o dia seguinte. Na sexta-feira de manhã sabe-se que vai anunciar à tarde a candidatura. E assim Marcelo escapou de dizer o que pensava da ‘geringonça’, com a qual sabia estar condenado a entender-se. Calculismo, ziguezagues, imprevisibilidade e surpresa nunca faltarão neste enredo.

QUANDO MARCELO LEVOU ANTÓNIO A MENTIR

“Seria mau que este Governo não durasse quatro anos. A estabilidade é um bem que não pode ser desbaratado.” A frase é de Marcelo e podia ter sido dita em novembro de 2015, quando o Governo minoritário de António Costa tomou posse. Mas é de 1996, quando Marcelo liderava o PSD na oposição e Costa era secretário de Estado do Governo de Guterres. É importante porque mostra como, apesar da célebre fama de instável e conspirativo, Marcelo Rebelo de Sousa, entre abrir uma guerra e comprar a paz, normalmente escolhe a segunda.

Foi assim em 2016, quando o ambiente político era de cortar à faca e o Presidente, mal chega a Belém, não hesita em pôr-se ao lado do primeiro-ministro, apostado em ajudar a descrispar o ambiente cá dentro (a começar pelo sistema financeiro, que voltava a fazer tocar as campainhas) e a legitimar a imagem da ‘geringonça’ lá fora. Já tinha sido assim 20 anos antes, quando Marcelo chegou a líder do PSD e garantiu a António Guterres que não lhe derrubaria o Governo minoritário e que até estaria empenhado em viabilizar-lhe os quatro Orçamentos do Estado. Foi aí que Marcelo e António Costa voltaram a cruzar-se, e desta vez, com um no poder e outro na liderança da oposição, viram-se obrigados ao diálogo e à negociação. Mas nem por isso as jogadas e diatribes deixaram de ser imagem de marca.

Marcelo tratou de mostrar que é possível compatibilizar uma postura de estabilidade política com uma aguerrida estratégia de oposição (o que ele gostaria de ver hoje em Rui Rio). E durante três anos infernizou a vida ao guterrismo. António Costa tutelava os Assuntos Parlamentares, uma pasta que o obrigava a coordenar a relação com os partidos no Parlamento e com o PSD em particular. Tanto mais que a agenda política da época envolvia uma panóplia de assuntos que exigiam negociação entre os dois maiores partidos, a começar pela revisão constitucional e a acabar nos dois referendos, à regionalização e ao aborto, que Marcelo impôs, que acabaria por ganhar e que funcionaram como condição para viabilizar os Orçamentos de Guterres.

Marques Mendes, que como líder parlamentar de Marcelo teve um papel central nessas negocia­ções, garante que António Costa nunca foi nesta fase um interlocutor direto de Marcelo Rebelo de Sousa. O líder do PSD “tratava diretamente dos dossiês mais importantes com António Guterres e com António Vitorino”, que era o ministro da Presidência. Mas quando Vitorino saiu do Governo e Costa subiu a ministro, viu reforçado o seu papel, e há um episódio que marcará para a história o dia em que a estratégia do jogador Marcelo levou o jogador Costa a mentir.

Estava-se em 1997, o PSD já tinha aprovado um Orçamento, e Marcelo percebe que politicamente é urgente conseguir ganhos de causa. É quando convence Guterres de que para aprovar o OE seguinte precisa de dar a entender que tinha o PS nas mãos. E para isso os socialistas teriam de deixar cair uma medida emblemática e mostrar que o tinham feito para satisfazer uma exigência do maior partido da oposição. De um dia para o outro, novos cartazes do PSD invadiram o país — “Pena máxima para coleta mínima” —, ameaçando provocar uma crise se o Governo não desistisse de avançar com a coleta mínima para o IRC e o IRS dos trabalhadores independentes que, teoricamente, Guterres se preparava para aplicar.

Eis senão quando o jornal “Semanário” obtém a notícia de que o Governo vai deixar cair a coleta mínima e já estará tudo combinado entre Guterres e Marcelo. O jornal tem fontes dos dois lados que confirmam a história, mas ninguém dá a cara, e o editor de Política, Paulo Baldaia, diz que é preciso confrontar o Governo. “O Filipe Santos Costa, que escreveu a história, e o Raul Vaz, que era diretor, tinham informações que sustentavam a notícia”, recorda Baldaia. Mas o assunto não foi pacífico e decidiram pedir uma reação ao gabinete do primeiro-ministro. A resposta chegou num telefonema de António Costa para o editor: “Estou a ligar-lhe a pedido do primeiro-ministro e o que tenho para lhe dizer é em on. O Governo tudo fará para avançar com a coleta mínima.”

O jornal recua na manchete, que estava para ser “Governo deixa cair coleta mínima” e passou a ser “Governo garante que coleta mínima é para avançar”, relata o jornalista. Mas a notícia manteve o essencial da informação recolhida, segundo a qual fontes dos dois lados garantiam haver um pré-acordo entre Marcelo e Guterres para deixar cair a medida. O jornal sai num sábado, e na segunda-feira o diretor é convidado para ir no dia seguinte a São Bento tomar um café com o primeiro-ministro. António Guterres explica-lhe que pediu a António Costa para dizer o que disse porque “tinha de ser” (o negócio com Marcelo assim previa). E no sábado seguinte, o semanário fez manchete com a frase “Governo mentiu”. A coleta mínima nunca chegou a existir. Vinte anos depois, na campanha para as legislativas e já no papel de candidato a primeiro-ministro, António Costa previne-se e assume que um dia mentiu a um jornalista. Só não disse que na origem da mentira esteve um arranjo político entre o Governo de que fazia parte e o seu velho professor Marcelo Rebelo de Sousa.

UMA CONVERSA DELIRANTE

A memória dos dois está cheia de histórias que são avisos, e uma delas marcou António Costa para sempre. A duas semanas das autárquicas de 2001, que levariam António Guterres a deixar a liderança do PS após uma derrota devastadora, António Costa é ministro da Justiça, está no bar de um hotel do Porto com Diogo Lacerda Machado, que era seu secretário de Estado, e veem entrar Marcelo Rebelo de Sousa, que tinha ido cheirar a campanha.

“António”, gritou-lhe Marcelo. “Professor”, respondeu-lhe Costa. E a conversa durou até às quatro da manhã. Lacerda Machado recorda o discurso delirante do ex-líder do PSD, que na altura já tinha sido substituído por Durão Barroso e que, contra todas as previsões, antecipava “uma vitória estrondosa” do Partido Socialista. “Ai, sim?”, questionou Costa, incrédulo. “Sim, não tenho dúvidas”, respondeu-lhe o professor, que parecia sonhar com um pesado desaire para Durão, o homem que o substituíra no PSD e que ele não teria desistido de apear. “O PSD vai sofrer uma derrota arrasadora e vai haver uma reviravolta no partido”, continuava Marcelo, “e António Guterres vai sair reforçadíssimo”, relata Lacerda Machado ter ouvido. Incrédulos, ministro e secretário de Estado recolheram aos quartos já de madrugada com a sensação de que Marcelo confundia o desejo com a realidade. E não se enganaram: o PS teve a sua maior derrota autárquica de sempre e Durão Barroso não tardaria a chegar a primeiro-ministro.

À coca conhecem-se bem e vivem num misto de confiança e desconfiança mútua. Costa sente que Marcelo já não o consegue surpreender. Mas o segundo mandato do PR ainda cria suspense em São Bento CAMPISO ROCHA

Por estas e por outras — que ao longo dos anos permitiram aos dois homens conhecer-se bem —, mal percebeu que Marcelo Rebelo de Sousa se ia candidatar a Presidente da República, António Costa tratou de se preparar para o que aí vinha. Marcelo ia ganhar e era vital garantir uma boa onda na relação entre ambos desde o início. Sampaio da Nóvoa, que Costa chegara a acalentar, ficou subitamente sem rede. A socialista Maria de Belém arriscou um resultado miserável, mas deu jeito a Costa, que assim pôde dizer que havendo dois candidatos naquela área não apoiaria nenhum. E assim, com o primeiro-ministro a facilitar a vida a Marcelo, começou em beleza a última e mais motivadora etapa desta longa corrida a dois.

Marcelo Rebelo de Sousa é eleito em janeiro de 2016, arranja uma maneira simpática de agradar à esquerda — “O povo é quem mais ordena”, escreveu no discurso de posse —, e quatro dias depois António Costa convida-o para ir jantar a São Bento. Um primeiro encontro a sós com direito a novidade: embora Cavaco Silva ainda fosse o Presidente da República (a posse de Marcelo seria daí a dois meses), Costa disponibilizou os ministros para se começarem a reunir com o futuro chefe de Estado. E, nesse interregno, Marcelo recebeu quase todos os ministros no Palácio de Queluz, onde montou um gabinete provisório. “Eles fizeram tudo para começar com o pé direito”, diz um dos colaboradores da Casa Civil do Presidente. Com um acrescento: “Eles conhecem-se, gostam-se e temem-se.” Numa dupla que sabia ir disputar protagonismo, todo o cuidado era pouco.

“SOBRANCEIRO”, “NÃO ATENDO”

O arranque foi uma lua de mel, como provam as célebres imagens do primeiro 10 de Junho em Paris. Estão os dois no palco, começa a chover, e António Costa protege Marcelo sob um guarda-chuva para dois. A serenata à chuva é idílica, mas em redor do palco emigrantes portugueses lesados do BES pedem ajuda: “Ajude-nos, senhor Presidente!” Diogo Torres, autor do livro “Marcelo & Costa”, conta que uma assessora do primeiro-ministro “decidiu falar com quem pedia a intervenção de Marcelo”. “Você sabe que ele é amigo do Ricardo Salgado, não sabe?”, terá perguntado. Se aconteceu, Marcelo e Costa não ouviram. Mas os últimos cinco anos não foram sempre Paris.

“Sobranceria.” Foi esta a palavra escolhida pelo Presidente da República quando numa reunião com assessores no Palácio de Belém, algures em 2018, se referiu ao primeiro-ministro. Vivia-se o rescaldo da fase mais negra na relação entre ambos, os trágicos fogos do verão de 2017, quando mais de 100 pessoas morreram no interior do país, somados ao assalto ao paiol de Tancos que o Presidente não gostou de ver o Governo desvalorizar, e, aí sim, a relação tremeu. Pela primeira vez, conta quem acompanhou de perto António Costa, “ele sentiu que Marcelo pisou o risco da deslealdade”, quando fez um discurso arrasador em que assumiu falhas do Estado, exigiu um pedido de desculpas e despediu a ministra da Administração Interna em direto. Mas desleal porquê? Porque “o Presidente estava a par de tudo, o António tinha sido claro com ele, e ele sabia que o primeiro-ministro já preparava uma remodelação”. A versão de Belém é outra: “O Presidente logo nos fogos de junho exigiu consequências políticas e o primeiro-ministro nada fez. Em outubro, quando se somam mais de 100 mortos, o Presidente perdeu a paciência e decidiu que nem mais um dia”, contam na sua Casa Civil.

Certo é que o PS fez tocar as campainhas do mal-estar instalado, e o jornal oficial do partido publica um artigo do jornalista Simões Ilharco a acusar o Presidente de ter exorbitado “claramente os seus poderes constitucionais”. No site do Ministério da Administração Interna, a revista de imprensa sugere a leitura do blogue “O Jumento”, onde Marcelo Rebelo de Sousa era apelidado de “manhoso” e eleito como “o jumento do dia”. E o “Público” escreve que o Governo recebeu “com choque” o discurso presidencial. Mas Marcelo responde à letra: “Chocado está o país.”

A avaliação de António Costa como alguém que tende a desvalorizar o que corre pior foi o que levou o Presidente a falar de “sobranceria” na tal reunião em Belém. Mas as pedras na relação entre ambos não se ficam por aí. “Há sempre alguma desconfiança”, diz quem os conhece bem. “Eles entendem-se, acham-se graça, sabem jogar juntos, mas desconfiam um do outro.” E foi por desconfiança que o Presidente da República ficou furioso quando, dias antes de sair a acusação sobre o assalto a Tancos, viu multiplicarem-se notícias de que ele estava a par de toda a trama ilegalmente montada para recuperar o armamento, sem que alguém do Governo saísse em sua defesa. Ausente do país, Marcelo abriu uma exceção e falou da política interna para mostrar que estava indignado — “O Presidente da República não é um criminoso.”

O clima de tensão foi tal que, quando António Costa lhe ligou para esclarecer o assunto, Marcelo não o atendeu. Ao lado do Presidente, o ministro dos Negócios Estrangeiros insistiu: “Senhor Presidente, o primeiro-ministro tentou falar-lhe.” Mas Marcelo fez-se de surdo. Depois de andar dois anos a impedir que Tancos fosse esquecido, não aceitava que o tentassem salpicar. “É verdade que o Presidente não lhe atendeu o telefone?”, perguntaram os jornalistas a António Costa. “Olhe, ofereço-lhe uma rosa”, disfarçou o primeiro-ministro, quando Tancos lhe invadiu a última campanha eleitoral.

O VERDADEIRO BLOCO CENTRAL

Marcelo e Costa não são de amuar. Quando divergem, encontram saídas (foi assim com vários diplomas do Governo que, para não serem vetados, foram negociados entre Belém e São Bento); se há uma situação de conflito, telefonam um ao outro e esclarecem; e quando não concordam tentam combinar como vão gerir o desacordo. Foi assim no início da pandemia, quando o Presidente, depois de se ter confinado em casa deixando o palco a António Costa, quis avançar para o estado de emergência contra a vontade do primeiro-ministro. Viveram dois dias de alta tensão, estiveram quase a embater de frente, mas acabaram por se articular, e Marcelo combinou com Costa que ele poderia anunciar o que aí vinha. “É este o método que seguem sistematicamente”, garantem em Belém. O que não evita uma permanente disputa de protagonismo.

Marcelo faz um discurso a prevenir para os riscos de populismos? Costa diz que “há discursos que parecem pintura abstrata”. Costa resiste ao estado de emergência? Marcelo diz que, “como toda a gente já percebeu, essa foi a decisão acertada”. Cada um tenta levar a taça. Mas, mais do que de confronto, esta é uma relação de dependência. “O destino dos dois está ligado”, assumem na Casa Civil do Presidente, onde as frustrações da direita, que acusa Marcelo de andar há cinco anos com António Costa ao colo, são retribuídas. “Era do interesse do país garantir a estabilidade política e financeira, e o Presidente nunca poderia provocar uma crise sem haver uma alternativa. E em boa verdade nunca a teve.” Para Marques Mendes, que conhece bem Marcelo, não é expectável que ele mude muito num segundo mandato, mesmo que a direita recupere, por razões que se prendem com a própria personalidade do Presidente.

“Não estou a vê-lo nunca a ser oposição ao Governo”, diz o conselheiro de Estado. Sobretudo quando o país precisa de convergência de esforços e “quando se percebe que os portugueses gostam deste bloco central institucional”. Mas um dos segredos desta dupla é que, no fundo, no fundo, eles não estão muito distantes ideologicamente.

Marcelo Rebelo de Sousa é um social-democrata e António Costa é um socialista moderado. Tão moderado que, ‘geringonça’ à parte, escolheu para lhe gerir as Finanças alguém que se ajustou facilmente ao cargo de presidente do austero Eurogrupo. Marcelo motiva-se com este criativo jogo político de António Costa. E António Costa, que adora puzzles e que na juventude era viciado no “Risco” (um jogo de estratégia), não imagina um Presidente mais estimulante. “Eles já não vivem um sem o outro”, conclui o melhor amigo do primeiro-ministro. Por muito que isso inclua diatribes, rasteiras e desconfianças ou, quem sabe, uma descolagem de Marcelo para, algures no segundo mandato, ajudar nos bastidores a influenciar uma liderança política alternativa à do seu velho aluno. A direita está triste. Mas não desistiu de contar com ele.

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