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quarta-feira, 29 de julho de 2020

Três mil milhões tarde demais


Por 
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
28/07/2020

O governo pediu uma intervenção da Procuradoria Geral da República para suspender a venda de ativos do Novo Banco até ser concluída a auditoria às suas contas (prometida para maio, depois adiada, e cuja nova protelação terá sido rejeitada). Essa auditoria é limitada a operações de 2000 até 2018 e não se sabe com que rigor tratará os créditos que este mesmo governo assegurava há semanas que estavam adequadamente vigiados, auditados e certificados ao longo dos anos, nada havendo a duvidar. De facto, ainda há poucas semanas o governo jurava que estava certo da correção das contas. Lembra-se da nota do primeiro-ministro para segurar por mais uns dias o ministro Mário Centeno? Aí se assegurava que “esta reunião ficaram ainda esclarecidas várias questões sobre a concretização do empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução”. E, continuava o comunicado dizendo que o BCE, os auditores, o Banco de Portugal e tutti quanti asseveram a idoneidade das práticas da Lone Star no Novo Banco. Pois o problema é que as contas não estão esclarecidas e agora o governo, em desespero de causa, apela à justiça para bloquear provisoriamente os procedimentos do banco que geram aqueles pagamentos pelo Fundo de Resolução.

Há boas razões para passar tudo a pente fino, como por exemplo a revelação da venda de um pacote imobiliário, por 30% do seu valor, a um fundo a que esteve ligado o atual presidente do banco, pela jornalista Cristina Ferreira; ou de um colossal negócio de venda de imóveis em pechincha, com financiamento pelo próprio banco e prejuízos registados que são depois comunicados ao Fundo de Resolução para serem pagos pelo Estado, como provado pela reportagem de hoje do jornalista Paulo Pena, também no Público (e lá aparece o fantasma da Escom, um dos instrumentos que foi usado no passado pelo BES para todo o tipo de operações, dos submarinos a Angola). No total, já houve cerca de três mil milhões de euros de financiamentos públicos a este tipo de operações, que são outras tantas razões imediatas para se verificarem estas contas.

Ainda bem que o governo, dando o dito por não dito, pede agora uma intervenção musculada para travar o que tem sido o mecanismo de captação de financiamento público ao longo dos últimos anos: a transferência de valores para terceiros, registando prejuízos sempre surpreendentes e indetetados pela certificação das contas do ano anterior, de modo a exigir o pagamento público até se esgotar a maquia dos 3900 milhões prometidos no contrato e que, no dizer no ministro quando se assinaram os termos, nunca seria usada. Para qualquer observador atento, não há nisto nenhuma surpresa.

Digo há anos, e não descobri nada, que o método para extrair o dinheiro público é fazer vendas a prejuízo e depois exigir ao Fundo de Resolução o pagamento da conta. Assim, ganham os compradores, sempre bem seleccionados, e perde o Estado. O Novo Banco, com a Lone Star, é uma gigantesca lavandaria acarinhada por um contrato leonino e pelo silêncio das autoridades.

O mecanismo sempre foi óbvio. Vender imóveis na segunda década deste século com grande prejuízo, quando os seus preços disparam para o céu, só pode ser justificado de duas formas: ou a sua avaliação foi uma fraude (e isso tem responsáveis) ou a sua venda é feita por um valor fraudulento (e tem responsáveis). É aliás também por isso que muitas destas operações envolvem investidores anónimos, escondidos em sociedades offshore, o que devia ser um sinal de alerta para os auditores (quando não são eles as mesmas entidades que promovem a criação destas empresas de fachada).

Em todo o caso, esta tardia inflexão do governo tem duas leituras políticas, que não são ligeiras. A primeira é que isto é uma censura à administração do Fundo de Resolução e ao Banco de Portugal, que obviamente devia ter tomado a mesma atitude e desde os primeiros dias. Muito mal ficam os responsáveis por esse Fundo público, que deram como certas as vendas anteriores e a confiscação de dinheiros públicos que correspondeu a esses mágicos prejuízos. Mas há ainda uma segunda implicação: trata-se de uma censura ao anterior ministro das finanças, que não só parece ter fechado os olhos à espantosa desvalorização de ativos imobiliários, como fez guerra política para garantir os pagamentos, usando mesmo o subterfúgio de não informar o primeiro-ministro da realização do mais recente pagamento.

O final da história também é penoso e o governo está nela comprometido: é só na 25ª hora, e quando se está a esgotar o cofre que foi posto ao dispor da Lone Star, que o governo pede a suspensão momentânea das operações. Não é de adivinhar que tenha muito sucesso com esta iniciativa, até porque somente uma alegação substancial acerca de más práticas, de favorecimento de interesses velados ou de outras malfeitorias poderia inverter o rumo para o desastre que está escrito em letras garrafais no contrato da Lone Star. E nada indica que o governo tenha vontade de promover esse julgamento do regime bancário, que seria imperativo se houvesse um competente combate ao favorecimento e aos crimes de colarinho branco. E, ainda assim, resta um cenário ainda pior, que este pedido de intervenção da Procuradoria seja unicamente uma operação mediática para esquecer com a final da Taça.

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