Por
Miguel Sousa Tavares,
in Expresso,
11/07/2020
1 Chego a ter pena do nosso MNE, Augusto Santos Silva: o esforço a que ele se vota, por dever de ofício, para argumentar que as decisões de outros países de nos colocarem na lista negra turística são injustas e infundamentadas e não obedecem a um “critério uniforme” é tempo perdido e fracasso garantido. Sim, há um critério uniforme, que é o definido pelo organismo europeu que se ocupa das doenças infectocontagiosas, baseado no número de casos actuais por 100 mil habitantes — onde ocupamos o segundo lugar entre todos os países europeus com mais casos, só atrás da Suécia, e sem dar mostras de conseguir baixar, antes pelo contrário, esse número que derrota todas as nossas invocadas razões. E não, não adianta argumentar com o nosso “exemplar desempenho” quando, numa fase inicial, os portugueses se fecharam todos em casa e a DGS nada mais teve de fazer do que verificar que a curva estava achatada.
Continuar a insistir nisso torna-se tão ridículo quanto a argumentação de que somos um grande povo, porque há 500 anos navegámos mundo fora e fizemos o que fizemos. Aliás, toda a retórica que se ouve dos nossos governantes, secundados por muitos outros parceiros políticos, agentes económicos e “especialistas” que têm medo de parecer pouco patriotas, faz-me lembrar tristemente os tempos em que éramos dizimados nos Festivais da Eurovisão, não porque só para lá enviássemos músicas indigentes mas porque, segundo juravam os “patriotas”, os outros votavam contra nós por razões políticas. O mesmo tipo de argumentos que também levava o Estado Novo a garantir, contra o mundo inteiro, que não tínhamos colónias mas sim “províncias ultramarinas”, que não tínhamos colonialismo mas sim “regimes autónomos” e que o massacre de Wiriyamu nunca ocorrera porque Wiriyamu não existia. É triste assistirmos agora a um Governo democrático lançar mão do mesmo tipo de argumentos para, em desespero de causa, tentar salvar uma época turística destruída pelo desastre das políticas públicas de saúde. Tiradas patéticas e antigas de séculos, como a “traição do velho aliado inglês”, a “deslealdade do vizinho espanhol” ou a “hipocrisia dos belgas”, são, aliás, contraproducentes, na medida em que fazem passar a mensagem de que tentamos desesperadamente esconder um problema que não conseguimos ultrapassar. Porque não é aceitável que, no sexto mês de pandemia, com tudo o que já se sabe, uma só pessoa visite um lar em Reguengos, contamine outras 150 e mate 15. Fora tudo o resto que, desde que soou a ordem para desconfinar e descontrair, mostrou à saciedade que nada estava pensado, planeado, organizado e que quem de direito continuou durante dois meses tranquilamente sentado em cima de uma curva que se mantinha eternamente achatada em número de casos e de mortes, sem estranhar que todas as dos outros países fossem caindo até próximo do zero.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
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2 Se bem percebi (já nada é certo...), David Neeleman comprou a TAP por 10 milhões e injectou lá mais 200 milhões através da Azul. Conta-se à boca cheia, porém, que ele terá recuperado esses 200 milhões vendendo a posição da TAP como compradora de aviões, de que desistiu em favor de outros mais baratos. Mas o ministro Pedro Nuno Santos contradiz o rumor, dizendo que Neeleman “foi interrogado sobre o assunto e negou” — garantia aparentemente suficiente para o ministro. Como quer que seja, esses 200 milhões, que se supunha que o Governo quereria que fossem transformados em capital, como seria normal, parece que se mantiveram como suprimento de um sócio, isto é, como dívida da TAP, que vence juros e que terá de ser paga, no prazo de vencimento — e, estranhamente, isto foi apresentado como uma vitória negocial do Governo. Já quanto aos 10 milhões que efectivamente Neeleman meteu para comprar a TAP, hoje valiam zero, como capital de uma empresa tão desvalorizada que vai precisar de 1200 milhões dos contribuintes só para começo de conversa. Mas para ele se ir embora, porque o ministro assim queria, o Estado comprou-lhe a posição de 10 milhões por 50 — e a Azul desapareceu do horizonte societário. Porém, assegura o ministro, vai manter-se como parceira da TAP, pois tal é o “legado” que David Neeleman deixa à empresa. “A TAP precisa da Azul”, reconhece Pedro Nuno Santos, rendendo-se à evidência de que essa ligação está hoje entre as mais rentáveis da companhia portuguesa. Mas “a Azul também precisa da TAP”, garante, certo de que o americano não desfará essa colaboração transatlântica. Oxalá! Oxalá o homem que vendeu por 50 uma posição de 10 numa empresa levada à ruína e que terá conseguido sair com um crédito de 200 milhões em vez de uma posição accionista equivalente numa empresa cujo futuro mais provável continua a ser a ruína esqueça que foi publicamente destratado e ameaçado pelo ministro e esteja a fim de honrar o tal “legado” de que aquele fala. Porque, contratualmente, como é de tradição nas negociações em que é preciso defender os contribuintes, nada ficou escrito. Estava eu a meditar nisto, bem como no simbolismo das fotografias do ministro posando em frente à miniatura de um avião da TAP (a fotografia clássica dos donos da empresa ou dos presidentes executivos que se imaginam donos dela e que bem caracterizou toda a actuação de Pedro Nuno Santos neste dossiê), quando, logo no dia seguinte, sou surpreendido por nova afirmação grandiloquente do ministro. Deslumbrado por ter comprado por 1,5 milhões (!) 58 carruagens de comboios à espanhola Renfe — a que há a acrescentar um custo previsto de 8,5 milhões em restauro (aceito apostas para um mínimo do dobro) —, Pedro Nuno Santos exclamou, e pareceu-me que falava a sério: “Estamos prontos para ensinar outros governos como se fazem bons negócios.” Logo depois, ficou a saber-se que a CP pediu mais 60 milhões ao Governo, para “dinheiro de bolso”. E a SATA 163 milhões — quase tanto como os prejuízos acumulados, com grande escândalo, pela TAP nos dois anos antes da covid. Vá somando e acredite que tudo isto vai acabar bem. Aviões com a nossa bandeira no ar, novos comboios em terra e bons negócios em carteira. Como poderá acabar mal?
Sobre o pano de fundo de uma economia privada em ruínas e mais dependente do que nunca dos dinheiros públicos, vemos um Estado disposto a gastar sem contenção o dinheiro que não tem e que há-de vir da Europa. Mas só quem acredita que o dinheiro nasce debaixo das pedras é que pode pensar que isto vai acabar bem.
3 Efacec: “Empresa estratégica” para o país, centenária, verdadeira escola de engenharia de ponta, inovadora, altamente rentável, exportando 90% da produção. Cobiçada por meio mundo, acabou nas mãos da “engenheira” Isabel dos Santos e do seu dinheiro feito “por mérito próprio”. Recebida na empresa com pompa, circunstância e curvatura de espinhas, não arriscou, porém, um euro seu, que melhor investido foi no Dubai. Tornou-se dona da Efacec exclusivamente com dinheiros arregimentados junto da banca portuguesa. Mas, mal caiu em desgraça e viu os seus bens arrestados às ordens de Luanda, a mesma banca fechou as portas à Efacec e dispôs-se a estrangulá-la, se necessário até à morte, com os seus 2500 trabalhadores. Os bancos viraram costas, os seus outros accionistas de referência, nomes grandes da indústria nacional — a Têxtil Manuel Gonçalves e o Grupo Melo —, deixaram correr e, dos “cinco ou seis” compradores que nos dizem já estar na calha, nem um se mostrou. Restou o Estado. Agora, somos assim também donos de uma metalomecânica. Com o aplauso unânime e jamais visto dos trabalhadores, dos sindicatos e dos outros accionistas privados. Cuja única preocupação é que o Governo sucumba à tentação da venda aos tais compradores que nos dizem fazer fila à porta e deixe a empresa e os trabalhadores fora da única protecção garantida: a do dinheiro dos contribuintes. Vai acabar bem.
4 Novo Banco: Sertório foi um general romano dissidente, que se virou contra os seus, à frente de um exército de camponeses e pastores da Lusitânia. Ficou na nossa história tal como Wellington, um general estrangeiro que nos ajudou a combater o invasor. O Fundo Sertorius, organizado pelo Novo Banco, teve o objectivo inverso: vender património imobiliário nosso, constituído por créditos herdados do BES, a quem desse mais, preferencialmente estrangeiros, que era quem tinha dinheiro para tal. O pacote Sertorius do NB foi vendido 70% abaixo do seu valor, com perdas assumidas de 300 milhões de euros. Não foi caso único desde que o NB foi vendido aos texanos da Lone Star: são justamente os créditos declarados incobráveis e vendidos a preços de saldo que têm permitido ao NB todos os anos reclamar ao Estado o pagamento das prestações de capital contingente assumidas pelo Fundo de Resolução até um montante de 3,9 mil milhões (no mínimo e não ocorrendo situações excepcionais, que vão ocorrer, claro). O que há de novo agora, segundo noticiou o “Público”, é que o Sertorius foi vendido a um grupo a que esteve ligado um administrador actual do NB. Tamanha é a reiterada incapacidade ou incompetência da gestão do NB em valorizar os créditos herdados e tão generosos são os preços a que se desfaz deles que a possibilidade de interesses ocultos em todo o processo é sempre uma hipótese a considerar. Verdade ou não, certo é que o NB tem sido um maná para uns quantos felizardos e uma ruína para os contribuintes. A continuar, sem vergonha alguma, enquanto os deixarem.
5 Entusiasmada com a experiência de teletrabalho dos funcionários públicos durante os três meses de confinamento — cuja falta ninguém notou —, a ministra da pasta resolveu que, de futuro, até um terço deles poderia continuar assim, sem prejuízo algum para o serviço. Porém, após a primeira reunião com os sindicatos, o porta-voz de um destes apressou-se a declarar que teletrabalho sim, mas só com aumentos salariais e progressões na carreira garantidas, pois a poupança nas despesas com transportes e alimentações eram engolidas por outras como electricidade e água, além de “outros consumíveis”, resultantes de ficarem em casa. Pressurosa, a ministra já declarou que as progressões na carreira, além das progressões automáticas, são sagradas, pois que “austeridade”, como lhe chamou, nunca mais. Entretanto, abolida a regra de uma entrada por duas saídas, o Estado — declarado agora pelos teóricos como mais indispensável do que nunca — prepara-se para contratar sem contar, para a Educação, para a Saúde, para os bombeiros, para a apanha do abacate, para onde pedirem. A pagar com o dinheiro que há-de vir da Europa. E tudo isto há-de acabar bem. Só pode.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
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