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domingo, 26 de julho de 2020

O DOM DE OUVIR


Por
Liliana Rodrigues
Professora Universitária/Investigadora
26/07/2020


Quando começamos a escrever sobre a memória e/ ou a infância isso pode, eventualmente, ser um sinal de perplexidade ou de desprendimento pelo tempo.

Refiro-me à memória da gentileza e do respeito pela diferença e, em alguns casos, o espanto pelo absurdo (tão típico das crianças). Há, também, a memória juvenil da esperança. Das lutas e acesas discussões sobre o estado da região, da liberdade e da democracia. A ideia de que a Madeira deveria ser um lugar comum e exemplar onde, particularmente no espaço político, a decisão fosse fundamentada na capacidade de ouvir o Outro. Somos tão poucos que este movimento de dizer e ouvir deveria ser um processo simples e livre, sem apedrejamentos como castigo. Humilhar, publicamente ou não, alguém revela o pior que uma pessoa tem.

Parece que, com a idade, anestesiamos o dom de ouvir. Lembro-me, ainda criança, de passar horas a ouvir as explicações de tudo e de todos. Eles, pacientemente, ouviam as minhas ideias e os meus sonhos e, com alguma regularidade, as argumentações, por muito estapafúrdias que se perfilhassem. Mas ouviam. Creio que uma ou outra vez, à custa da extravagância do sonho, ouvi risinhos. O dia, por exemplo, em que ninguém levou muito a sério a minha obra de irrigação através da simplicidade da acção de furar a mangueira. Engenharia pura e infalível.

Intencional ou não, lenta e gradualmente perdemos a capacidade de ouvir, de medir e de respeitar a voz do Outro e isso já nos levou a todos a cometer erros. Eu e a aqueles que estão (e os que não estão) a ler estas palavras. Falamos muito. Demais. Tendemos a ouvir o eco da nossa própria voz. Ninguém é imune a más decisões, a pensamentos turvos ou a reacções mal reflectidas, às vezes por défice de aconselhamento, outras vezes por excesso de envenenamento que não é, forçosamente, exterior. A soberba mata por dentro. É como a cobra que morde a sua própria língua. Temos ainda o desacerto do momento ou imaturidade perante a vida e os actores que a compõem a influenciarem as decisões e a busca das razões. Aspirámos a uma verdade que é sempre a nossa. Esta teimosia estrutural de pensamento tem os seus custos e acabamos por compreender a irrelevância da parte, quando o que está em jogo é muito maior do que nós, isto é, o todo.

A forma e a substância do discurso têm dois sentidos: o que diz e o que ouve. O desafio está no ouvir. A surdez será sempre a forma mais pobre de estar perante a palavra e, por muito que a decepção tenha assolado o espírito, não podemos permitir que um se dirija a Outro como se ele fosse um ser menor, inclusive e em especial na política. Os eleitos nunca são menores. São a expressão da vontade de um povo que ouviu argumentos e optou por um desses compromissos políticos. Um eleito referir-se a Outro eleito como alguém menor, fraco, inoperante e vazio, como ouvi esta semana, é denegrir não somente o eleito, mas também o eleitor e a democracia. Senhor Presidente, não perca o dom de ouvir e o privilégio de ser ouvido. Oiça Sófocles: “Não guardes, pois, dentro de ti qualquer pensamento reservado, nem julgues que é justo aquilo e só aquilo que dizes”. 

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