O Povo começa a perceber as palavras de Chico Buarque: “Aqui na terra tão jogando futebol; Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; Uns dias chove, noutros dias bate sol; Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (…)”. Pois é, tudo por uma questão de ausência de planeamento, de bom senso e respeito pela coisa pública. Alguns exemplos: na Região Autónoma da Madeira existem 37 campos de futebol, um por cada sete mil habitantes. O Funchal dispõe de dois estádios, financiados em mais de 80 milhões de euros. Foram investidos 60 milhões de euros nas dezassete piscinas construídas nos últimos dez anos. A opção política determinou projetos estandardizados, mas “de luxo, com sofisticados sistemas de ventilação, aquecimento a gás e tratamento de água inovador, em alguns casos” (DN-Madeira de 09.06.11); outra peça jornalística sublinha que, em apenas 6018 dias, um clube geriu 65 milhões de Euros de financiamento público e, em 2009, cada atleta desse clube custou à Região mais do dobro do que o governo investiu por aluno nas escolas. Só mais uns dados do imenso rosário faraónico: há dias, o Instituto do Desporto da Região (IDRAM), cessou as suas funções com 52 milhões de euros de encargos assumidos e não pagos e, nos últimos dez anos, movimentou mais de 310 milhões de euros. As Sociedades Anónimas Desportivas (SAD’s) estão falidas, as piscinas não funcionam por atrasos na liquidação das faturas de gás e gasóleo, a esmagadora maioria dos clubes (176) e associações (25), dependentes do financiamento público, estão em colapso, face aos atrasos, que chegam a quatro anos, das transferências acordadas para as 63 modalidades desportivas. Isto é, o “monstro” criado engoliu o criador.
A aldrabice (discursiva) política tem limites! |
Com que então... há clubes e associações a mais! Ouvi uma parte da entrevista do Presidente do Governo ao programa "Bola ao Centro", da SIC. A parte que o meu zapping apanhou, mais me pareceu "bola para canto ou para as bananeiras". Tenho um profundo respeito pelos jornalistas, mas pareceu-me uma entrevista mal preparada, sem o conhecimento profundo da realidade da Madeira, de todos os sectores da governação onde o desporto constitui, apenas, uma parcela. A parte que escutei, uns dez a quinze minutos, não tomando a parte pelo todo, para mim bastou, aliás, porque conheço o posicionamento do "chefe" tantas foram as suas declarações ao longo dos anos. E disse esta coisa absolutamente disparatada, que foram criados clubes e associações a mais. Esqueceu-se o dito que o problema nunca foi esse nem é esse. O direito de associação é constitucional, ninguém pode impedir que um grupo de pessoas se junte e, pelas vias que a lei dispõe, crie um clube ou uma associação. O problema é, portanto, outro. Talvez possa pôr no plural, (...) outros. Desde logo, poucos ignoram que a maioria política regional sempre se serviu dos clubes e associações para controlar, localmente, a vida política. Sempre que "cheirou" a eleições para um qualquer clube ou associação, são raros os casos em que o poder não tenha feito um esforço para colocar os "seus". Ele sabe e toda a estrutura política conhece. Depois, uma coisa é a existência de um clube ou associação, repito, enquanto direito constitucional, outra é perceber que ficam logo de mão estendida à espera que o "senhor governo" edifique ou subsidie a construção da sede, subscreva contratos-programa subsidiodependentes, pague deslocações ao nível nacional, pague a atletas estrangeiros e muita outra coisa que não domino. Estamos, portanto, face a dois aspectos completamente distintos. Ele sabe das quase cinco mil inaugurações que diz ter realizado, naturalmente públicas e privadas, quantos pavilhões, piscinas, campos de futebol, marinas sem sentido inaugurou, muitas nas vésperas de eleições regionais. Ele sabe quantos destacamentos de professores foram autorizados para manter o funcionamento do sistema. Não me parece honesto que agora venha dizer que há clubes e associações a mais. Houve, sim, política a menos e dinheiro a mais e, hoje, confronta-se com um sistema completamente em ruptura, insolvente e insustentável. Eu diria que ele, autor do monstro que criou e alimentou, tem uma gravíssima e significativa crise no associativismo, dentro de uma outra crise maior, a da economia e finanças. Só que ele não consegue ver isto, nem tem alguém que sugira um novo paradigma. Daí que, com o navio da governação completamente adornado, com rombos difíceis de o conduzir para doca seca, ao invés de uma leitura inteligente da situação, veio dizer que esta política é para continuar. Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso político jamais diria uma coisa destas. Só consegue ver a árvore, não a floresta de desencantos e de erros que por aí anda!
Sobre esta matéria ando a estudar, debater e a escrever desde os finais dos anos 70 do século passado. Ainda recentemente, porque sou colaborador da Revista A Página da Educação, editada no Porto e com distribuição nacional e internacional, assinei um artigo na edição 196 (Edição da Primavera) ao qual dei o título "O monstro criado engoliu o criador". Aqui deixo o texto:
Sobre esta matéria ando a estudar, debater e a escrever desde os finais dos anos 70 do século passado. Ainda recentemente, porque sou colaborador da Revista A Página da Educação, editada no Porto e com distribuição nacional e internacional, assinei um artigo na edição 196 (Edição da Primavera) ao qual dei o título "O monstro criado engoliu o criador". Aqui deixo o texto:
"O Povo começa a perceber as palavras de Chico Buarque: “Aqui na terra tão jogando futebol; Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll; Uns dias chove, noutros dias bate sol; Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (…)”. Pois é, tudo por uma questão de ausência de planeamento, de bom senso e respeito pela coisa pública. Alguns exemplos: na Região Autónoma da Madeira existem 37 campos de futebol, um por cada sete mil habitantes. O Funchal dispõe de dois estádios, financiados em mais de 80 milhões de euros. Foram investidos 60 milhões de euros nas dezassete piscinas construídas nos últimos dez anos. A opção política determinou projetos estandardizados, mas “de luxo, com sofisticados sistemas de ventilação, aquecimento a gás e tratamento de água inovador, em alguns casos” (DN-Madeira de 09.06.11); outra peça jornalística sublinha que, em apenas 6018 dias, um clube geriu 65 milhões de Euros de financiamento público e, em 2009, cada atleta desse clube custou à Região mais do dobro do que o governo investiu por aluno nas escolas. Só mais uns dados do imenso rosário faraónico: há dias, o Instituto do Desporto da Região (IDRAM), cessou as suas funções com 52 milhões de euros de encargos assumidos e não pagos e, nos últimos dez anos, movimentou mais de 310 milhões de euros. As Sociedades Anónimas Desportivas (SAD’s) estão falidas, as piscinas não funcionam por atrasos na liquidação das faturas de gás e gasóleo, a esmagadora maioria dos clubes (176) e associações (25), dependentes do financiamento público, estão em colapso, face aos atrasos, que chegam a quatro anos, das transferências acordadas para as 63 modalidades desportivas. Isto é, o “monstro” criado engoliu o criador.
Era natural que assim acontecesse, por ausência de visão estratégica, inversão de prioridades e criação de expetativas superiores àquelas que eram legítimas esperar em uma região pobre, assimétrica e dependente. Bastaria um pouco de bom senso e que fossem considerados os princípios do planeamento, a necessidade de, a todo o momento, existir um pensamento e controlo sobre o futuro, um processo integrado e multidisciplinar na tomada de decisão. Ora, nada disso aconteceu e o resultado é que 77% da população, entre os 15 e os 65 anos continua distante de qualquer prática física ou desportiva.
Ora, a política desportiva não deve estar centrada no resultado desportivo nacional ou internacional, porque essa não é uma política ao serviço do desenvolvimento, é uma política contra os cidadãos, contra a Escola e contra a cultura. Quando se olha para 19.000 desempregados (já vamos em 23.500), 30% de pobres, escolas condicionadas na ação social e com dívidas acumuladas que impedem o desenvolvimento dos projetos educativos, quando a relação média anual é de € 500.000,00 no desporto escolar para trinta milhões no sector federado, quando o sistema de saúde apresenta mais de 70 milhões de dívidas às farmácias, quando há centenas de empresas em colapso, parece-me óbvia a inversão das prioridades. Pasmo ao ver decisores passando incólumes perante a justiça do voto e a outra Justiça!
Um dedo de bom senso e de inteligência, um mínimo de visão e conjugação de todos os sistemas, um mínimo de estratégia política definidora da prioridade entre o desporto educativo escolar e o desporto associativo bastaria para que outro fosse o percurso. Certamente, hoje, a Madeira não teria piscinas encerradas, não teria tantos estádios de futebol entre outras dispendiosas infraestruturas de reduzida utilização, não teria 16.000 (dizem) praticantes federados, porque os clubes visam a qualidade nunca a quantidade, não teria tantas equipas em um vaivém semanal, não teria mais clubes e associações que freguesias (média de 4), mas teria, com toda a certeza, melhores resultados nas aprendizagens escolares e nas competências gerais, melhor e mais qualificada preparação da juventude, mais educação desportiva nas escolas, melhor sistema educativo, melhor sistema de saúde, um desporto entendido como bem cultural com mais investimento na escola e menores encargos ao nível do movimento associativo. Mas isso implicaria melhor democracia, que os agentes políticos não sofressem de uma gravíssima surdez, que a Assembleia Legislativa não fosse apenas palco para a ofensa, implicaria disponibilidade para ouvir, debater, gerar consensos e investir no caminho mais seguro e adequado às características de uma região com prioridades que estão muito antes do desporto profissional.
É claro que o lóbi do cimento, a fúria inauguracionista, a ambição da medalha ou do título toldou muitas consciências que deveriam se posicionar contra a megalomania eleitoralista. Conclusão: estatelaram-se, caindo do alto, escorregando nas pedras soltas que foram deixando enquanto subiam. Estão, hoje, embrulhados ao jeito de múmias, sem capacidade de decisão e sem um cêntimo no cofre que alimentou, durante anos, a vida inebriante que levaram. A população, essa, ficou dependente de um doloroso plano de reajustamento financeiro. “A coisa aqui tá preta”."
Era natural que assim acontecesse, por ausência de visão estratégica, inversão de prioridades e criação de expetativas superiores àquelas que eram legítimas esperar em uma região pobre, assimétrica e dependente. Bastaria um pouco de bom senso e que fossem considerados os princípios do planeamento, a necessidade de, a todo o momento, existir um pensamento e controlo sobre o futuro, um processo integrado e multidisciplinar na tomada de decisão. Ora, nada disso aconteceu e o resultado é que 77% da população, entre os 15 e os 65 anos continua distante de qualquer prática física ou desportiva.
Ora, a política desportiva não deve estar centrada no resultado desportivo nacional ou internacional, porque essa não é uma política ao serviço do desenvolvimento, é uma política contra os cidadãos, contra a Escola e contra a cultura. Quando se olha para 19.000 desempregados (já vamos em 23.500), 30% de pobres, escolas condicionadas na ação social e com dívidas acumuladas que impedem o desenvolvimento dos projetos educativos, quando a relação média anual é de € 500.000,00 no desporto escolar para trinta milhões no sector federado, quando o sistema de saúde apresenta mais de 70 milhões de dívidas às farmácias, quando há centenas de empresas em colapso, parece-me óbvia a inversão das prioridades. Pasmo ao ver decisores passando incólumes perante a justiça do voto e a outra Justiça!
Um dedo de bom senso e de inteligência, um mínimo de visão e conjugação de todos os sistemas, um mínimo de estratégia política definidora da prioridade entre o desporto educativo escolar e o desporto associativo bastaria para que outro fosse o percurso. Certamente, hoje, a Madeira não teria piscinas encerradas, não teria tantos estádios de futebol entre outras dispendiosas infraestruturas de reduzida utilização, não teria 16.000 (dizem) praticantes federados, porque os clubes visam a qualidade nunca a quantidade, não teria tantas equipas em um vaivém semanal, não teria mais clubes e associações que freguesias (média de 4), mas teria, com toda a certeza, melhores resultados nas aprendizagens escolares e nas competências gerais, melhor e mais qualificada preparação da juventude, mais educação desportiva nas escolas, melhor sistema educativo, melhor sistema de saúde, um desporto entendido como bem cultural com mais investimento na escola e menores encargos ao nível do movimento associativo. Mas isso implicaria melhor democracia, que os agentes políticos não sofressem de uma gravíssima surdez, que a Assembleia Legislativa não fosse apenas palco para a ofensa, implicaria disponibilidade para ouvir, debater, gerar consensos e investir no caminho mais seguro e adequado às características de uma região com prioridades que estão muito antes do desporto profissional.
É claro que o lóbi do cimento, a fúria inauguracionista, a ambição da medalha ou do título toldou muitas consciências que deveriam se posicionar contra a megalomania eleitoralista. Conclusão: estatelaram-se, caindo do alto, escorregando nas pedras soltas que foram deixando enquanto subiam. Estão, hoje, embrulhados ao jeito de múmias, sem capacidade de decisão e sem um cêntimo no cofre que alimentou, durante anos, a vida inebriante que levaram. A população, essa, ficou dependente de um doloroso plano de reajustamento financeiro. “A coisa aqui tá preta”."
Ora, tantas perguntas que o jornalista poderia ter feito! E que respostas ele daria a todas elas?
Ilustração: Google Imagens.
Sem comentários:
Enviar um comentário