Não devo colocar na boca do Senhor Bispo o que deve dizer. É um problema seu. Não aceito é que a fé, intencionalmente com letra minúscula, sirva para manter a escravatura dos novos tempos e, a reboque, traga a caridadezinha, o tal resto que sobra da faustosa mesa política dos que dela se servem. O que gostaria de ter ouvido, enquanto cidadão, era uma outra coisa, essa imperiosa necessidade de mudança de comportamentos políticos que, paulatinamente e a prazo, pudessem resolver o problema da pobreza (a todos os níveis) que o Senhor Bispo, certamente, melhor do que eu sabe que não constitui uma fatalidade. As pessoas precisam de resolver os seus problemas enquanto por cá andam, antes da "eternidade", os problemas derivados do trabalho, o problema da educação, da saúde, da cultura, da assistência à família, enquanto direitos constitucionais, porém, diariamente, espezinhados através de discursos elaborados com mel, a par de outros que nada dizem. A Fé é outra coisa, tem outra dimensão. Talvez bom seria para a nossa sociedade que alguns políticos governantes se deixassem iluminar pela Fé! Talvez. Li, um texto do Padre Libânio: "A fé cristã sem as obras é morta, na expressão de São Tiago. Mais: ela acaba por contaminar negativamente a política, sacralizando e acobertando práticas desonestas". Tanto assim é que o presidente do governo regional, com tantas missas a que assiste e procissões em que participa, por imperativo da sua função ao longo de 36 anos de governo e, provavelmente por Fé, os milhões de euros que atribuiu através do Orçamento Regional para novos templos, teríamos o nosso problema colectivo resolvido. E não está, pelo contrário, agrava-se todos os dias.
Julgo que anteontem, em Santa Cruz, organizado pela Misericórdia local, teve lugar um almoço de Natal que juntou alguns dos mais frágeis do concelho. Misericórdia que desenvolve, segundo julgo saber, um trabalho meritório no citado concelho. Em função do momento, o Senhor Bispo do Funchal teceu algumas considerações. Ouvi-o através da rádio. A páginas tantas falou de Fé e repetiu a lengalenga do costume com duas palavras-chave: Fé e caridade. Ora bem, Senhor D. António Carrilho, separemos as coisas: uma é ter Fé e essa depende de cada um, da sua história de vida, da herança cultural transmitida e dos princípios que orientam as pessoas; outra, é a questão política, económica, financeira, social e cultural. As pessoas não "comem Fé", nem terão emprego facilitado através da Fé. São aspectos muito distintos. A Fé não vai resolver, após o almoço de Natal, os outros 364 dias do ano onde a pobreza e a fome existem ou, por extensão, as dificuldades que a Misericórdia de Santa Cruz encontra para resolver os dramas que lhe batem à porta. O que vai resolver é a política feita por políticos sérios, honestos e com dimensão humanista. Políticos que saibam definir o prioritário do acessório. Se assim não fosse, o presidente do governo regional, com tantas missas a que assiste e procissões em que participa, por imperativo da sua função ao longo de 36 anos de governo e, provavelmente por Fé, os milhões de euros que atribuiu através do Orçamento Regional para novos templos, teríamos o nosso problema colectivo resolvido. E não está, pelo contrário, agrava-se todos os dias. Onde está e qual é então a Fé dos governantes, questiono? Bastará reunir, por exemplo, na Calheta, mil idosos, com a presença de elementos do governo (!) e proporcionar-lhes um jantar muito agradável, simplesmente porque é Natal? Rejeito, então, liminarmente, a Fé como pura recitação, como puro oportunismo, "porque não responde ao ideal cristão". E tanto assim é que, no caso da Madeira, onde uma maioria dos habitantes são pessoas de Fé (a outra), estamos em claríssima tragédia social. Parece-me lógico que conclua que este é um problema político e não de Fé. A organização do todo social, da educação à saúde, do trabalho à família, dependem de medidas políticas, Senhor Bispo, e não da utilização da Fé para escravizar ou gerar ainda mais obscurantismo.
A minha Fé, Senhor Bispo, está na História bonita e profunda de Jesus de Nazaré, nessa Mensagem (de recorte bem político) que um Homem deixou aos Homens e que foi disseminada pelo Mundo. É essa Mensagem de onde decorre o amor, a tolerância, a conduta, a sensibilidade pelos outros que me guia. Concretizá-la, no plano colectivo, depende de medidas políticas e não da existência de Fé, nem das pessoas em geral, nem dos governantes em particular. A Fé no sentido que o Senhor Bispo enquadra transporta-nos para um outro patamar de discussão que não o da solução dos problemas. E quando o Senhor Bispo compagina a Fé com a caridade, no meu humilde e quase nulo conhecimento, inclusive, doutrinário e filosófico, atrevo-me a dizer que me parece incorrer em novo erro. A caridadezinha não tem razão de existir quando uma sociedade está organizada, quando ela se assume como defensora da justiça social, quando ela trava os ímpetos do egoísmo, da ganância e põe termo ao despotismo e às refinadas formas de fazer crer que vivemos em democracia. Não é utopia, mas a realidade. Li, algures, uma interessante explicação sobre a utopia: dizia, alguém, a utopia está no horizonte. Você dá dez passos e o horizonte distancia-se dez passos; percorre cem metros e o horizonte afasta-se cem metros. Bom, questionava-se, para que serve a utopia? Exactamente para isso, para caminhar! Ora, Senhor Bispo, o que nós precisamos é de caminhar e não de afundar cada vez mais este Povo com palavras e expressões que se desviam da realidade e conduzem o povo para o beco de uma Cruz não libertadora.
Quando o número de desempregados volta a subir não há Fé que atenue a desgraça em que mergulham as famílias; quando temos mais de 30.000 que auferem de miseráveis pensões, não há Fé que trave as angústias; quando temos 85.000 pobres, 50% dos quais no quadro da pobreza persistente, não há Fé que resolva o problema; quando temos centenas de empresários em insolvência e em falência, não há Fé que termine com o seu sofrimento. Que Fé pode um cidadão ter quando assiste, por exemplo, ao desperdício anual de mais de três milhões de euros no Jornal da Madeira, quando há paroquianos com FOME? Por aí fora, Senhor D. António Carrilho.
Não devo colocar na boca do Senhor Bispo o que deve dizer. É um problema seu. Não aceito é que a fé, intencionalmente com letra minúscula, sirva para manter a escravatura dos novos tempos e, a reboque, traga a caridadezinha, o tal resto que sobra da faustosa mesa política dos que dela se servem. O que gostaria de ter ouvido, enquanto cidadão, era uma outra coisa, essa imperiosa necessidade de mudança de comportamentos políticos que, paulatinamente e a prazo, pudessem resolver o problema da pobreza (a todos os níveis) que o Senhor Bispo, certamente, melhor do que eu sabe que não constitui uma fatalidade. As pessoas precisam de resolver os seus problemas enquanto por cá andam, os problemas derivados do trabalho, o problema da educação, da saúde, da cultura, da assistência à família, enquanto direitos constitucionais, porém, diariamente, espezinhados através de discursos elaborados com mel, a par de outros que nada dizem. A Fé é outra coisa, tem outra dimensão.
Leio: "talvez bom seria para a nossa sociedade que alguns políticos governantes se deixassem iluminar pela Fé! Talvez. Li, um texto do Padre Libânio: "A fé cristã sem as obras é morta, na expressão de São Tiago. Mais: ela acaba por contaminar negativamente a política, sacralizando e acobertando práticas desonestas". É isto que se verifica, Senhor Bispo, não é verdade?
Ilustração: Google Imagens.
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