Tudo o que seja combate à pobreza mantendo o padrão da desigualdade" (Professor Bruto da Costa) não tem sentido, pois apenas mantém tranquila uma parte da consciência política. É por isso que a solução deste gravíssimo problema não está na caridade, palavra que não gosto. Respeito e muita consideração nutro pelas mais diversas instituições que combatem a pobreza, de dia e de noite, respeito o notável trabalho das paróquias que matam a fome e esbatem casos muito sérios de carências várias, mas entendo também que não é pela via da caridade que os problemas se resolvem. A caridade transporta um significado de esmola, quando o ser humano deve ser portador de dignidade e direitos que não devem ser confundidos com esmola. É, por isso, tempo de sair dos gabinetes e ir ao terreno e ver como vivem as pessoas, como anda a satisfação das necessidades consideradas básicas; é tempo de olhar para a nova configuração da pobreza resultante do estreitíssimo beco do consumo; é tempo de olhar para uma classe dita média mas em crescente e acelerado risco de pobreza; é tempo de olhar para o número crescente dos sem-abrigo; é tempo de olhar para as famílias, para a solidão, para o alcoolismo, para a toxicodependência, para as crianças e jovens em risco; é tempo de olhar para o porquê do consumo de anti-depressivos e para as consequências daí resultantes; é tempo de olhar para o número de suicídios que se verificam na Região cujo número é dramático; é tempo de cortar, drasticamente, nas despesas de capital, em obras que nada adiantam; é tempo de rever planos megalómanos e atentar naquilo que é necessário e gerador de emprego não precário; é tempo de humildade política, da autarquia do Funchal assumir as suas responsabilidades; é tempo de olhar para as centenas de crianças pobres filhas de famílias desestruturadas que andam por aí em casas de acolhimento, de olhar para as centenas que batem à porta da Igreja, na Cáritas e tantas outras instituições de solidariedade; é tempo de dizer não a novos templos e colocar o dinheiro disponível ao serviço do desenvolvimento; é tempo de acabar com a escandalosa subsidiodependência do associativismo em geral; é tempo de estabelecermos como objectivo: “pobreza zero”.
No âmbito da candidatura do Dr. Paulo Cafôfo à presidência da Câmara Municipal do Funchal, convidaram-me para participar numa jornada de reflexão sobre as questões sociais que se colocam na Região e, particularmente, no Funchal. Do que disse, deixo aqui algumas passagens que reflectem o conjunto de preocupações que me animam:
"Há pobreza na Região porque este é um pobre Governo. E começo por vos dizer que, parecendo humor não é, a política existe, no plano das questões sociais, com um objectivo determinante: corrigir os diversos orgasmos. Todos nós somos fruto do amor e de um orgasmo. Corrigir porque ninguém tem culpa de nascer em berço pobre ou muito pobre. E o exercício da política, na essência do texto constitucional, em matéria de direitos sociais, visa essa luta por tornar mais igual, aquilo que circunstâncias várias geraram desigualdades. No fundo, a questão central pode ser colocada desta forma: se eu sou feliz na minha vida, por que motivo os outros não são? Quando eu sou um ser humano igual aos demais. Ora, colocado o problema sobre estes dois prismas, o orgasmo que, por um lado, determinou um ser pobre e, por outro, o constrangimento do direito à felicidade, temos, obviamente, aqui um campo de actuação extremamente vasto e complexo.
Desde logo porque uma família pobre está impedida de pensar numa educação a vinte anos. Um percurso de vinte anos de educação envolve encargos que são desproporcionais às possibilidades de quem é pobre. Quem é pobre é forçado a pensar a vida ao mês, à semana e quantas vezes ao dia. Porque as prioridades são as imediatas e nunca as de longo prazo. A família pobre não pode fazer uma sementeira educativa quando sabe que os frutos da árvore da vida, se houver frutos, estão a cinco, seis, sete mil dias de distância. Daí o abandono e o insucesso ditado, também, por outras razões, simplesmente porque há que resolver as questões imediatas que a sobrevivência dita. Por outro lado, os pobres, os socialmente excluídos, não podem ser responsabilizados pelo péssimo funcionamento da economia, pela falência das empresas, pelo desemprego que no nosso caso atinge já 20% da população activa. Se há culpados esses não são os pobres ou mesmo os que pertenceram à classe dita média. Alguém teve a responsabilidade de governar a região e os municípios; alguém foi responsável pela não diversificação da economia; alguém foi responsável pela inexistência de políticas de família; alguém foi responsável pelas bolsas de pobreza na cidade do Funchal; alguém foi responsável pela ausência de investimento numa consistente política educativa, libertadora e único caminho capaz de romper com o círculo vicioso da pobreza.
E neste aspecto específico, o da educação, enquanto instrumento libertador, digo-vos que não existe perversidade no meu pensamento quando, há muito, sublinho que esta política educativa regional, organizacionalmente autónoma, foi intencionalmente arquitectada. Não foi por mera incompetência e falta de visão que levou a que confundissem escolarização com educação, pois sabe-se que a manipulação política e a vitória eleitoral depende muito das fragilidades de quem vota. É, por isso, que não lhes preocupa cerca de 6.000 repetências de ano e por ano na Madeira. Não lhes preocupa que a repetência de ano de um aluno custe ao erário público cerca de 3.500 a 4.000 euros. Não lhes preocupa que este insucesso custe 21 milhões, ano perdido e ano repetido, isto é, cerca de 10,5 milhões de euros por ano. Ao invés de combaterem o insucesso logo nas primeiras idades, permitem as repetências e, daí, o insucesso e o abandono. Como se isto não bastasse, centralizaram o sistema, coarctaram a autonomia das escolas e tudo fazem para dispensar professores.
É conhecida a declaração do presidente do governo em C. Lobos, aquando da visita oficial do Presidente da República. Ao abeirar-se de uma criança, perguntou: passaste o ano? Disse a criança: não! Retorquiu o presidente: não te preocupes, eu também perdi três anos e sou presidente do governo.
Eu diria, perante estes dados, que há em tudo isto uma inteligência, perversa, é certo, mas ela existe e compagina-se com outros interesses de natureza política, onde o que parece é! E se abordo esta questão é porque, regresso aos que nasceram em berço pobre, regresso ao círculo vicioso da pobreza que só pode ser combatido através de uma política educativa que tenha em consciência que ninguém pode ficar para trás. E cada vez mais, centenas, muitas centenas estão a ficar dramaticamente para trás.
Assisti, faz algum tempo, a uma conferência do Doutor Alfredo Bruto da Costa que aqui veio abordar as questões da pobreza. O Padre José Luís Rodrigues também assistiu. Curiosamente o Secretário dos Assuntos Sociais esteve ausente, vá lá saber-se porquê! Nessa conferência anotei alguns números.
Anotei que no último estudo nacional, realizado entre 1995 e 2000, nesse intervalo de seis anos, o investigador concluiu, reparem bem, que 80% dos madeirenses passaram dois ou mais anos por uma situação de pobreza; que 30% viviam em pobreza regular, dos quais 15% em pobreza persistente. O estudo, repito, foi realizado entre 1995 e 2000, portanto, não sofríamos ainda as consequências de um cofre vazio. Passados treze anos, em 2013, com 25.000 desempregados, fora os que emigraram, todos perceberão que a situação obviamente se agravou.
Ora, este estudo deveria ter feito soar a campainha de alarme de todos os que têm responsabilidades políticas, desde o governo aos autarcas. Mas a campainha política não soou. Pelo contrário, ouvi o secretário dos Assuntos Sociais, na Assembleia Legislativa, assumir que a pobreza rondava os 4% (10.600 – RSI). Nessa altura, a Suécia tinha 6,7%. Estaríamos, pois, no melhor dos mundos, segundo o governo. Esta afirmação do secretário foi tão indecorosa que, dias depois, o presidente do governo veio dizer que a pobreza, afinal, rondava os 8 a 10%. Traduzido em números: para o governo seriam cerca de 25.000 pessoas em situação delicada; para os vários estudos elaborados em bases científicas, cerca de 80.000. Uma pequena diferença de 55.000 pessoas, varridas para debaixo do tapete dos interesses políticos.
Isto significa que, governo e autarquias, não sabem qual a verdadeira dimensão da pobreza. Aliás, nunca quiseram saber. Na Assembleia, várias vezes, foi chumbada uma proposta do Dr. Bernardo Martins no sentido de se proceder a um estudo sobre a pobreza: quantos são, quem são, onde vivem e quais as causas da pobreza. Isso nunca interessou, porque seria denunciar a verdade e colocar em causa as políticas. Preferível foi e tem sido ocultar os números de tão importante assunto, porque a manutenção do poder sempre esteve em primeiro lugar relativamente às pessoas. Digamos que tem prevalecido uma doentia mentalidade que o pobre e a fome de muita coisa, podem esperar. Eles desenrascam-se, pensarão.
Aliás, os decisores políticos, quer no governo quer nas autarquias desde sempre denunciaram uma grande dificuldade em colocar-se no lugar dos pobres e dos excluídos. Fazem-me lembrar uma história verídica, contada por um meu amigo: numa viagem ao Brasil esse meu amigo foi convidado para jantar na residência de um abastado empresário e presidente de um clube brasileiro. O empresário vivia num espaçoso e requintado apartamento de luxo com uma vista soberba. Deslumbrante, segundo narrou. A páginas tantas, este meu Amigo, com toda a elegância, perguntou qualquer coisa sobre as favelas e as dificuldades das pessoas. A resposta veio célere: "sinceramente, eu não sei nada de pobre nem de pobreza". E a conversa ficou por ali, no meio de um jantar que, segundo esse meu Amigo, chegava para quatro vezes mais o número de convivas. De facto, eles não sabem o que é a pobreza.
É, por isso, tempo de sair dos gabinetes e ir ao terreno e ver como vivem as pessoas, como anda a satisfação das necessidades consideradas básicas; é tempo de olhar para a nova configuração da pobreza resultante do estreitíssimo beco do consumo; é tempo de olhar para uma classe dita média mas em crescente e acelerado risco de pobreza; é tempo de olhar para o número crescente dos sem-abrigo; é tempo de olhar para as famílias, para a solidão, para o alcoolismo, para a toxicodependência, para as crianças e jovens em risco; é tempo de olhar para o porquê do consumo de anti-depressivos e para as consequências daí resultantes; é tempo de olhar para o número de suicídios que se verificam na Região cujo número é dramático; é tempo de cortar, drasticamente, nas despesas de capital, em obras que nada adiantam; é tempo de rever planos megalómanos e atentar naquilo que é necessário e gerador de emprego não precário; é tempo de humildade política, do governo e da autarquia do Funchal assumirem as suas responsabilidades, de deixarem de olhar para o umbigo porque há mais mundo para além do umbigo de cada um de nós; é tempo de olhar para as centenas de crianças pobres filhas de famílias desestruturadas que andam por aí em casas de acolhimento, de olhar para as centenas que batem à porta da Igreja, na Cáritas e tantas outras instituições de solidariedade; é tempo de dizer não a novos templos e colocar o dinheiro disponível ao serviço do desenvolvimento; é tempo de acabar com a escandalosa subsidiodependência do associativismo em geral; é tempo de estabelecermos como objectivo: “pobreza zero”.
O combate à pobreza, a erradicação da pobreza deve constituir um desígnio. A pobreza não é uma fatalidade. Lutando contra ela estamos, certamente, a criar os pressupostos de um futuro melhor. Estaremos a defender a estabilidade social e a diminuição do crime. Mas isto implica determinação, coragem, convicções e políticas lúcidas. Não se resolve com um pontual almoço ou um jantar de Natal onde se reúnem alguns idosos, os pobres e onde se pronunciam discursos hipócritas, vazios de conteúdo e de significado. Há aqui questões de base ideológica que esta Coligação tem de saber combater. Há aqui questões de base humanista que temos de saber combater. Mas, atenção, não basta um programa de boas intenções. A generalidade dos programas de luta contra a pobreza, diz-nos a história dos processos, mantêm os padrões da desigualdade. Os próprios programas reproduzem a desigualdade, isto é, não se mostram capazes de quebrar o círculo vicioso da pobreza.
E, atenção, nada tenho contra os ricos, desde que a riqueza não seja mal explicada, paguem os seus impostos, gerem postos de trabalho e paguem o salário justo. Mas o que se sabe é que os ricos, falo de pessoas e de instituições, nunca ou muito raramente são tocados, simplesmente porque o poder de decisão está sempre do lado do capital. Vivemos e somos subjugados pelo domínio de uma economia e de um sistema capitalista selvagem que impede uma nova visão do sistema económico humanista. E os programas reflectem isso mesmo.
Para nós que aqui estamos de boa vontade e de espírito aberto sabemos que a causa da pobreza não está nos pobres, está, fundamentalmente, nas mudanças que são de natureza política. "Tudo o que seja combate à pobreza mantendo o padrão da desigualdade" (Professor Bruto da Costa) não tem sentido, pois apenas mantém tranquila uma parte da consciência política. É por isso que a solução deste gravíssimo problema não está na caridade, palavra que não gosto. Respeito e muita consideração nutro pelas mais diversas instituições que combatem a pobreza, de dia e de noite, respeito o notável trabalho das paróquias que matam a fome e esbatem casos muito sérios de carências várias, mas entendo também que não é pela via da caridade que os problemas se resolvem. A caridade transporta um significado de esmola, quando o ser humano deve ser portador de dignidade e direitos que não devem ser confundidos com esmola.
É, portanto, pela via política, com deliberações conjugadas que "dêem o peixe mas também a cana", em simultâneo, utilizando a expressão do Professor Alfredo Bruto da Costa. A "caridade" que coloco aqui entre aspas, deve ser o fim da linha, o ataque às margens mais distantes, para quem mergulhou tão fundo que experimenta dificuldades em se erguer apesar de toda a acção nesse sentido. A caridade não resolve, a prazo, problema algum, apenas se destina a esbater e aliviar a consciência dos erros dos políticos. Esta Coligação pela mudança deve partir do pressuposto que a "armadilha da pobreza é a armadilha das desigualdades" e, portanto, não se pode cair no círculo vicioso de que "os pobres são pobres porque são pobres", antes "os pobres são pobres porque os ricos são ricos". Mas para quem disto sabe, como é o caso do Professor Doutor Alfredo Bruto da Costa, cujo pensamento aqui deixei, investigador que para além de académico é Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz, instituição ligada à Igreja Católica, o PSD acabou por enxovalhá-lo, apelidando-o de comunista, gonçalvista e de outras coisas. É chamada ignorância altifalante!
Penso que estamos à beira de uma tragédia social. Não sei onde isto irá parar. Os pobres de longa duração, sabemos pela constatação da realidade, entraram numa linha de conformismo. São pobres e ponto final. Mas os que estão a cair rapidamente na zona escura da pobreza, esses podem vir a ter uma reacção de revolta que pode potenciar a violência. E no limite a violência pode afectar a democracia. A liberdade para além de ser um direito básico e universal, implica a existência de condições para o seu exercício. E um Homem com fome não é um Homem livre, disse Amartya Sen, Nobel da Economia em 1998. Não nos esqueçamos das altíssimas taxas de abandono escolar e da frustração de centenas de jovens à procura de um espaço onde possam exercer uma profissão. Estamos, pois, sentados em cima de uma bomba relógio. Vivemos uma situação de algum caos, ausência de esperança e isso pode servir para espoletar situações menos agradáveis. Oxalá que não.
Por outro lado, é intolerável, inaceitável, contraproducente, obsceno até, enterrar milhões em obras desajustadas da realidade. Embora escasso e embora as dívidas atinjam um quantitativo assustador, o dinheiro existe. O problema está na definição política das prioridades. Todos conhecem a pirâmide das necessidade de Maslow. Quando milhares se encontram distribuídos pelos primeiros três patamares, a mentalidade política situa-se no patamar da realização pessoal (topo). Quero eu dizer que a grande obra no ser humano foi substituída pela obra do cimento e outras, quanto mais desajustada da realidade melhor. Porque o grande vende quando não existe uma cultura que possibilite uma ponderada análise. E a propósito de obras, dizia o sociólogo Lucien Romier: “uma equipa de futebol por cada mil habitantes e o problema social será resolvido”. Não é por acaso que a Região tem 37 campos de futebol, quando temos milhares de pessoas a passar muito mal. Enquanto ali estiverem não pensam nas agruras da vida, nos seus direitos e nas oportunidades que são, sucessiva e subtilmente, negadas.
Portanto, eu diria que uma Câmara de “mudança” saída desta Coligação tem de dizer basta às opções e atitudes políticas miseráveis, cretinas, sem qualquer ponta de humanismo, de amor ao próximo, de respeito pelas prioridades e de sentido de justiça. Deve ser missão desta Coligação para a “mudança” um novo olhar para os pobres, para o que aí vai de desgraça social, para a miséria, olhar para o lado e ver o ambiente familiar, social, económico, financeiro e cultural em que esta Região e particularmente o Funchal mergulhou. Temos a obrigação de olhar para a degradação dos princípios e dos valores, olhar, repito, para o porquê dos suicídios, para os assaltos e roubos, para os assassinatos, olhar para a fome de tudo e não empurrar para longe os problemas que são daqui e aqui têm de ser geridos e resolvidos. Temos de saber parar com o esbanjamento em obras vergonhosas, sem sentido de oportunidade e que apenas servem a estupidificação de uns e a "glória" eleitoral de outros. O limite da tolerância, parece-me óbvio, já foi atingido, face ao descaramento, à sistemática perseguição a quem pensa diferente, à castração do pensamento de todos aqueles que, enquadrados no círculo vicioso da pobreza, não têm armas, nem a do voto, para "combater" este estado de situação reles, sem nível e esgotado.
Fui Vereador na Câmara Municipal do Funchal durante doze anos. Ali nunca respirei um ambiente de preocupação pelas questões sociais, embora, por Lei, uma das suas atribuições seja a protecção à infância e à 3ª idade. Nunca percepcionei a existência de sentimentos, de princípios e de valores humanos e cristãos. No entanto, saem em procissões e vão a todos os Te-Deum. Nunca percebi que a identificação de uma necessidade fosse questionada na sua génese, o que significou sempre a percepção de certos avanços embora as necessidades anteriores não estivessem satisfeitas. Nunca constatei uma interpretação do desenvolvimento assente em três dimensões inter-relacionadas: a dimensão económica, a dimensão social (que tem a ver com a vida e com as desigualdades) e com a dimensão cultural. A Câmara do Funchal, desde sempre, nunca percebeu o desenvolvimento numa perspectiva endógena e integrada, enquanto resultado de considerações e de avaliações de ordem filosófica, ideológica e metodológica. A autarquia do Funchal nunca considerou estes factores que conduzem ao desenho e contextualização do desenvolvimento. O Funchal tem sido gerido ao sabor de interesses e de coutadas. Por isso, a indiferença conduziu a que o Funchal se apresente hoje como uma fruta razoavelmente bonita por fora, mas muito corroída por dentro. E aqui vive 50% da população. É o centro rico, mas o centro onde a pobreza tem maior expressão, onde se multiplicam as bolsas de pobreza escondidas pelas ruas secundárias, os becos, travessas, entradas e impasses.
O Funchal é, por outro lado, uma cidade saturada, de crescimento desordenado que tem vindo a gerar problemas na escala da própria cidade. O Funchal está assimétrico, não existe um sentido de medida, uma cidade construída à medida do Homem. Vivemos numa cidade sem alma, porque foi passada, eu diria, ao ferro nivelador da uniformidade do pensamento político. Não temos uma cidade dos cidadãos. Vivemos numa cidade onde há desumanidade nos direitos do Homem, existe muita reclusão, gente que não sai do lugar onde vive, porque não há uma dimensão económica e solidária à luz de objectivos culturais, porque não existe um projecto colectivo que aglutine e dinamize o conjunto do corpo social em todas as variáveis. Quando a natureza puxa os seus galões, aí ficam as fragilidades à vista como aconteceu no 20 de Fevereiro.
Ora, isto implica mudar as estruturas do pensamento político, que leva tempo, no sentido de devolver a cidade aos cidadãos. Isto implica a defesa de uma identidade própria que relegue o crescimento pelo crescimento através de modelos e padrões de vida importados, isto é, conducentes a uma cidade cheia de coisas, mas na verdade, vazia de significado.
(...)
Mas atenção, Amigo Paulo Cafôfo. Esteja atento. Há pessoas para todo o tipo de comportamento. E há candidatos que se ajeitam a isso. Falam e escrevem sem qualquer coerência e sem memória. O que ontem era a verdade, indiscutível, insofismável, hoje, enterram os pensamentos, as palavras ditas e apresentam-se com novas roupagens, com um discurso maquilhado, como se ninguém tivesse presente o que foi dito em nome da defesa de uma política que deu no que deu. Gritaram contra todos quantos alertaram para a pobreza, para as carências de uma população que dia a dia ia sendo empurrada para a periferia, espoliada nos seus direitos e encostada à parede por clara ausência de políticas autónomas geradoras de necessários equilíbrios. Pessoas que chumbaram propostas, umas atrás das outras, na Câmara e a outros níveis, que negaram audições, boicotaram inquéritos, subiram ao palanque para pregar a palavra do "vigia da quinta" (feliz expressão do Padre Martins Júnior) e para ocultar a realidade que milhares já estavam a sentir na pele. Bastaria andar por aí com olhos não partidários, bastaria ter presente os desabafos, o desenho da economia e das finanças, as megalómanas obras, as dívidas, as caraterísticas do sistema educativo e o quadro da formação profissional, para além do novo analfabetismo, ou melhor, de um crescente número de pessoas sem instrução que os novos tempos exigem, para concluírem que o buraco, não apenas o financeiro, mas o buraco da pobreza, da dívida social, estava a aumentar e a tornar-se incontrolável. Apesar disso, mandava a liturgia partidária que tudo fosse negado. Por falta de inteligência? Digo eu, não, por falta de respeito por si próprios e cega obediência ao "chefe", o tal que determina ou determinava quem ocupa os lugares no hemiciclo e nas autarquias. São essas mesmas pessoas que hoje, afogadas em porcaria social até ao pescoço, aflitas perante a crescente onda de contestação, levaram a efeito uma "semana da solidariedade" e hipocritamente, admitiram a existência de "pobreza extrema e exclusão" e, com uma distinta lata política, falaram de dez cantinas sociais e das instituições de solidariedade social que são "braços armados" da política do governo no combate à fome, disseram. Negaram, inclusive, durante anos, a existência de um Banco Alimentar e os sem-abrigo eram residuais e se estavam nessa situação a culpa era de muitos deles. Hoje temos mais de uma centena a viver e a dormir onde calha e temos mais instituições de solidariedade social que freguesias. Negaram que as cantinas escolares abrissem no período de férias para irem ao encontro das crianças que passam mal. Mete-me dó este tipo de pessoas que se vendem por uma posição. Pessoas que conseguem enaltecer a política do governo regional quando, se o desastre social está aí, apenas se deve à péssima governação, no governo e nas autarquias. Andam agora as comadres zangadas, quando dispuseram de uma maioria absoluta, durante 36 anos consecutivos. Cuidado, pois, com o discurso desses candidatos, porque é necessário, serenamente mas de forma acutilante, lembrar o que andaram a fazer. E cuidado com aqueles democratas que de cristãos pouco têm, porque parece que nada tiveram a ver com a actual situação, no quadro do esquecimento das denúncias. Com o dinheiro que aí esteve disponível, com outras estratégias, ao contrário de construírem uma terra de paz e de felicidade, uma terra capaz de suportar o embate da crise externa, geraram uma terra assimétrica, frágil, impotente e de enormes desequilíbrios a todos os níveis.
Vou terminar estas linhas digitadas ao correr do pensamento. Mas gostaria de deixar aqui, para reflexão alguns pontos. Desde logo, sugiro que 2014, seja para a Câmara Municipal do Funchal o “Ano do Combate à Pobreza e à Exclusão Social”. O ano que conduza a um estudo sobre a pobreza e a exclusão social no quadro do reconhecimento do direito dos cidadãos em situação de pobreza e exclusão social a viverem com dignidade; um ano de lançamento de um trabalho de reforço da coesão social. E se esta iniciativa sugiro é porque entendo que a prioridade do próximo(s) mandato(s) deve apontar quase exclusivamente para as pessoas. O Funchal está numa situação, eu diria, dramática. As pessoas neste momento desejam serviços exemplares de recolha de lixos, fornecimento de água, energia, limpeza urbana, segurança e protecção civil, enfim, uma eficaz gestão corrente. Os cidadãos querem mais rigor, menos burocracia, menos folclore político e uma melhor definição das prioridades. O resto pode esperar. O que não pode esperar, porque é decisivo, é o combate inteligente e seguro nas questões sociais. Não depende apenas da Câmara, todos o sabemos, mas depende muito da Câmara. Esta obra de cunho social tem trabalho pela frente, no mínimo, para cinco mandatos. Ao rigor financeiro para pagamento aos fornecedores, de uma dívida que é gigantesca, a prioridade deve centrar-se nas pessoas. As pessoas precisam de emprego, os empresários precisam de confiança para gerarem emprego, mas só isso não chega. É imperativo de uma política social, de uma Câmara com preocupações sociais, olhar para a política educativa, para as famílias e para um horizonte com utopia.
Galeano diz que a utopia está lá no horizonte. E de facto está como todos sabemos: damos dez passos e ele afasta-se dez passos. Damos cem passos e ele afasta-se cem passos. Galeano pergunta, para que serve então a utopia? Serve para caminhar. Só que este caminho tem de ser escolhido sob pena de nos encontrarmos hoje num cruzamento totalmente esburacado, taparmos os buracos do cruzamento e, no final, olhamos e damos connosco no cruzamento, no mesmo lugar, porque perdemos tempo a tapar buracos. Neste cruzamento esburacado, há que seguir um caminho, mesmo com buracos, tapando-os, mas com determinação, definindo o objectivo com clareza, sempre no pressuposto que o horizonte se vai distanciar, mas o caminho teimosamente será sempre aquele que for inicialmente escolhido.
E volto ao princípio, não nos esqueçamos que a política, naquilo que é essencial para o ser humano, visa corrigir as desigualdades que começam no orgasmo, no berço pobre e no berço rico. Obrigado".
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