Vamos sabendo das situações de vida deste e daquele, desta e daquela família. O ter vivido com alguma dignidade e ter caído no poço das desventuras. Já não falo, sequer, dos pobres e da pobreza persistente, mas dos novos pobres que olham em redor e se questionam: trabalhei como um mouro, não gastei acima das minhas possibilidades, formei os filhos, precavi-me contra os imponderáveis, afinal, onde é que eu errei? Que injustiça esta de ter de pedir, de regressar à casa dos pais, de entregar a habitação ao banco e ser um dependente? Se aos que eram pobres não lhes foram proporcionados os instrumentos necessários para saírem do círculo vicioso da pobreza, só possível através da EDUCAÇÃO e de uma acção social educativa não mitigada, aos segundos, àqueles que caíram no redemoinho do desemprego e que foram afastados para as margens, sugerem os senhores do poder e escrevinhadores de circunstância, que sejam empreendedores ou que emigrem e procurem o seu espaço. No meio disto temos os jovens, muitos bloqueados porque as limitações orçamentais impedem a continuação dos estudos, muitos outros, já licenciados, que das duas, uma: ou não conseguem emprego ou são mão-de-obra escrava a 300/400 euros por mês, recibo verde, pagamentos por conta, segurança social e todos os outros impostos. Resta-lhes sair, mas hoje, porém, questionam-se, para onde, quando se assiste a uma vaga migratória de uns países para outros, escasseando as hipóteses de trabalho? Jovens que por aí andam, com boa formação, que já experimentaram dois e até três países, sem sucesso. Não me admira, pois, embora as causas possam ser diversas, que 21 licenciados vivam sem-abrigo nas ruas de Lisboa.
Ora, quando leio e ouço a conversa do empreendedorismo fico com uma espécie de urticária. Eu que me interessei, por razões académicas, nos finais dos anos 80 e princípio da década de 90, pela área da gestão, eu que bebi o pensamento de Peter Drucker, Gary Hamel, Michael Hammer, Tom Peters, Rosabeth Moss Kanter, Michael Porter, Dom Tapscot, Warren Benis, entre outros tidos como gurus da gestão, eu que acompanhei outros pensadores em outros sectores e áreas políticas, financeiras e sociais, cruzando a informação de uns e de outros, cedo concluí que estava a ser desenhado e paulatinamente construído um mundo de enganos e de sucessivos desequilíbrios. Aos meus alunos na Universidade da Madeira chamei à atenção para as contradições, fazendo-lhes desenvolver os necessários raciocínios de contraponto. Porque uma coisa era, por exemplo e entre vários, a "Terceira Vaga", de Alvin Toffler (1980), outra as contradições, o que se escondia, adivinhava e a insustentabilidade de alguns dos novos olhares sobre o crescimento, o desenvolvimento, no essencial, relativamente ao Homem no Mundo.
Ler, por exemplo, "A empresa do futuro chamar-se-á EU, Sa.", assumido por Tom Peters, ou "Nada mais certo no futuro que o emprego incerto", defendido por Peter Drucker, conjugadas estas duas asserções, facilmente poderíamos chegar à tal necessidade de ser empreendedor, custasse o que custasse, de criar o seu próprio espaço através da inovação e da criatividade. Pressuposto, aliás, que sempre acompanhou o Homem. Mas, da generalização de tais posicionamentos, nunca li o outro lado das sínteses que produziram: a necessidade de um bom currículo bancário, capaz de promover o sentido empreendedor e ajustado ao sentido de risco e protecção dos projectos. Em abstracto, era entusiasmante ler, confesso, "As estratégias para vencer", "Dirija o comboio do sucesso", "A anatomia do sucesso", "O elogio da crise", "Deixe os seus rivais loucos", "A psicologia das modas", "Os RH morreram, vivam os novos RH", "Inovação ou morte", "Tempos loucos, empresas loucas", "Em busca do UAU", "O fim do emprego", "Reinventar o trabalho", "Os líderes do futuro", "A era da segmentação individual", "Uma marca chamada você", "O Mundo no ano 2020", "A competitividade da Europa", "O capital sem fronteiras", "O futuro do capitalismo", "O que vai mudar com o Euro", "As dez questões-chave da reengenharia" entre centenas de artigos que li. O problema era sintetizar os títulos e os conteúdos cruzando-os com outros dados. Hoje, de olhos postos na organização social que nos enquadra, sinto que fomos conduzidos para um beco de difícil saída. Os dados estão aí para provar. Os milionários crescem, os empreendedores fecham portas e jovens e menos jovens emigram.
Obviamente que este novo Mundo convida-nos a não ficar sentado à espera que outros resolvam os nossos problemas de enquadramento profissional e social. A questão, porém, é outra, é a de perceber a relação desequilibrada entre quem tem possibilidades financeiras para inovar, criar e empreender e todos os restantes. Ainda ontem tive conhecimento de uma licenciada em farmácia, a recibo verde, claro, que será despedida por estar a chegar ao final do contrato, pelo que se questiona: não posso abrir uma farmácia, não tenho dinheiro para comprar uma que, eventualmente, esteja à venda, já tentei a emigração, sou escrava dos horários de trabalho, que vou fazer a partir do próximo mês? Empreender em quê? Que futuro me está reservado? Tal como uma arquitecta que conheço, que já andou em vários países, que regressou, que lhe pagavam uns míseros € 300,00 e que, tal como tantos, não tem projectos? E o caso daquele jovem licenciado em Direito, agora advogado, que por existir mais oferta que procura, restam-lhe algumas oficiosas, serviços pagos tardiamente e a preço de saldo? E o professor despedido cujo mister é o ensino, que nem explicações pode oferecer, porque poucos são os que lhe podem pagar? E o pedreiro que nunca fez mais nada do que o relacionado com a construção e que a ausência de obras empurraram-no para o desemprego? Idem, para o carpinteiro, o electricista, enfim, todos os que vivem, que precisam de trabalhar, que podem até desejar criar o seu próprio espaço, mas que não o conseguem face a inúmeras situações com as quais se confrontam!
É fácil, muito fácil, escrevinhar um livrinho, incentivar o empreendedorismo, apresentar um leque de soluções elaboradas à secretária e frente ao computador, baseado no que outros dizem e em palavras e pensamentos-chave, mas gostaria de ver tais "pensadores", com toda a sua imaginação, criatividade e sentido de risco, no actual contexto de crise, onde encerram mais empresas do que aquelas que se apresentam ao mercado, associarem a prática à teoria que vendem. Gostaria.
Ilustração: Google Imagens.
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