(Por Immanuel Wallerstein, in Blog OutrasPalavras, 16/05/2017)
As turbulências e reviravoltas políticas que vivemos irão recrudescer. A esquerda só vencerá se souber aliar os que lutam por direitos sociais às forças multiculturais. Este é, hoje, o sentido da luta de classes.
O período entre 1945 e 1970 foi, ao mesmo tempo, de altíssima concentração de capital ao redor do mundo e de hegemonia geopolítica dos Estados Unidos. Na geocultura da época, liberalismo de centro estava em seu ápice, como ideologia dominante. Nunca antes o capitalismo parecia ter funcionado tão bem. Mas isto não iria durar.
O alto nível de acumulação de capital, que favorecia em particular as instituições e o povo estadunidense, chegou ao limite de sua capacidade de garantir o quase monopólio de empresas produtivas necessário. A ausência deste quase monopólio fez com que a acumulação de capitais em todos os lugares começasse a estagnar. Os capitalistas foram obrigados procurar maneiras alternativas para sustentar seus rendimentos. As principais formas foram transferir as empresas produtivas para regiões de custo mais baixo e se envolver em transferências especulativas de capital, procedimento mais conhecido como financeirização.
Em 1945, o quase monopólio geopolítico dos Estados Unidos só era desafiado pelo poder militar da União Soviética. Para assegurar este quase monopólio, Washington teve de entrar num acordo tácito, porém efetivo, com a União Soviética, chamado “Yalta”. Este pacto envolveu uma divisão do poder sobre o mundo: dois terços para os Estados Unidos, um terço para a URSS. De forma recíproca, concordaram em não desafiar tais limites, nem interferir nas transações econômicas do outro em sua respectiva esfera. Também iniciaram uma “guerra fria”, cuja finalidade não era derrubar o outro (ao menos no futuro previsível), e sim preservar à risca a lealdade de seus respectivos satélites. Este quase monopólio também foi aniquilado devido ao crescente questionamento sobre sua legitimidade, por parte dos perdedores, no status quo de então.
Para acrescentar, este foi um período no qual os movimentos anticapitalistas tradicionais, ou “velha esquerda” (em que se incluem comunistas, social-democratas e partidos de libertação nacional), assumiram o poder em várias regiões do sistema mundo, fato que parecia altamente inimaginável em 1945. Um terço do globo era governado por partidos comunistas e seus equivalentes. Outro terço era governado pelos partidos social-democratas na região pan-europeia (América do Norte, Europa Ocidental e Australásia); nesta, o poder alternava-se entre partidos social-democratas que adotavam o Estado de Bem-estar Social (Welfare State) e partidos conservadores que também o aceitavam, embora procurassem reduzir sua extensão.
E, na última região, no chamado “Terceiro Mundo”, movimentos de libertação nacional chegaram ao poder, com promessas de conquista da independência, na maior parte da Ásia, da África e do Caribe; e promovendo regimes populares na América Latina, que já era independente.
Dada a força dos poderes dominantes, especialmente dos Estados Unidos, pareceria insólito que movimentos antissistêmicos chegassem ao poder nesse período. Mas, de fato, ocorreu o oposto. Com o propósito de lutar contra o impacto dos movimentos anticoloniais e anti-imperialistas, os Estados Unidos fizeram concessões, na esperança de que forças moderadas assumissem o poder nestes países. Calculavam que tais forças estariam mais dispostas a governar segundo normas convencionais do comportamento interestatal. Tal expectativa mostrou-se correta.
O ponto de inflexão ocorreu com a revolução mundial de 1968, cuja notável — embora curta — insurreição, entre 1966 e 1970, trouxe dois grandes resultados. Um foi o fim de uma longa hegemonia do liberalismo de centro (1848-1968) como única ideologia legítima na geocultura. Em seu lugar, tanto a ideologia radical de esquerda como a ideologia conservadora de direita, reconquistaram suas autonomias, e o liberalismo de centro viu-se reduzido a ser apenas uma entre três ideologias concorrentes entre si.
A segunda consequência foi a afronta mundial contra a “velha esquerda”, por movimentos de todos os cantos, que concluíram que a mesma não tinha nada de antissistêmica. Sua ascensão ao poder não havia mudado nada relevante, diziam seus agressores. Estes movimentos passaram a ser vistos como partícipes do sistema que devia ser rejeitado, para que os verdadeiros movimentos anticapitalistas tomassem seu lugar.
O que ocorreu depois? No início, esta nova direita assertiva parecia ser a vencedora. Tanto o presidente Reagan, dos EUA, como a primeira-ministra britânica Margareth Thatcher proclamaram o fim do até então dominante “desenvolvimentismo”, e o advento da produção orientada para o mercado mundial. Eles afirmaram que “não havia outra alternativa” (TINA = “there is no alternative”). Dada a queda das receitas do Estado, na maior parte do mundo, a maioria dos governos solicitou empréstimos, que só seriam concedidos se aceitassem os novos termos da TINA. Estes termos eram exigidos para reduzir drasticamente o tamanho dos governos e, assim, eliminar o protecionismo, enquanto acabava o estado de bem-estar social e aceitava-se a supremacia do livre mercado. É o que conhecemos como o Consenso de Washington — e quase todos os governos se renderam a esta grande mudança de foco.
Governos que não se enquadraram, caíram, culminando no colapso espetacular da União Soviética. Depois de algum tempo, os Estados complacentes descobriram que o aumento prometido na renda real, tanto do governo quanto da maior parte dos trabalhadores, não ocorreu. Pelo contrário, esses Estados sofreram com a austeridade imposta a eles. Surgiu uma reação à TINA, marcada pela insurreição dos zapatistas, em 1995, as manifestações bem-sucedidas contra a tentativa de decretar garantias obrigatórias para os chamados “direitos de propriedade intelectual”, em Seattle, 1998, e a fundação do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em oposição ao Fórum Económico Mundial, pilar de longa data da TINA.
Com a esquerda global ganhando força novamente, as forças conservadoras tiveram que se reagrupar. Deslocaram-se de sua ênfase exclusiva em economia de mercado e lançaram sua face sócio-cultural. Inicialmente, gastaram muita energia em questões como a proibição do aborto e a insistência no comportamento heterossexual exclusivo. Utilizaram tais temas para atrair apoiadores à ação política. E mais tarde voltaram-se para posturas xenofóbicas anti-imigração, abraçando o protecionismo a que os conservadores econômicos especificamente se opunham.
No entanto, os apoiadores dos direitos sociais expandidos para todos e do “multiculturalismo” copiaram a nova tática política da direita e legitimaram, com sucesso, ao longo da última década, avanços significativos em questões sócio-culturais. Direitos das mulheres, os primeiros direitos ao casamento homossexual, direitos dos indígenas, tudo isso se tornou vastamente aceito.
Então, onde estamos? Os conservadores económicos venceram primeiro, e depois perderam força. Seus sucessores, os conservadores sócio-culturais venceram, depois perderam força. Mesmo assim, a Esquerda Global parece hesitar. Isso acontece porque ela ainda não parece disposta a aceitar que a luta contra a Direita Global é a luta de classes, e que isso deveria ser explicitado.
Na crise estrutural do sistema mundo moderno, que começou nos anos 1970 e provavelmente vai durar mais uns vinte a quarenta anos, a questão não é a reforma do capitalismo, mas seu sistema sucessor. Se a Esquerda Global quer vencer a batalha, deve aliar solidamente as forças anti-austeridade com as forças multiculturais. Só o reconhecimento de que os dois grupos representam os mesmos 80% de baixo da população mundial tornará possível a vitória. É preciso lutar contra o 1% e buscar atrair os outros 19% para seu lado. Isso é exatamente o que significa, hoje, a luta de classes.
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