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sábado, 26 de dezembro de 2020

Oxalá


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
25/12/2020


1 Tarde e a más horas, nomearam um coordenador de uma task force encarregado de gerir o plano de vacinação nacional contra a covid, Francisco Ramos. Passado mais de um mês, não entendi bem por quem é formada a dita task force, como é que está organizada e coordenada. E também não entendi quais são ao certo os poderes e até as informações ao dispor do coordenador, visto que sobre o plano de vacinação umas vezes o oiço falar a ele, outras à ministra, outras ao primeiro-ministro e outras ainda à agora regressada directora-geral. Esta segunda-feira, foi a vez de ouvirmos o coordenador, numa breve entrevista ao “Público”. Perguntado onde iriam ser administradas as primeiras 7500 doses “simbólicas” de vacinas a profissionais de saúde, já daí a uma semana, respondeu que “a lista ainda não está fechada” (nessa mesma noite a ministra deu a lista). Perguntado a seguir se havia muitos profissionais de saúde que não quereriam vacinar-se, disse que os únicos dados que tinha eram de um hospital que conhecia. Perguntado depois como iriam fazer com o elevado número de pessoas internadas em lares com demência, em termos de consentimento para a vacinação, respondeu textualmente: “Essa é uma questão que ainda terá de ser esclarecida. Acho que devemos solicitar um parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.” E se o parecer não chegar a tempo? Resposta. “Hão-de ser vacinados ou não, mesmo sem parecer. Como é que se fez na gripe?” Enfim e mais importante: confrontado com a afirmação do presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar de que não existem só 400 mil pessoas com mais de 50 anos e doenças que os habilitam para a primeira fase de vacinação, mas sim o dobro, respondeu que a DGS está a trabalhar para se fazer uma “caracterização mais fina” (um dos palavrões da moda trazidos pela pandemia). De qualquer maneira, acrescentou o coordenador, “os 400 mil são meramente uma estimativa, não se fez uma identificação prévia”. Meramente uma estimativa: 400 ou 800 mil, meramente um pormenor...



Acrescente-se a estes esclarecedores esclarecimentos de quem já devia saber tudo, que também não se sabe como é que serão contactadas as pessoas sem telemóvel (nas aldeias, segundo o coordenador, será por “recados”), não se sabe como é que os centros de saúde elaborarão o historial clínico do milhão de pessoas que não está lá inscrito ou que não tem médico de família atribuído, para poderem inscrevê-las nas diversas fases de vacinação; que não consta que o pessoal dos centros de saúde esteja a ser treinado para administrar a vacina da Pfizer, cujo manuseamento é diferente de qualquer outra; que nem sequer foi assegurado publicamente, preto no branco, que toda a cadeia de transporte e distribuição (que, por exemplo, a Alemanha ensaia desde Agosto e a Espanha desde Setembro), esteja a postos e pronta a funcionar todos os dias, sem falhas, nem feriados, nem tolerâncias de ponto.

Enfim, juram-nos que está tudo a postos (como estava para a vacina da gripe...), que andrá tutto benne, e o coordenador garante-nos que, se um avião chegar à Portela com vacinas às 11h da manhã, às 15h já estarão a injectá-las. Oxalá desta vez desmintam a nossa fatal tendência para o improviso, para a desorganização e falta de planeamento, para a incompetência e indisciplina. Oxalá não confiem tudo ao nosso tradicional dom para o desenrascanço, para safar à 25ª hora o que não fizemos nas 24 horas anteriores. Oxalá eu esteja mil vezes enganado, quando, a três dias do tiro de partida, pressinto que isto das vacinas tem tudo para correr mal.

2 Formou-se uma comissão, baseada na Faculdade de Ciências, com a missão de tentar descobrir as causas da persistentemente elevada taxa de mortalidade covid entre nós, sem paralelo com os outros indicadores e sem comparação com os outros países — com excepção da Suécia, o país que adoptou como política de combate à pandemia a opção de deixar morrer os velhos. Oxalá, então, descubram que o problema é de ordem científica e não de ordem política.

3 Um dia, quando tudo isto passar — porque há-de passar —, haveremos de ter de contar a indecente história de como as nossas sociedades ricas, cómodas, dotadas de todas as facilidades e confortos, abandonaram os seus velhos para morrerem em lares que se transformaram em pavilhões de morte ou sozinhos em casa, vergados à solidão mais miserável. Teremos de contar como aquela infelicíssima — e quero crer que impensada — declaração de que este era um “vírus bonzinho que só mata velhos” serviu para libertar todos os egoísmos e todas as responsabilidades, desde os mais novos, que se sentiram imunes ao perigo, até a alguns da tão elogiada “linha da frente”, que se sentiram livres e respaldados para decidir, em nome de toda a restante sociedade: em Espanha, o país cujo Governo pior geriu a crise, no auge do aperto, veio de cima uma ordem clara: velhos infectados vindos dos lares, não eram recebidos nos hospitais. Um dia teremos de contar essa triste e feia história. Um dia, quando esta geração, que hoje se sente tão orgulhosamente imune à covid e que continua a enxamear os centros comerciais a comprar as últimas compras de Natal, estiver a reclamar o direito a receber gratuitamente medicamentos que custam milhares de euros para lhes garantir mais um ano de vida.

4 A pandemia tem sido propícia a teorias conspirativas para todos os gostos e nem todas se alimentam da estupidez de rebanho das redes sociais. Algumas são encabeçadas por gente que aproveita o desnorte e a desesperança colectiva para propor supostas explicações e soluções já várias vezes ensaiadas em vão e em diferentes contextos. É o caso da teoria, muito acarinhada por sectores da extrema-esquerda colectivista, de que o perigo da pandemia tem sido exagerado e de que a ordem de batalha, assente na defesa da saúde pública, conduz à ruína da economia e ao consequente agravar das desigualdades sociais. Curiosamente ou não, a extrema-esquerda encontra-se aqui com os argumentos da extrema-direita de Trump e Bolsonaro ou dos negacionistas que proliferam no esgoto das redes. É verdade que a pandemia tem arruinado as economias e que isso agrava, como sempre, as desigualdades sociais. Mas, não falando já do dever elementar dos Estados de defenderem a saúde dos seus cidadãos, a única forma de, a prazo, defender a economia é evitar o caos na saúde pública: uma sociedade doente conduz fatalmente à ruína económica. Por ora e depois, os Estados têm de fazer aquilo que estão a fazer e que irão continuar a fazer: injectar o dinheiro que puderem na economia para salvar famílias, empregos e empresas. Entretanto, o marxismo-leninismo pode esperar.

5 Pinto da Costa anunciou o seu apoio à candidatura de Ana Gomes assim que soube que Ana Gomes declarara o seu apoio à regionalização — sem referendo nem nada, não vá o povo, consultado por capricho democrático, voltar a recusar e humilhar as pretensões dos caciques partidários provinciais e das vestais constitucionalistas. Eis aqui duas razões para eu não votar em Ana Gomes: Pinto da Costa e a regionalização. Ambas trazem assegurada uma mesma certeza: a da ruína certa.

6 Eu sou dos que têm pena de ver a Inglaterra sair da Europa, mesmo não ignorando que, verdadeiramente, ela esteve sempre lá com um pé dentro e outro fora. Mas, simultaneamente, também penso que os cidadãos britânicos saem por razões sem sentido, de puro orgulho e vaidade espúria, numa aliança assente em valores do passado entre o snobismo irritante das classe altas e os leitores do “Sun”. Merkel fez tudo para evitar essa saída e fez tudo para evitar que ela se procedesse desordenada e desagradavelmente, como um divórcio litigioso. Ela travou o instinto de muitos dos 27 de “castigar” a Inglaterra, mostrando a outros, tentados a seguir a mesma via, que não compensa abandonar a UE. Mas é difícil negociar com quem prometeu aos ingleses que sair era facílimo e que, sem as amarras da UE, a Inglaterra iria ser “próspera”, mas que, na hora da verdade, mostrou qual a chave dessa prosperidade: conseguir acesso ao grande mercado europeu como antes, mas sem as regras comuns, como antes. Desgraçadamente para os ingleses, nesta darkest hour, eles não têm à frente dos seus destinos um estadista como Angela Merkel, mas sim um espalha-vento como Boris Johnson. Talvez ainda se consiga um daqueles acordos do último minuto da última hora do último dia. Mas será um acordo colado com cuspe e sujeito a todas as desconfianças e conflitos permanentes no futuro.

Ilustração Hugo Pinto
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

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