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terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Vacinas: uma frase de que Costa se vai arrepender


Por estatuadesal
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário,
30/11/2020


Não me interessa, por agora, saber se a proposta de trabalho para ser apreciada pela DGS, que punha a possibilidade de deixar quem tinha mais de 75 anos no fim dos grupos prioritários, estará certa ou errada. Preocupa-me que, num assunto tão sensível, haja técnicos que deixam transpirar para fora um debate em fase inicial, quando se discutem documentos provisórios e inacabados num cenário em mudança e que ainda é de incerteza. E preocupa-me que a comunicação social seja leviana na forma como os apresenta. Assim, será difícil trabalhar. Contribuem para o caos e para a politização de um debate que deve ser ponderado. E preocupa-me a rápida indignação geral que tal informação provocou.



Não sendo técnico, não sei se é válida a hipótese destas vacinas não serem eficazes ou seguras para pessoas mais velhas. Nem eu, nem 99,9% das pessoas que decidiram indignar-se com esta possibilidade. Se se viesse a confirmar, a proposta, por mais contraintuitiva que seja, estaria certa. E esse é um problema com que a política tem de se confrontar: as escolhas tecnicamente acertadas podem ser politicamente difíceis.

Todo o processo de vacinação vai ser difícil para o poder político. O Governo devia, aliás, evitar promessas temerárias de que o risco de não estarmos preparados é igual a zero. Sobretudo depois do que aconteceu com a vacina da gripe. Mas, mais do que isso, deve medir bem a situação em que coloca os técnicos.

Confrontado com a indignação militante que se instalou por causa de notícias sobre um documento provisório, António Costa teve a pior reação possível. Escreveu no Twitter (a banalização formal do discurso de Estado é transversal a todos os campos políticos) o que nunca deveria ter escrito: "Há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos." A frase não está genericamente errada (no fim, será sempre a política a decidir), mas é a pior possível para começar um processo difícil, em que a pressão pública será tremenda. Desautoriza os técnicos. Quando tiver de explicar uma escolha politicamente difícil mas acertada do ponto de vista técnico, vão-lhe perguntar: mas esse critério é daqueles que os responsáveis políticos podem aceitar ou têm de recusar? Isto é um convite à pressão política. A frase apela à gritaria. Compreendo que acusação de querer "matar os velhinhos”, que rapidamente se espalhou pelas redes sociais, seja intolerável. Mas Costa vai arrepender-se de a ter escrito. Dificultou uma tarefa que já será penosa.

Os critérios dos técnicos não atendem apenas à necessidade de socorrer os grupos mais vulneráveis, apesar desse ser o mais evidente para toda a gente. O primeiro de todos será o de proteger aqueles que podem salvar vidas e, depois, o de travar a pandemia. No meio, tem de se ter em conta a segurança e eficácia da vacina em cada grupo – é o que teoricamente pode estar em causa, até mais informação das farmacêuticas, com as pessoas com mais de 75 anos. Nada disto pode ser avaliado por um político. Se o critério for político, vai receber a vacina quem mais se fizer ouvir.

Vamos assistir a uma grande pressão de vários sectores profissionais. Quase todos dirão que estão na “linha da frente”. Haverá discursos emotivos e demagógicos, como o do próprio primeiro-ministro: “Não é admissível desistir de proteger a vida em função da idade. As vidas não têm prazo de validade.” Se o documento provisório colocasse a hipótese de não vacinar logo aqueles que têm mais de 75 anos por uma questão de esperança de vida, compreendia-se esta afirmação. Se a dúvida por esclarecer é a eficácia da vacina nesta população, a frase é absurda.

Quando outros países tiverem mais pessoas vacinadas do que Portugal, a pressão será tremenda. E quando um grupo já estiver vacinado e noutro se continuar à espera, pior ainda. Não é habitual eu defender que os políticos devem deixar decisões a técnicos. Mas este é um caso evidente: decisões técnicas difíceis devem ser tomadas por quem está menos exposto à pressão. Para isso, é fundamental que a população aceite a autoridade dos técnicos. Não se pode dizer que o primeiro-ministro tenha contribuído para isso.

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