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domingo, 13 de dezembro de 2020

A tentativa de golpe de Estado de Donald Trump e do Partido Republicano


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
11/12/2020



 

Escrevi exaustivamente sobre Trump nestes últimos quatro anos e houve quem achasse que exagerava. Escrevi que o que de mais importante em política se passava vinha dos EUA, e houve quem achasse que exagerava. Escrevi que havia “novidade”, ou seja, criação, como criação nas artes, nas letras, no que Trump estava a fazer e que este era uma personagem carismática no verdadeiro sentido da palavra, que é tão abastardada no seu uso corrente, e houve quem achasse que era um disparate. Escrevi que o Partido Republicano de Trump se tinha tornado num estendal repugnante de sicofantas pelas benesses do poder e de covardes, vergando-se por interesse a um culto de personalidade maléfico sem princípios, e não houve quem achasse coisa nenhuma porque Trump ainda suscitava atenção, mas os republicanos eram uma coisa americana. Escrevi que Trump não era democrata, era autocrático e autoritário, desprezava a lei e a Constituição, era capaz de tudo para se servir a si próprio, tendo cometido ilegalidades a seguir a ilegalidades. Escrevi que havia claros sinais de perturbação mental na personalidade de Trump, um narcisista mentiroso patológico (como disse numa intervenção certeira Ted Cruz antes da sua epifania pró-Trump...), e houve quem achasse que era apenas “política” de novo tipo e uma excepcional demonstração de inteligência de um génio da economia e da negociação. Escrevi que a melhor definição de Trump dada por um nova-iorquino sobre outro nova-iorquino era que ele era um “con man”, um trapaceiro, um vigarista em tudo nos negócios e na política. Escrevi que o “trumpismo” estava para ficar mesmo que Biden ganhasse as eleições. Escrevi que Trump não iria sair a bem e que iria tentar uma espécie qualquer de golpe para se manter no poder e de novo passei por exagerado, mas neste último caso já havia bastantes “trumpistas” em Portugal, pelo que na cloaca das redes sociais houve quem jurasse que não, sairia com elegância, etc., etc.. Na verdade, por muito que dissesse, estava bastante abaixo do que aconteceu e do que acontece.

Sim, Trump teve 74 milhões de votos, muito voto, mas Biden teve 81 milhões, muito mais votos. O que há de significativo nessa votação é que os 74 milhões eram só para Trump e os 81 milhões eram contra Trump e não por Joe Biden. Nas eleições simultâneas para o Congresso e para o Senado, os democratas tiveram um mau resultado e os republicanos ganharam lugares no Congresso e vão quase de certeza manter o Senado. As explicações que Biden e Pelosi dão para os maus resultados é atribuírem-nos à esquerda do partido e a palavras de ordem como “defund the police”. Talvez seja, em parte, verdade, mas, como muitas vezes acontece, os efeitos perversos e os benéficos vêm em conjunto e, como Biden não entusiasma ninguém, o enorme entusiasmo anti-Trump nos mais jovens, nos novos eleitores, nas comunidades negras, veio dos mesmos sectores que encheram as ruas à volta do Black Lives Matter, e que eram pouco amigos da polícia e com boas razões. E assim chegámos às eleições que Biden ganhou por muitos, no voto popular e nos votos do colégio eleitoral.

Trump sabia que ia perder no fundo da sua mente complicada e simples e começou a preparar o cenário para se autojustificar e para não ter que aceitar os resultados, fazendo uma campanha sistemática contra o voto por correspondência e com a sua “lata” habitual, com excepção na Florida, onde ele era sempre fidedigno. Em tempos de pandemia particularmente mortífera nos EUA pela irresponsabilidade criminosa de Trump, os anti-Trump que usam mais máscara e que seguem mais as regras de distanciação usaram essa faculdade, aliás habitual em vários Estados, mas agora mais generalizada.

Trump tentou sabotar os correios colocando lá um servo que começou a desmantelar as máquinas de distribuição e a dificultar a chegada a tempo dos votos. Trump começou a dizer que todos os votos que não chegassem no dia das eleições deveriam ser deitados fora, esquecendo-se de que eles tinham sido enviados antes das eleições e eram particularmente legítimos. Depois, ele e Giuliani e uma série de personagens inomináveis vinham com nova teoria todos os dias: que as máquinas automáticas de contagem dos votos eram resultado da mão póstuma de Chávez e que os votos eram contados fora dos EUA, que havia malas de votos descartados (num vídeo falso) e testemunhos de que 5, 10, 20 votos tinham entrado erradamente, etc., etc.. Alguns desses “testemunhos” eram tão ridículos que se tornaram virais pelo gozo.

E depois fez aquilo que durante toda a vida fez como empreiteiro: litigar, litigar, litigar. Até aos dias de hoje, ganhou uma acção por coisas menores e perdeu 60, algumas julgadas por juízes por si nomeados. A última é um remake da Guerra da Secessão, colocando estados contra estados e praticamente suplicando o Tribunal Constitucional para a aceitar, numa violação da teoria dos “state rights” de que até agora os republicanos eram firmes partidários. E depois continuar a radicalizar com insultos e ameaças a todos, mesmo republicanos, que não aceitavam que ele tinha “ganho as eleições e por muitos”. A sua “base” traduziu e bem as suas palavras ameaçando de morte os recalcitrantes que têm que andar com protecção policial. Já houve mortos, vai haver mais. Trump quer uma guerra civil e faz tudo para a ter.

Se o que se passa hoje nos EUA fosse no Burkina Faso, já a ONU, as organizações de defesa da democracia e dos direitos humanos, o Conselho da Europa estariam a aprovar resoluções denunciando a tentativa de golpe de Estado do candidato perdedor para sabotar os resultados eleitorais. A questão é que, mesmo que Trump tenha que sair a mal, não vai acabar.

Biden não vai conseguir governar sem maioria no Senado e Trump, que já está a abusar do seu poder para tomar decisões para comprometer o seu sucessor, vai continuar a sabotar a democracia deslegitimando o seu sucessor. Quem percebe bem isto não são os democratas, mas os republicanos anti-Trump do Lincoln Project. Vai ser preciso mão de ferro. Não sei se haverá.

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