Por estatuadesal
João Garcia,
in Expresso Diário,
16/01/2021
Estava escrito nas estrelas. Mais cedo ou mais tarde, rebentaria um caso em que jornalistas e as suas fontes fossem vasculhados, em que o sigilo profissional – uma obrigação a que os jornalistas se sujeitam para garantirem a liberdade de informação – acabasse quebrado. A espionagem policial a que foram sujeitos dois jornalistas gerou logo um coro de indignações, dentro e fora da profissão. Valha-nos isso. Mas é pouco.
Estão acusados de um crime que, no entender que o Ministério Público faz da lei, justifica uma devassa das suas vidas e contactos. Para as procuradoras do processo, eles quebraram o segredo de Justiça e, portanto, vá de fotografar encontros, no afã de saber quem fala com quem. Percebo a lógica policial: se são presumíveis criminosos, é preciso investigar. Em frente e a toda a força, que já foram inúmeras as investigações destruídas em julgamento.
Próximo passo, ouvir quem diz o quê a quem. Já há, por aí, quem defenda a necessidade de autorizações dadas por juiz. O problema, porém não é de forma. Não é processual. A questão é que não se pode proibir o que não pode ser proibido: informar.
Impedir que os jornalistas publiquem o que apuram com interesse público – e que conseguiram respeitando a ética - é mais ou menos o mesmo que meter a raposa no galinheiro e proibi-la de comer as galinhas. Com uma diferença relevante: a raposa ataca por instinto, os jornalistas publicam por contrato com a sociedade. Se alguém não guarda o galinheiro, não culpem a matreira.
O verdadeiramente preocupante neste caso – para lá dos eventuais abusos de poder que as investigadoras tenham cometido – é, fundamentalmente, a legislação sobre o segredo de Justiça. Foi invocando-a que o Ministério Público avançou.
Com força inédita.
Afinal, um jornalista que o viola, é, de acordo com a lei, um criminoso que até pode ser condenado a prisão. Se aceitamos este postulado – que nenhum partido quer rever, que nenhuma corporação da Justiça quer alterar, que nenhum Governo ousa modificar – não se pode estranhar que, ao investigá-lo, possam ser decididos inquéritos que ponham em causa um bem essencial à livre informação: o sigilo das fontes. Entenda-se, de vez, que o sigilo profissional não é um direito dos jornalistas, mas um preceito fundamental à democracia que os jornalistas têm de preservar a todo o custo. Como o dos médicos ou o dos advogados. É assim tão difícil entender?
Como já alguém disse, para quem só tem martelo, tudo são pregos. Para quem só tem normas legais para seguir, que importa tudo o mais? Mais dia menos dia, cumprindo todos os requisitos, algum magistrado acabará mesmo por conseguir quebrar o sigilo das fontes. E pode acontecer por uma coisa tão irrelevante como um qualquer E-toupeira.
A verdadeira hipocrisia é haver segredo de Justiça para tudo quanto interessa à sociedade. Um secretismo que não é chamado nos casos irrelevantes.
Tudo escondidinho, confundindo-se crítica política, ética ou social com julgamentos populares, como convém a quem quer ter a vida facilitada nas investigações, quem quer acautelar interesses pessoais ou de amigos, quem quer manipular a informação com fugas cirúrgicas de peças processuais. É ver como cada partido se abespinha a denunciar violações que afetam os seus e assobia para o lado quando estão causa os interesses da concorrência.
Além do mais, o segredo de Justiça impede que os jornalistas respeitem a obrigação de ouvir todas as partes, o que mais facilita a vida àqueles que não se importam de publicar, sem mais, os recados que recebem.
Adivinho que tudo vá acabar numa cruzada contra as magistradas em causa. Mas bem mais útil seria se a indignação se virasse contra a indignidade de uma lei que tenta impor silêncio a informação relevante. Como diria Tino de Rans, é preferível abrir caminhos a erguer muros.
A bala mata, mas o assassino é quem puxa o gatilho.
Sem comentários:
Enviar um comentário