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sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Maria José Morgado, a vacina e a liberdade construída


Daniel Oliveira,
in Expresso Diário, 
06/01/2021

Tenho por Maria José Morgado uma admiração cautelosa. Sei que é corajosa e que ama a democracia e a liberdade. Mas sei que essa intransigência esmorece quando entra nos poderes da sua corporação. Que, como todos os que se filiam nas suas corporações, julga a sua mais virtuosa que as demais. Não é vício exclusivo dos magistrados. Também o observo nos jornalistas, que acreditam piamente que numa sociedade verdadeiramente livre o seu poder tem de ser ilimitado. Mesmo que oprima a liberdade de terceiros.

 

Ainda assim, gostei de ouvir Morgado a falar na SIC Notícias ("Governo Sombra"), sobre um poder que se reforça com base no medo da pandemia. Sobre os perigos da lenta construção de uma cultura permissiva perante o abuso e a exceção. Também a mim me assustou a ausência de resistência ao primeiro Estado de Emergência e escrevi-o aqui e aqui. E assusta-me a banalidade em que se transformaram as suas renovações e disse-o.

A minha cautela resulta de saber que poderes Maria José Morgado gostaria de dar ao Ministério Público no combate à corrupção e achar que não bate a bota com a perdigota. É que eu não temo apenas o excesso de poder do Governo. Isso temem os neoliberais.

Também temo o excesso de poder dos magistrados, dos patrões ou até dos jornalistas. Temo o excesso de poder. Porque tanto me faz ser escravo de um governo, de uma empresa ou de uma corporação. E sei que quase todos acham que o poder absoluto que exercem me garante a liberdade, a prosperidade, a justiça. Que o problema é só e apenas o poder absoluto dos outros.

Apesar da contradição no seu discurso, que acompanha uma cultura corporativa que há muito marca toda a vida política e cívica nacional, revejo-me nos temores de Maria José Morgado. E não sou nada otimista. Acho que sairemos menos amantes da nossa liberdade desta pandemia. E até menos solidários. E preocupa-me a anemia cívica que se instalou. Talvez seja assim em todas as epidemias graves. Mas deixou-me perplexo quando, no fim da sua intervenção, a ouvi dizer: “ofereço a minha vacina.” E, apesar das suas responsabilidades públicas, justificou-se com alguma fanfarronice, dizendo que toda a sua vida correu riscos.

Não duvido que Morgado não tenha medo, até porque eu, com sinceridade vos digo, ainda não o consegui sentir desde o início da pandemia. Cada um sente as coisas de forma diferente e o passado e presente de Morgado dão-lhe a credibilidade para se revelar destemida. Só que esta vacina não tem nada a ver com o que cada um de nós sente, mas o que decidimos ser como comunidade. E se estamos dispostos a partilhar um risco para nos defendermos coletivamente. É isso que a vacina faz. E é por isso que ela não é um privilégio, é o dever. Chama-se imunidade de rebanho. O nome incomoda. Acontece que a pandemia nos pede amor à liberdade individual, que espero que sobreviva, mas também opções coletivas. A vacina é uma decisão coletiva, mesmo que cada um possa voluntariamente recusá-la.

O que me desespera na resposta da Maria José Morgado? É a confusão de valores. É por ter defendido desde o início que temos de ponderar a nossa segurança com a nossa liberdade, é por ter escrito tantas vezes que não podemos morrer da cura, é por ter alertado tantas vezes para os perigos da cultura do medo, é por ter resistido logo ao primeiro decretar do Estado de Emergência, que dou tanto valor a esta vacina. É por saber que quanto mais tempo isto durar mais profundamente se instalará a cultura totalitária que levo a mal que alguém, por um qualquer capricho, adie o fim disto.

A defesa da liberdade não é um grito individualista. Isso é apenas egoísmo. A defesa da liberdade é uma luta partilhada. Nessa luta, batemo-nos pelas condições para que essa liberdade seja exercida por todos. Não aceitar a vacina é uma escolha legítima. Mas põe em causa a liberdade dos outros e dá ao poder as condições necessárias para impor a sua força bruta por mais tempo.

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