João Abel de Freitas,
Economista
18 Janeiro 2021
A União Europeia tem de começar a edificar um caminho próprio, um caminho na equidistância entre as duas grandes potências: China e EUA. E o acordo agora celebrado com a China pode constituir um passo novo.
1. Após sete anos de conversações, a União Europeia e a China ou a China e a União Europeia (consoante o agrado de cada pessoa) chegaram a um acordo de princípio sobre investimentos que, segundo Charles Michel, Presidente do Conselho Europeu, em entrevista ao jornal “Público”, “traz uma vantagem para as empresas europeias, que tinham um problema de acesso ao mercado chinês por falta de reciprocidade. Havia também uma ausência de comprometimento chinês nas questões de natureza social. Por isso fico muito satisfeito que os 27 tenham apoiado este passo em frente”.
A União Europeia (UE) e Pequim aprovaram-no, a 30 de Dezembro de 2020, em videoconferência, tendo participado pelo lado chinês o Presidente Xi Jinping e pela União Europeia, a Presidente da Comissão Ursula von der Leyen, o Presidente do Conselho Europeu Charles Michel, a Chanceler Alemã e Presidente em exercício da UE Angela Merkel, e ainda o Presidente de França Emmanuel Macron. Tanta gente cola bem no “menu” europeu!
A ratificação formal, segundo Charles Michel, precisa ainda de umas semanas de aperfeiçoamento na parte jurídica, pelo que o trabalho entre as delegações prossegue por mais algum tempo. A última versão do acordo tinha sido apresentada aos representantes dos Estados-membros na segunda-feira 28 de Dezembro, não havendo oposição ao conteúdo.
Este acordo de “princípio” sobre investimentos incorpora uma vasta gama de outros compromissos, como um comprometimento chinês nas questões de natureza social, por exemplo, o respeito pelos direitos fundamentais e das minorias e o acabar com o trabalho forçado. Integra ainda uma enumeração de sectores onde os investimentos das empresas europeias serão bem recebidos, o abandono de algumas práticas recorrentes na China em que os investimentos só tinham permissão se através de empresas mistas, os principais dirigentes da empresa fossem técnicos chineses e a transferência obrigatória de tecnologia.
Ficaram, assim, estabelecidos avanços significativos de relacionamento em termos de reciprocidade. Acordo perfeito? Nunca há, nem com a China nem com qualquer outro país. A prática gera os acertos.
Vinca Charles Michel que a defesa dos direitos humanos e o respeito pelas minorias são muito importantes, mas não devem paralisar a salvaguarda dos nossos interesses em matéria de investimentos nem a capacidade de aprofundar e consolidar a defesa da reciprocidade.
Autonomia negocial europeia
2. Este acordo, ainda em fase de consolidação e em que o Parlamento Europeu vai ser chamado a intervir, tem suscitado críticas acirradas em várias instâncias nos EUA e em países afectos aos EUA.
Portugal não escapa. E, assim, ao nível de jornalistas, analistas políticos, políticos e economistas de várias tendências, são muitas as preocupações. Há até quem aponte uma certa “traição” da Europa.
Vejamos alguns argumentos.
A questão mais focada foi a da União Europeia não concertar com os EUA a posição a tomar. E uma outra, que benefícios colhe Portugal deste acordo?
Várias respostas possíveis a estas duas questões.
Uma possível é interrogarmo-nos das razões de fundo porque deveria a União consultar os EUA e acordar uma visão conjunta antes de avançar, o que pressupõe se a tal não se chegasse, não haver assinatura.
Que se saiba, os EUA quando abriram a guerra comercial com a China não consultaram a UE. Se os EUA são livres na sua acção, porque razão a UE deve pôr-se de joelhos?! Mas houve alguns, muitos, que defenderam e defendem essa atitude. Estamos assim numa filosofia implícita de potências de primeira e segunda linha.
Mas suscito um outro raciocínio mais de fundo.
Simplificando. Há duas grandes potências mundiais em confronto não bélico, mas económico e tecnológico, uma em ascensão, a China, e outra bem mais em estagnação, os EUA. Sobre este tema sugiro uma obra interessante de título bem provocatório: “A China Já Ganhou?” de Kishore Mahbubani.
Poderá falar-se da União Europeia como “terceira” potência, neste momento de segundo nível porque bem distanciada em peso político na arena mundial.
Esta “terceira” potência, se quiser entrar na competição pelo topo mundial, e seria óptimo que avançasse nessa linha (demorará o seu tempo), traria elevados dividendos para si própria e para o Mundo em termos de maior equilíbrio político, económico e de Paz mundial. Para isso, precisa de assentar os pés em terreno não escorregadio e delinear as bases comportamentais de direcção e de autonomia.
Tem de começar a edificar um caminho próprio, um caminho na equidistância entre as duas grandes potências: China e EUA.
Este acordo com a China pode constituir um passo novo. E tenho de prestar reconhecimento ao trabalho e determinação da actual Comissão Europeia e em especial da sua Presidente porque, neste e noutros domínios, tem mostrado dinâmica e determinação.
Interessante relembrar aqui que António Costa primeiro e num segundo momento Charles Michel defenderam que os interesses da UE devem ser defendidos pela UE, pelo que não faria sentido dois acordos num, ou seja, a União acordar com os EUA o acordo a estabelecer com a China.
Ora, a posição de subjugação da UE face aos EUA tem sido o paradigma e, segundo muitas vozes, deveria continuar. É precisamente esta falta de visão estratégica autónoma da Europa que a tem conduzido a uma potência de segundo nível.
Todos conhecemos a intromissão pública dos EUA no nosso país e noutros da União Europeia por causa de eventuais negócios de Portugal com a China. Não nos podemos esquecer da entrevista recente do embaixador americano em Portugal, cheia de ameaças, e a vinda de um secretário de Estado com essa mesma finalidade.
Pode alegar-se que foi na administração Trump. Esta entrevista grosseira e pública, sim. Mas contra-argumento, pois a política dos EUA face à China, mesmo no futuro com Joe Biden, não será diferente, será apenas mais civilizada. Parafraseando Kishore Mahbubani, os EUA têm “uma impreparação estratégica, diplomática e emocional para lidar com a China, porque os norte-americanos ainda estão agarrados às armas com que dominaram o século XX”.
Quanto à segunda questão – o que interessa a Portugal – troquei ideias com alguns representantes empresariais portugueses. E registo. Tudo o que seja contribuir para desanuviar o ambiente internacional é positivo para os “negócios” e, neste caso, diziam-me, melhorar as relações UE/China é fundamental, tanto mais que estamos perante uma viragem diferente a nível mundial em que a China está a aumentar o seu poderio. Portugal não é um país da Comunidade com grandes potencialidades de investimento no exterior, mas pode potenciar alguns nichos. E todos os passos têm de ser bem ponderados.
Não me pareceu que estivessem apreensivos, antes pelo contrário e, acrescentaram, a nossa desindustrialização não foi por deslocalização de empresas mas por fecho de actividades por incapacidade nacional, devido a claras deficiências no “modelo de negócios”. Inclusive, mencionaram, o que é uma realidade, em sectores como o calçado, o têxtil, os moldes e em certos segmentos do automóvel, sem falar do turismo, Portugal tem vindo a ganhar posição nos mercados e prestígio no ambiente dos negócios internacionais.
Assim, não faz sentido nem para Portugal nem para a União Europeia esta posição de apêndice dos EUA. Uma postura de cooperação, sim, mas em plano de igualdade.
Mas vamos ser claros. As maiores potencialidades de exploração deste acordo ficam ao nível das grandes empresas europeias ou de empresas bem arquitectadas em rede. Portugal tem de avançar na reconfiguração do seu tecido económico produtivo, para o que precisa de quadros qualificados para poder entrar em alguns nichos. E aqui o Estado português tem um papel importante a desempenhar.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
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