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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

O Recurso, em três lances – a narrativa, o acórdão e o “erro”


José Sócrates, 
in Expresso, 06/10/2021

Logo de entrada, no primeiro lance, o Ministério Público queixa-se do inaceitável “desprezo sobre o narrativo acusatório”. Ao longo de várias páginas os senhores procuradores criticam asperamente o senhor juiz de instrução por se ter concentrado nos factos, nos indícios e nas provas, ignorando o que chamam de “narrativo”, isto é, a formidável campanha de difamação que eles próprios promoveram nos jornais ao longo destes sete anos. Quem acompanhou este processo percebe exatamente o que eles querem dizer - o “narrativo” a que se referem é o “Correio da Manhã”



Temos, portanto, a narrativa como proposta de novo paradigma penal. Ela não deve continuar confinada aos domínios da literatura ou da política, devendo agora ocupar um lugar na ação penal. É altura do direito democrático se desembaraçar da entediante e maçadora tarefa relativa aos factos e às provas, para se concentrar nas “estórias.” Na nova lógica penal não são os factos que precedem a construção de narrativas, mas as narrativas que criam os factos. A narrativa é em si própria um facto.

Antes, a ação penal democrática constituía-se como um conjunto de atos solenes e formais de construção de factos e de provas - o que a distinguia do insulto, da calúnia e da infâmia. Não mais. Iniciada a era da pós-verdade, a nova linha de fuga do direito criminal está encontrada – se nada houver contra o alvo, construímos “narrativas”. Esta nova prioridade deita uma nova luz sobre a verdadeira motivação do processo marquês. Não foi a conduta do visado, mas o seu estatuto; não foi o suspeito, mas o alvo; não foi a justiça, mas a política. A política e o inimigo político. Eis o verdadeiro terreno da “narrativa”.

Depois entramos noutra dimensão. Os procuradores queixam-se também de que o senhor juiz “aceitou acriticamente o acórdão do tribunal constitucional”. Vejamos com atenção o que querem exatamente dizer e o que isto significa. Primeiro, todos sabemos que o Presidente da República aceita as decisões do Tribunal Constitucional. Também sabemos que o Governo e o Parlamento aceitam as suas sentenças. Poucos sabem, é verdade, mas de acordo com a nossa Constituição, mais concretamente com o artigo 280, nº 5, o Ministério Público é obrigado a apresentar recurso das “decisões dos tribunais que apliquem norma anteriormente julgada inconstitucional”. Tudo isto são factos. E, no entanto, os senhores procuradores do processo marquês acham que podem defender expressamente a interpretação de uma norma julgada inconstitucional pelo Tribunal; acham que têm o direito de criticar o juiz por seguir um acórdão do Tribunal Constitucional; e acham, finalmente, que o acórdão do TC não deve ser seguido, mas sim o voto de vencido. O voto de vencido. Esta última é de antologia – afinal, o que eles chamam de “aceitação crítica “, significaria, na prática, seguir a declaração de voto derrotado, voltando as costas à decisão que fez maioria. De um só lance, entramos em território desconhecido - o Ministério Público convoca abertamente os tribunais para que se juntem a eles na rebelião contra a ordem estabelecida pelo Tribunal Constitucional. O desespero conduz por vezes a estranhos lugares de perdição e loucura.

Finalmente, os procuradores reconhecem um erro na acusação (ver aqui). Afinal, sempre havia um erro, é verdade, mas esse erro era tão óbvio – dizem eles - que deveria ter sido imediatamente corrigido pelo juiz. Acontece que esta nova versão tem três problemas sérios. O primeiro é este: em três anos de instrução, este “erro” nunca foi mencionado. Nunca. O segundo problema é que os procuradores, durante a instrução, fizeram um requerimento ao juiz pedindo várias correções ao texto da acusação e esse “erro” nunca foi mencionado. Tenho esse requerimento à minha frente, que tem dezasseis páginas, e nele não se encontra qualquer referência a tal “erro”. Finalmente, terceiro problema, a acusação é assinada por uma equipa de sete procuradores que pretende agora fazer-nos crer que nenhum deles se apercebeu do “erro” que dizia respeito à qualificação jurídica dos principais crimes imputados. Não, não foi erro nenhum, foi reserva mental. Não há outra forma de o dizer - os procuradores estão a mentir.

Todavia, o mais grave nesta questão é a consequência que daqui pretendem extrair. Os procuradores dizem que o juiz deveria ter corrigido o erro, quando sabem perfeitamente que tal não seria possível. As autoridades judiciárias estão proibidas de fazer alterações unilaterais na acusação que tenham “por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”. O código, logo no primeiro artigo e na alínea f, chama a isso “alteração substancial de factos”, considerando tal procedimento ilegal. Portanto, e em conclusão, a alteração era ilegal antes, tal como é ilegal agora. Dizem os procuradores, no último parágrafo das suas conclusões: “considerando as alterações de qualificação jurídica que devem ser operadas”. O artifício do vocábulo “operar” significa, neste contexto, promover uma grosseira violação da lei, disfarçando-a de minudência jurídica. Não, não é uma simples “operação”; é uma ilegalidade expressamente proibida no código de processo penal.

Na economia do artigo, resta fazer o resumo da ópera. Um - os procuradores atacam o juiz por este se ter concentrado nos factos e ter esquecido a narrativa. Dois - os procuradores atacam o juiz por este ter seguido o acórdão do Tribunal Constitucional e não o voto de vencido. Três - os procuradores pedem aos juízes da Relação que alterem ilegalmente a acusação.

Que mais há a dizer? Talvez isto: o processo marquês transformou a acusação penal numa obscena máquina de arbítrio e ilegalidades que já não distingue o que pode e não pode fazer. Em que já não há diferença entre decência e abuso. Em que fez substituir a justiça pelo inimigo político e o alvo a abater.

Depois de entregarem o recurso fora de todos os prazos excecionais que haviam sido concedidos, os procuradores parece terem esquecido que a sua principal tarefa constitucional é “defender a legalidade democrática”. É isto que há a dizer.

Ilustração: Google Imagens.

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