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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

FOGO 2020/21 - LUZ, ARDOR E PAIXÃO


Fujo das palavras de circunstância, das "passas" e desejos que nada dizem, porque logo são esquecidos, da superstição de partir uma peça de loiça ou, ainda, daquela ideia de apertar ouro em uma das mãos, subir a um plano superior e acreditar que 2021 trará tudo o que desejamos. Respeito quem tenha essas crenças, mas, de todo, não é por aí que entendo ser possível almejar um certo grau de felicidade.



Aquele fogo a que vamos assistir, para além da luz, da combinação das cores e dos desenhos momentâneos que extasiam, entendo-o, premonitoriamente, como ardor e paixão. Ardor no sentido de uma sensação interior, que parecendo incómoda, tal como uma campainha de alarme, nos impele no sentido de uma luta com resultados a prazo. O que se mistura com a palavra paixão, isto é, com o sentimento de alterarmos, profundamente, os comportamentos, as atitudes com emoção e de forma impetuosa. 

Não é o champanhe que fará alguma coisa mudar nas nossas vidas, ou as promessas de circunstância que a partir de Janeiro, agora sim, tudo será diferente. Esse não é o caminho. Eu nunca o segui porque sempre entendi que mais vale um compromisso que parta das entranhas do que palrar sons que são, isso mesmo, apenas palavras que nascem e morrem naquele instante. 

Ardor e paixão, por nós, pelos outros e pela comunidade, valem mais que os abraços não sentidos, os cumprimentos egoístas e falsos, os laçarotes para a fotografia, os desnudados vestidos de noite ou quando prevalecem gentes de smoking e lapela de cetim mas descalços até ao pescoço; ardor e paixão valem mais que corações empedrenidos, ausência de capacidade de compreender a vida, compreender o sentido da tolerância, o respeito e a bondade. As "passas" nada resolvem por mais que, pacientemente, as mastiguemos! Não resolvem o amor no sentido mais puro, não resolvem a violência subtil, descarada ou criminosa, não resolvem essa capacidade marcadamente humana de estender a mão e pedir desculpa. Não resolvem os dramáticos problemas sociais, a fome e a miséria social. "Passas", sim, de um ano para o outro e nada mais!


O que resolve, no mínimo atenua, é a existência de homens e de mulheres de coração transbordante, desde logo os que exercendo funções políticas, sabem demonstrar sentido de responsabilidade, equilíbrio nas decisões, capacidade humanista, visão de futuro, competência prospectiva, capazes de entenderem que o exercício da política constitui um serviço à comunidade e nunca um emprego para a vida. 

Apesar de todos os constrangimentos e mortes, de todas as aflições porque passam empresários, trabalhadores e famílias em geral, comemoremos, pois, por mais um ano de vida, de vivência e de convivência, um terrível ano para muitos, sublinho, mas brindemos ao novo ano, onde todos possamos, como vulgarmente se diz, arregaçar as mangas e com a luz que guia, com ardor e paixão fintar o invisível e perigoso que anda por aí à solta, fintar com consistência os dramas das nossas vidas, fugir à tentação da dependência escrava e que a SAÚDE não atraiçoe. Só isso, porque o restante, com trabalho e muito, muito empenho, é capaz de vir por acréscimo.

Um Bom Ano para todos.

NOTA
A esta fotografia, da minha autoria, designei-a por "Abraço de Anjo". Uma foto do espectáculo de fim-de-ano de 2018, que já publiquei em um outro momento, mas que tem um significado muito especial (o fogo gerou duas pessoas abraçadas) porque pode exprimir o meu abraço (alto aí que não sou nenhum anjo) a todos os meus Amigos que por aqui passam, esses sim anjos, por fazerem o favor de lerem estes meus mal alinhavados textos.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Geração 15/25 - A nova geração e a política



Revisitei o programa da jornalista Conceição Lino -  A nova geração e a política. Segui-o com serenidade, regressando várias vezes atrás para perceber melhor o alcance de certas declarações. Depois, com alguma paciência, extraí algumas passagens que ficaram a marcar o pensamento dos jovens que foram entrevistados. O que a seguir transcrevo dá que pensar.




"Há um conjunto de pessoas que já estão na política há muitos anos e que efectivamente já não dão resposta àquilo que a população procura (...) as pessoas não acreditam nos políticos e os casos que vemos leva a que fiquem com essa ideia (...) a maior parte dos meus amigos e colegas não têm interesse pela política, nem sabem reconhecer quem são os líderes partidários e quando os ouvem não conseguem perceber a mensagem (...) a última vez que ouvi falar de política foi na escola, no 9º ano, quando tinha História. A partir daí nunca mais tive uma disciplina que me explicasse o que eram partidos de direita, de esquerda e de centro. Foram os meus pais que me ajudaram (...) acho inacreditável que um jovem saia da escola sem capacidade de olhar para o espectro político e perceber o que a esquerda e a direita defendem e diferenciam (...) não sabemos o que a maioria da sociedade portuguesa pensa sobre quem deve liderar, estar no parlamento ou no governo (...) se eu não sei para que serve este voto, então, o que lá vou fazer? Daí o pensamento que são todos iguais (...) chocam-me os jovens não votarem, porque eles são o futuro. É desistir de algo pelo qual ainda não começámos a lutar (...) a descredibilização que temos na classe política é dos políticos (...) todos eles têm telhados de vidro... é esse o grande problema, não avançam, por exemplo, na luta contra a corrupção porque têm esqueletos no armário (...) pessoas que financiam projectos para se beneficiarem a si próprios (...) as pessoas olham para os políticos com ar um pouco suspeito o que tira valor à nossa Democracia (...) há muitos poleiros em Portugal (...) os partidos políticos estão a atrair um tipo de pessoa que muitas vezes não têm grandes aspirações profissionais, viram na política um ganha pão e esse tipo de pessoa chama esse tipo de pessoa (...) a política não é uma profissão, os políticos devem ter uma carreira independente da política (...) a partir do momento que há pessoas que estão há muitos anos num determinado cargo, faz com que confundam os interesses da população com os seus próprios interesses (...) ninguém me explicou na escola o que era a União Europeia (em profundidade) e a importância que tem na nossa vida (...) gostava que a minha geração fosse mais participativa (...) o populismo está a usar muito as redes sociais para difundir o discurso fácil (...) sem uma fundamentação (...) rápidos a passar (...) a defesa da democracia faz-se com cidadãos informados (...) as pessoas moderadas dos vários quadrantes políticos, estão a ser obrigadas por causa dos extremos, a ceder a esses discursos... e não deviam. Alguns democratas vão aceitar fazer acordos com partidos que não são democráticos e isto é perigoso... e é assim que tudo começa (...)"

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Começou a guerra entre a Apple e o Facebook?


Francisco Louçã, 
in Expresso, 
24/12/2020


No seu notável livro sobre “A Era do Capitalismo da Vigilância”, Shoshana Zuboff lembra o Édito de 1513 dos reis de Espanha, que determinava que, ao chegarem, os soldados teriam que ler um “Requerimiento” aos indígenas das Américas, perguntando-lhes se aceitavam submeter-se: “Declaramos ser do conhecimento de todos que Deus é uno e indivisível, há uma só esperança, um só Rei de Castela, dono destas terras: manifestai-vos sem demora, e jurai lealdade ao rei espanhol, como seus vassalos.” O silêncio de quem ignorava a língua destes estranhos soldados vestidos de ferro era tomado como assentimento e autorização para a posse, ou como recusa e sinal para a destruição, o que aliás era o mesmo. Assim, o genocídio reclamou o fundamento jurídico de uma autorização contratual.



Zuboff sugere que as grandes empresas da internet procedem como os conquistadores espanhóis, lendo-nos um “Requerimiento” que é escrito numa língua desconhecida e invoca uma magia inexpugnável. Calando-nos, aceitamos ceder os nossos dados, deixando vigiar a nossa vida e embrulhando-nos em bolhas comunicacionais que constituem colmeias humanas, submetidas às leis da acumulação. Não somos o produto desse comércio, somos os criadores de um excedente informativo que é transformado em lucro por máquinas de manipulação. Se assim for, a guerra entre a Apple e o Facebook é uma salva de canhão contra a tecnologia do controlo.

MARAVILHOSA PANDEMIA

As cinco maiores empresas de comunicação cresceram 46% em 2020. Valem hoje 7,2 biliões de dólares. Essa abundância culmina uma senda de sucesso: a Apple é a maior empresa do mundo e, desde há quatro anos, mais de 90% do aumento da publicidade está nas mãos da Google e do Facebook. Estes gigantes estão a reformatar a sociedade, criando tecnologias de informação baseadas nos dados sobre a nossa vida, acessos, consumos, viagens e conversas. Usam imagens, mails, localizações, registo de compras, para saberem que somos do FC Porto ou admiradores dos Simpsons, e para criarem os gostos segundo padrões instrumentais que vão sendo apurados.

Como na Conquista, isto é facilitado pela concessão a leis permissivas, a cookies autorizados ou a formulários incompreensíveis que subscrevemos com o engodo de os serviços serem gratuitos.

Por isso, a decisão da Apple de permitir a partir de 2021 que os utilizadores bloqueiem o trânsito de dados enfureceu o Facebook que, com a Google, tem constituído o motor desta Conquista. É certo que uns e outros recorrem a práticas semelhantes: o FB comprou o WhatsApp e o Instagram para impedir potenciais concorrentes (e por isso há um processo para separar as empresas); a Apple aplica taxas predatórias a fornecedores de aplicações (e por isso entrou em choque com os criadores do jogo “Fortnite”, a Epic Games). Mas a Apple depende da venda de dispositivos e está mais atrasada nesta indústria de extração de informação, ao passo que os seus rivais precisam dela. Por esta razão, o FB quer impedir que possamos bloquear o seu negócio de pilhagem dos dados: Zuckerberg, não por acaso um aliado de Trump, lançou uma campanha para “dar voz aos pequenos negócios”, na realidade para proteger o seu acesso maximizado à tecnologia de controlo.

MAD

Durante a Guerra Fria, a ameaça de holocausto nuclear era desvalorizada pelo seu potencial MAD (destruição mutuamente assegurada, no acrónimo inglês). Também nesta guerra entre a Apple e o FB existe uma fronteira MAD, pois estas empresas estão ligadas entre si. A Google paga anualmente mais de 10 mil milhões de dólares à Apple para poder operar nos seus telemóveis e computadores; o FB também precisa deles. Ainda não temos um único fornecedor de aparelhos, serviços e redes. Há portanto entre eles um acordo que sobrevive à concorrência, querem a internet como o maior mercado do mundo. Não há inocentes nesta guerra, todas estas empresas querem dominar. Mas há também os índios descontentes.

Por isso, talvez este conflito Apple-FB seja um sinal dos tempos, há uma opinião pública que faz exigências de proteção contra a Conquista. Os índios começaram a traduzir o “Requerimiento” e não gostam do que está escrito.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

O significado da convulsão passista


Por estatuadesal
Francisco Louçã, 
in Expresso Diário, 
22/12/2020


A curiosa coincidência entre a bombástica entrevista de Cavaco Silva ao bem sincronizado Observador e o discurso de Passos Coelho numa homenagem a Alfredo da Silva, o industrial que era um “rufião pitoresco”, no dizer do então embaixador inglês, é reveladora de uma fraqueza e de uma ameaça – e, se a fraqueza foi ignorada pela direita, em contrapartida a ameaça empolgou-a, revelando aliás outra fraqueza mais funda.



Por partes, começo pela primeira fraqueza: é que pouca gente tomou as palavras de Cavaco Silva como mais do que uma recordação longínqua ou um oráculo de convocações misteriosas. O problema é que essas invocações só reverberaram quando foram milimetricamente relançadas dois dias depois pelo ex-primeiro ministro.

Percebe-se a diferença entre dois discursos iguais. Passos Coelho tem uma patine que falta a Cavaco Silva: é que o ex-presidente tenta anunciar que ainda está, mesmo que já não esteja, e o ex-primeiro ministro lembra que esteve, mas quer voltar. Foi essa ameaça que empolgou os saudosistas. Um afinado coro passista veio logo incensar o herói, anunciando que a esquerda fica “em pânico” mal a voz cava do amado líder, a abrir o seu discurso profético, anuncia um “boa noite” cheio de mensagem, ou que os dias de Rui Rio e António Costa estão contados, ou que agora é que o grande entendimento histórico com o Chega se torna possível, ora porque Ventura será recambiado para Loures, ora porque um PSD tonintruante reunificará todas as direitas. Mas tanto entusiasmo é uma fraqueza, porque se baseia numa cândida ilusão, a de que o país aspira por austeridade.

Pior ainda, que seja o negócio da TAP que desencadeia tanto tumulto, já diz muito sobre os terrenos movediços em que se movem estes embaixadores políticos, que prometeram muito a algumas empresas e que agora as querem compensar. O PSD com a TAP, como em 2015 o CDS com a concessão dos transportes suburbanos de Lisboa, agenciam interesses poderosos mas vulneráveis a esta coisa incomodativa que são as eleições e as pressões da opinião pública. Por isso, ao ameaçar voltar mas não voltando, diz que é mais ano, menos ano, o herói da direita saudosa tenta erguer-se a um patamar sebastiânico que dispense a pergunta sobre o que conseguiu em Alcácer Quibir e que diabo pretende fazer depois de calamidade tão nutrida.

Agora, que Passos Coelho “regressará”, é uma evidência escrita nas estrelas. Em política, há duas certezas que se aplicam a (quase) toda a gente: (quase) todos se vingam e (quase) todos querem regressar. E o ex-primeiro ministro, como tantos outros, fervilha com o pressentimento de que o país precisa dele, seja em S.Bento, seja em Belém, e que a sua peregrinação pelo poder é um dever.

Cedo sentiu esse chamamento, quando em menino e moço soube passar da JCP para a JSD e seguir carreira pela juventude partidária, que é, como noutros partidos, um alfobre de grandes valores na aprendizagem do trepadorismo. Assim, chegou onde chegou, não por um caminho de afirmação profissional ou por ideias luminosas, mas pela carreira mais tradicional no partido, e isso ensina o que só se aprende ali: que quem não se vê não existe, quem não está não manda.

A fraqueza mais funda da direita revela-se nesta busca de quimeras salvíficas, quando lhe falta projeto e país. Concluo, portanto, que a ameaça de Passos Coelho é uma excelente notícia: mostra tudo o que a direita quer mas não faz, deseja mas não consegue. E, quando se aproximar desse seu futuro, encontrará demasiado passado. Convenhamos que não é entusiasmante.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Oxalá


Por estatuadesal
Miguel Sousa Tavares, 
in Expresso, 
25/12/2020


1 Tarde e a más horas, nomearam um coordenador de uma task force encarregado de gerir o plano de vacinação nacional contra a covid, Francisco Ramos. Passado mais de um mês, não entendi bem por quem é formada a dita task force, como é que está organizada e coordenada. E também não entendi quais são ao certo os poderes e até as informações ao dispor do coordenador, visto que sobre o plano de vacinação umas vezes o oiço falar a ele, outras à ministra, outras ao primeiro-ministro e outras ainda à agora regressada directora-geral. Esta segunda-feira, foi a vez de ouvirmos o coordenador, numa breve entrevista ao “Público”. Perguntado onde iriam ser administradas as primeiras 7500 doses “simbólicas” de vacinas a profissionais de saúde, já daí a uma semana, respondeu que “a lista ainda não está fechada” (nessa mesma noite a ministra deu a lista). Perguntado a seguir se havia muitos profissionais de saúde que não quereriam vacinar-se, disse que os únicos dados que tinha eram de um hospital que conhecia. Perguntado depois como iriam fazer com o elevado número de pessoas internadas em lares com demência, em termos de consentimento para a vacinação, respondeu textualmente: “Essa é uma questão que ainda terá de ser esclarecida. Acho que devemos solicitar um parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.” E se o parecer não chegar a tempo? Resposta. “Hão-de ser vacinados ou não, mesmo sem parecer. Como é que se fez na gripe?” Enfim e mais importante: confrontado com a afirmação do presidente da Associação de Medicina Geral e Familiar de que não existem só 400 mil pessoas com mais de 50 anos e doenças que os habilitam para a primeira fase de vacinação, mas sim o dobro, respondeu que a DGS está a trabalhar para se fazer uma “caracterização mais fina” (um dos palavrões da moda trazidos pela pandemia). De qualquer maneira, acrescentou o coordenador, “os 400 mil são meramente uma estimativa, não se fez uma identificação prévia”. Meramente uma estimativa: 400 ou 800 mil, meramente um pormenor...



Acrescente-se a estes esclarecedores esclarecimentos de quem já devia saber tudo, que também não se sabe como é que serão contactadas as pessoas sem telemóvel (nas aldeias, segundo o coordenador, será por “recados”), não se sabe como é que os centros de saúde elaborarão o historial clínico do milhão de pessoas que não está lá inscrito ou que não tem médico de família atribuído, para poderem inscrevê-las nas diversas fases de vacinação; que não consta que o pessoal dos centros de saúde esteja a ser treinado para administrar a vacina da Pfizer, cujo manuseamento é diferente de qualquer outra; que nem sequer foi assegurado publicamente, preto no branco, que toda a cadeia de transporte e distribuição (que, por exemplo, a Alemanha ensaia desde Agosto e a Espanha desde Setembro), esteja a postos e pronta a funcionar todos os dias, sem falhas, nem feriados, nem tolerâncias de ponto.

Enfim, juram-nos que está tudo a postos (como estava para a vacina da gripe...), que andrá tutto benne, e o coordenador garante-nos que, se um avião chegar à Portela com vacinas às 11h da manhã, às 15h já estarão a injectá-las. Oxalá desta vez desmintam a nossa fatal tendência para o improviso, para a desorganização e falta de planeamento, para a incompetência e indisciplina. Oxalá não confiem tudo ao nosso tradicional dom para o desenrascanço, para safar à 25ª hora o que não fizemos nas 24 horas anteriores. Oxalá eu esteja mil vezes enganado, quando, a três dias do tiro de partida, pressinto que isto das vacinas tem tudo para correr mal.

2 Formou-se uma comissão, baseada na Faculdade de Ciências, com a missão de tentar descobrir as causas da persistentemente elevada taxa de mortalidade covid entre nós, sem paralelo com os outros indicadores e sem comparação com os outros países — com excepção da Suécia, o país que adoptou como política de combate à pandemia a opção de deixar morrer os velhos. Oxalá, então, descubram que o problema é de ordem científica e não de ordem política.

3 Um dia, quando tudo isto passar — porque há-de passar —, haveremos de ter de contar a indecente história de como as nossas sociedades ricas, cómodas, dotadas de todas as facilidades e confortos, abandonaram os seus velhos para morrerem em lares que se transformaram em pavilhões de morte ou sozinhos em casa, vergados à solidão mais miserável. Teremos de contar como aquela infelicíssima — e quero crer que impensada — declaração de que este era um “vírus bonzinho que só mata velhos” serviu para libertar todos os egoísmos e todas as responsabilidades, desde os mais novos, que se sentiram imunes ao perigo, até a alguns da tão elogiada “linha da frente”, que se sentiram livres e respaldados para decidir, em nome de toda a restante sociedade: em Espanha, o país cujo Governo pior geriu a crise, no auge do aperto, veio de cima uma ordem clara: velhos infectados vindos dos lares, não eram recebidos nos hospitais. Um dia teremos de contar essa triste e feia história. Um dia, quando esta geração, que hoje se sente tão orgulhosamente imune à covid e que continua a enxamear os centros comerciais a comprar as últimas compras de Natal, estiver a reclamar o direito a receber gratuitamente medicamentos que custam milhares de euros para lhes garantir mais um ano de vida.

4 A pandemia tem sido propícia a teorias conspirativas para todos os gostos e nem todas se alimentam da estupidez de rebanho das redes sociais. Algumas são encabeçadas por gente que aproveita o desnorte e a desesperança colectiva para propor supostas explicações e soluções já várias vezes ensaiadas em vão e em diferentes contextos. É o caso da teoria, muito acarinhada por sectores da extrema-esquerda colectivista, de que o perigo da pandemia tem sido exagerado e de que a ordem de batalha, assente na defesa da saúde pública, conduz à ruína da economia e ao consequente agravar das desigualdades sociais. Curiosamente ou não, a extrema-esquerda encontra-se aqui com os argumentos da extrema-direita de Trump e Bolsonaro ou dos negacionistas que proliferam no esgoto das redes. É verdade que a pandemia tem arruinado as economias e que isso agrava, como sempre, as desigualdades sociais. Mas, não falando já do dever elementar dos Estados de defenderem a saúde dos seus cidadãos, a única forma de, a prazo, defender a economia é evitar o caos na saúde pública: uma sociedade doente conduz fatalmente à ruína económica. Por ora e depois, os Estados têm de fazer aquilo que estão a fazer e que irão continuar a fazer: injectar o dinheiro que puderem na economia para salvar famílias, empregos e empresas. Entretanto, o marxismo-leninismo pode esperar.

5 Pinto da Costa anunciou o seu apoio à candidatura de Ana Gomes assim que soube que Ana Gomes declarara o seu apoio à regionalização — sem referendo nem nada, não vá o povo, consultado por capricho democrático, voltar a recusar e humilhar as pretensões dos caciques partidários provinciais e das vestais constitucionalistas. Eis aqui duas razões para eu não votar em Ana Gomes: Pinto da Costa e a regionalização. Ambas trazem assegurada uma mesma certeza: a da ruína certa.

6 Eu sou dos que têm pena de ver a Inglaterra sair da Europa, mesmo não ignorando que, verdadeiramente, ela esteve sempre lá com um pé dentro e outro fora. Mas, simultaneamente, também penso que os cidadãos britânicos saem por razões sem sentido, de puro orgulho e vaidade espúria, numa aliança assente em valores do passado entre o snobismo irritante das classe altas e os leitores do “Sun”. Merkel fez tudo para evitar essa saída e fez tudo para evitar que ela se procedesse desordenada e desagradavelmente, como um divórcio litigioso. Ela travou o instinto de muitos dos 27 de “castigar” a Inglaterra, mostrando a outros, tentados a seguir a mesma via, que não compensa abandonar a UE. Mas é difícil negociar com quem prometeu aos ingleses que sair era facílimo e que, sem as amarras da UE, a Inglaterra iria ser “próspera”, mas que, na hora da verdade, mostrou qual a chave dessa prosperidade: conseguir acesso ao grande mercado europeu como antes, mas sem as regras comuns, como antes. Desgraçadamente para os ingleses, nesta darkest hour, eles não têm à frente dos seus destinos um estadista como Angela Merkel, mas sim um espalha-vento como Boris Johnson. Talvez ainda se consiga um daqueles acordos do último minuto da última hora do último dia. Mas será um acordo colado com cuspe e sujeito a todas as desconfianças e conflitos permanentes no futuro.

Ilustração Hugo Pinto
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A propósito do 5G

 

João Abel de Freitas, 
21 Dezembro 2020

Estamos perante um verdadeiro oligopólio, que esmaga o mercado com um domínio das três operadoras próximo dos 100%, que assim reúne todas as condições de pressão sobre o Regulador e o Governo.



1. As entidades de Regulação da Economia de um país só podem desempenhar uma acção eficaz e determinante nas actividades sob a sua tutela, se ancoradas num Estado forte com cultura sedimentada de regulação e uma definição precisa do seu papel no processo de desenvolvimento económico. Para isso, o Estado tem de ter uma estratégia e uma arquitectura organizativa funcional composta de um conjunto articulado e calibrado de leis, normas e organismos operacionais, entre eles as Agências de Regulação, com as atribuições legais devidas. 

2. Portugal não é um bom exemplo. Não possui tradição na regulação da economia, não é um país tipicamente liberal, nem um país de grande intervenção na economia e quando tenta, não a assume, na prática, com a devida energia e saber. Exemplo recente, o caso TAP. O Governo reverteu a maioria do capital para o Estado mas deixou a gestão nas mãos de privados, ficando sem poder real de intervenção na empresa. E sucederam episódios, contra todo o bom senso, por exemplo, o escândalo da atribuição de “prémios de gestão” a colaboradores numa situação de aperto financeiro da empresa. Isto o que se soube publicamente. Dos outros de fundo, a nível da gestão, apenas se conhecem os péssimos resultados. 

E, de facto, o País não tem um passado de cultura da regulação. Bem pelo contrário. Viveu 40 anos de Estado Novo numa cultura de determinismo, onde tudo na economia era decidido pelo poder executivo, o poder legislativo e o poder judicial meros apêndices de serviço ao regime e, um funcionamento perfeito no apoio privilegiado à meia dúzia dos grandes grupos monopolistas que, a seu belo prazer, dominavam a economia portuguesa. Uma cultura de regulação não tinha aqui espaço. 

O modelo das agências reguladoras introduzido na economia portuguesa nas décadas de 80/90 do século passado, através da União Europeia, aparece então como uma “enxertia”, à partida de pouco sucesso, criando-se antes, pela falta de cultura de regulação, um ambiente propício ao aparecimento de tendências camufladas de captura das entidades reguladoras pelos interesses instalados, entendidos estes em sentido amplo, abrangendo quer os privados quer os dos governos, embora dos estatutos destas entidades conste a independência como o sacrossanto princípio de base da sua actuação. 

O leilão do 5G 

3. Está aberto concurso para o leilão das redes do 5G. 

Cabe à Autoridade Nacional de Comunicações – Anacom a incumbência de regular as Telecomunicações e, nesse contexto, orientar todo o processo do 5G. 

O ramo económico das Telecomunicações em Portugal é constituído no essencial por três grandes empresas: a Nos, a Meo/Altice e a Vodafone. 

A imagem destas empresas junto do público (consumidores) é um pouco negra. Uma grande insatisfação pelos serviços prestados, que se traduzem em mau atendimento, avarias de rede, cortes, insuficiente sinal, impossibilidade de mudar de operadora no período de fidelização mesmo que o serviço fique pendurado durante horas/dias, para não falar da carestia relativa dos preços elevados, em que “cada vez se paga mais por menos”. 

Números que sustentam esta indisposição do cliente face às três operadoras 

Entre Janeiro e Junho de 2020 foram registadas 57,8 mil reclamações contra estas três empresas. Um aumento de 35% face ao período homólogo anterior. 

Sobre os preços o que refiro resulta de um estudo recente da REWHEEL – empresa de consultoria finlandesa, independente, que entre os seus objectivos, compara preços internacionais praticados nas empresas de Telecomunicações. De um leque de 48 países escolhidos para base de comparação, onde se incluíam todos os da União Europeia, no 2º semestre de 2020, vigorava em Portugal o preço mediano mais elevado a nível da U.E por gigabyte da oferta móvel e o 3º mais alto entre os 48 países analisados. E acrescenta ainda, Portugal é o 6º país da U.E e o 8º entre os 48 em que 30 euros compravam menos tráfego de internet móvel. 

Penso que não são necessários mais elementos para sustentar esta opinião pouco risonha da situação de “caos” que reina nas Telecomunicações em Portugal. 

Uma realidade a merecer reflexão e empenhamento profundos de todas as partes intervenientes no sentido de uma normalização equilibrada, mais não seja por estarmos perante uma actividade fundamental na transição digital, uma aposta de futuro numa nova sociedade e de desenvolvimento económico a nível nacional e comunitário. 

4. O leilão para a atribuição de frequências das redes do 5G a decorrer e que se espera definido durante Janeiro tem gerado uma azeda polémica entre a Anacom e as três operadoras – Nos, Altice/Meo e Vodafone. 

A principal razão da polémica centra-se na intenção do Regulador contemplar a atracção de novos operadores ao leilão do 5G, sendo nesta sua decisão secundada pela AdC- Autoridade da Concorrência. 

Registou-se uma oposição em bloco das Três Operadoras a esta ideia consagrada no regulamento do leilão do 5G, entretanto já publicado. As pressões têm sido muitas, incluindo a ameaça de não se apresentarem a concurso, o que não se concretizou, bem como vários processos judiciais contra a Anacom. 

Pelo que li na comunicação social, os argumentos da Entidade Reguladora em contemplar novos entrantes têm por base o reconhecimento da existência de um défice de concorrência no mercado das comunicações em Portugal que prejudica os consumidores portugueses, fazendo-os pagar acima da média europeia. Por tudo quanto se referiu antes, estas afirmações da Entidade Reguladora são irrefutáveis. 

Estamos perante um verdadeiro oligopólio, que esmaga o mercado com um domínio das três operadoras próximo dos 100%, reunindo assim todas as condições de pressão sobre o Regulador e o Governo. 

Do outro lado, precisa-se então de uma Entidade Reguladora que não seja “pressionável” embora aberta a ouvir todos os interesses, como afirmou em Novembro João Cadete de Matos, presidente do Conselho de Administração da Anacom, a propósito da polémica sobre o regulamento do leilão do 5G. 

Alguns membros do poder executivo actual têm mostrado incertezas sobre o regulamento. A este propósito, cita-se o ministro Siza Vieira em declarações ao Parlamento (11-12-2020): “não é positivo que um leilão esteja rodeado de tanta controvérsia. Mas o Governo não tem competência para intervir nesta matéria”. 

Em Portugal, raramente um Regulador é tão contestado pelas empresas reguladas. Quando acontece significa que algo está a “bulir”, o que à partida não se apresenta como mau na perspectiva do consumidor, porque se infere que se anda à procura de maior equilíbrio de interesses operadoras-consumidores. 

Há então que aproveitar o leilão das redes do 5G para proceder a uma melhor restruturação do ramo das telecomunicações, potenciando a promoção da concorrência de forma a se obter melhor qualidade dos serviços e de preço ao cliente e do investimento adequado e necessário ao seu desenvolvimento. 

Pensamos ainda que, apesar dos litígios excessivos havidos, vai forjar-se um novo quadro conciliatório de interesses, num patamar mais avançado e da maior utilidade às telecomunicações nacionais e aos consumidores. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Coerência

 

NOTA
Estas duas intervenções, praticamente com os mesmos membros do governo, têm dois anos. O que mudou?

Segui o último discurso do Senhor Deputado Lopes da Fonseca por ocasião do debate do Orçamento da Região para 2021. Desde logo, uma nota: respeito, sincera e totalmente, as suas posições de agora, quando confrontadas com outras anteriores ao acordo de coligação com o PSD, na sequência das últimas eleições regionais. Mudou, é certo, muito, corrigiu o azimute, é verdade, porque lá diz o povo que "só os burros não mudam de ideias", não é? São tantos os casos que ontem dissertavam a cores negras, algumas vezes cinzentas e que, hoje, "branco mais branco não há". 

Mas o problema não está aí, embora isso gere um gravíssimo desconforto junto dos eleitores. No cerne do problema está a diferença entre ser social-democrata e ser democrata-cristão. De facto, são tão próximos quanto distintos naquilo que é essencial. Portanto, vá lá acreditar em quem? Daí que o problema, pelo menos do meu ponto de vista, não é que seja complexo, colide sim e de que maneira, com uma palavra: COERÊNCIA. 

Porque um partido tem, forçosamente, uma base ideológica distintiva face à qual permite a sua identificação por parte dos eleitores. Daí as diversas formações políticas. Quando a ideologia deixa de existir, quando ela se dissolve no oceano dos interesses, quando os princípios orientadores são deitados no lixo, deduz-se, então, das duas uma: ou as pessoas não estão no lado dos valores que dizem acreditar, ou a questão é mais profunda e prende-se com arranjos partidários e outros, muitos outros, que justificam vender, neste caso, a Democracia-Cristã aos bocados e a pataco, até ao momento de ser completamente engolida pela força maior. 


Aquilo a que assisto não tem nada a ver com as posturas de ilustres figuras públicas de um passado recente que foram, na Região, referências maiores da Democracia-Cristã. Respeitáveis figuras, muitas que tive o prazer de conhecer e, demoradamente, conversar. Que falta fazem à democracia vivida com princípios e de forma honesta. Mas a política chegou a este nível. É a política ziguezagueante, gerida no bas-fond, baseada na facilidade do que hoje é verdade, amanhã, tornar-se em uma grosseira mentira, é a política assente em palavras falsas como se todos fossem mentecaptos. E não é só a Democracia-Cristã na Região. O leitor, pergunto a propósito, entenderá que os socialistas, com 22 Deputados, se tivessem abstido no último Orçamento Regional, depois de dias e dias de tanta crítica e de tanta proposta apresentada e chumbada? Porque não é normal, pergunto, o que estará por detrás disto? Ah e tal, o Covid, o benefício da dúvida! Treta política. Um partido que deseja ser poder tem de apresentar uma alternativa orçamental naquilo que é estruturante. Se não apresenta, então, nada os difere. Abster-se pode significar tão-somente isto: não faríamos melhor!

É nestas circunstâncias que os eleitores vivem. E queixam-se da abstenção? Pois, meus Caros, sem credibilidade, honestidade, referências e posicionamentos exemplares, Bordallo Pinheiro criou a fantástica metáfora do "Zé Povinho".

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

NÃO, NÃO SÃO DESABAFOS!

 

Por
Violante Saramago Matos
Dnotícias - 17.12.2020


I. “Esta semana foi uma boa semana para testarmos a consolidação das obras que efectuámos. Choveu mais do que no dia 20 de Fevereiro e as ribeiras portaram-se muito bem, aguentaram muito bem toda a quantidade de material que desceu e os taludes têm apresentado também uma boa consolidação de material”. Estas são palavras do vice-presidente do governo.



À sua falta de seriedade intelectual juntam-se agora de forma inequívoca, e sem rodeios, a mentira e a má-fé. Ele sabe perfeitamente que o que está a dizer nada tem de verdade. E que nada é comparável. Nem a quantidade que choveu (e felizmente que o DN conseguiu os dados que costumam estar no segredo de certos deuses), nem o tempo durante o qual choveu. Nem nesse dia, nem nos anteriores. Os solos não estavam saturados como estavam no 20 de Fevereiro. Os taludes não escorregaram porque não tinham condições de instabilidade e o peso dos terenos empapados, que é determinante, não existiu. E não venha dizer que tudo resulta do trabalho nas cabeceiras das ribeiras! Acha que qualquer intervenção de limpeza e florestação dá resultados à velocidade com que o senhor preenche as folhas de excel das suas contas e orçamentos? Não, não dá. Os ciclos da Vida e da Natureza não são os seus. E felizmente que não choveu porque, se se repetisse um 2010, ainda hoje chorávamos a desgraça. Em 2010 houve um aluvião no Funchal; agora correu água. Não misture as coisas. 

Fazer jus ao seu nome – estar calado – é pedir muito, eu sei. Como sei que com as suas palavras quis ‘justificar’ o crime ambiental e patrimonial que o seu governo cometeu contra as muralhas das ribeiras. E é aqui que entra a má-fé. Para enganar pessoas sem formação nem conhecimento. Para ver se nos esquecemos e se acreditamos nas suas aldrabices. Pedro Calado não merece o lugar que ocupa. Falta-lhe categoria, honestidade, ética. E até lhe falta empatia. É sobranceiro e arrogante! E muito mal-criado! Se chegou onde está, agradeça às sempre-eternas linhas cruzadas. Em microbiologia chamamos a isto contaminação cruzada. É isso: Calado é uma contaminação cruzada! 

2. Marta Temido emocionou-se num destes dias e lágrimas desceram dos olhos. Fez um esforço acrescido e aguentou-se. E continuou! Não tardou muito que os abutres a trucidassem. Ou melhor, a tentassem trucidar. 

Eu, que sou bióloga, e que tenho diversos médicos amigos, digo com toda a franqueza: é inimaginável para todos! É inimaginável o que é ter que lutar contra um inimigo novo, completamente desconhecido, que não vemos, com características verdadeiramente filhas da mãe, com efeitos que ainda hoje não conhecemos totalmente, que tem uma extraordinária capacidade de mutação, que tem um extraordinário poder infeccioso, que atinge todo o mundo e põe milhares de cientistas num frenético trabalho de investigação. E ainda por cima, com aparentes certezas de hoje dramaticamente desmentidas amanhã, com a ciência a apontar, hoje, um caminho que leva afinal a uma estrada sem saída, e há que fazer marcha atrás às escuras – e com tudo isto, e apesar de tudo isto, dar a cara todos os dias há 9 meses! 

A quantidade de cientistas de sofá que este país tem! A quantidade de gente que fala do que 'acham'! Já que ‘sabem’ tudo, não percam tempo a crucificar a ministra; vão trabalhar, se algum laboratório de investigação vos aceitar… 

Sabem - só um pequenino exemplo - que nunca foi conseguida uma vacina para outros coronavirus? Isto dá uma ideia da complexidade, não? Caramba!!! 

E já agora? Todos nós recusámos ir àquela festa de amigos ‘sem problemas’, seguros, onde dispensámos a máscara, mas não o abraço, o beijinho, a partilha do copo de cerveja? 

Todos nós impedimos os nossos filhos de ir para haloweens (ok, não se pode mas é tudo gente porreira)… e depois, ops, de repente e do nada, alguém testa positivo? 

Todos cumprimos escrupulosamente as regras de uso da máscara ou continuamos a usá-la no queixo, no bolso, ou embrulhada com a chave do carro? 

Todos asseguramos o afastamento pessoal, a lavagem e desinfecção das mãos? 

Sim, estou a defender a Ministra da Saúde, sim! E a agradecer-lhe! 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

De George Michael à tia do rei de Espanha, não há espaço para Ihor na consternação do Presidente


Por
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário,
15/12/2020



Ninguém escapa às condolências presidenciais. Até houve palavras oficiais para George Michael. Alguma coisa impediu que a consternação chegasse a Ihor, que morreu nas instalações do Estado, às mãos de agentes do Estado, de que Marcelo é a primeira figura. Diz que não fala sobre processos criminais em curso. Falou de Pedrógão e de Borba. Há um mês, a diretora do SEF assumiu as responsabilidades do Estado. Só não houve assunção de responsabilidades políticas. São essas que se espera que o Presidente exija. O que se lhe exige é clareza, não é conspiração.



Sobre um ministro que não pode continuar a sê-lo, mesmo que tenha a proteção e amizade do primeiro-ministro, já escrevi tudo o que tinha para escrever. Sobre os jogos de salão do Presidente da República, também. O que se lhe exige é clareza, não é conspiração. E nunca a teve, em todo este processo. No momento em que o país finalmente se agitou com tudo isto, o Presidente da República veio finalmente dizer qualquer coisa: “É importante verificar se há ou não um pecado mortal do sistema. Se há, então o SEF não serve, e tem de se avançar para uma realidade completamente diferente.”

O Presidente sabe que há um pecado original. Não é preciso verificar, porque foi verificado. Está escrito em relatórios, desde 2018. Foi repetido várias vezes pela Provedora de Justiça. E, sendo tudo isto público, o Presidente não abriu a boca sobre o caso durante longos nove meses, apesar de não haver nada que não comente. Até o homem que salvou outro no rio Tejo lhe mereceu comentário público. Tivesse sido o SEF a atirá-lo ao rio e teria de ficar calado.

Correndo a página da Presidência da República, encontramos inúmeras notas de pesar. Pelo falecimento de bispos e arcebispos portugueses e dos PALOP. Por militares de alta patente. Por figuras conhecidas ou mais obscuras da cultura. Por desportistas, empresários, gestores, ativistas, académicos, médicos. Por deputados, ex-deputados, autarcas, ex-autarcas. Por embaixadores portugueses e embaixadores estrangeiros em Portugal. Por figuras políticas do passado, com a generosidade de tratar Arnaldo Matos como “defensor ardente da democracia”. Por figuras internacionais, sejam antigos reis, tias de reis, maridos de rainhas, ex-presidentes, primeiras-damas, ex-primeiras-damas, antigos chefes de Estado de democracias e ditaduras. Tudo normal.

Nas notas do Presidente também aparecem falecimentos de anónimos ao serviço do país, sejam militares, polícias ou médicos no combate à covid. Como é evidente. Aparecem portugueses que morreram no estrangeiro, como as vítimas em grandes acidentes de viação em Andorra ou em França, um trabalhador raptado e assassinado na Nigéria, um sem-abrigo encontrado no metro de Londres. E aparecem embaixadores estrangeiros que morrem em Portugal. Tudo certo. O Presidente até tem palavras oficiais para George Michael, David Bowie ou Prince. Não se pode dizer que este seja parco em notas de pesar. Ninguém escapa às condolências presidenciais.

Alguma coisa impediu que as palavras que tem para portugueses anónimos que morrem no estrangeiro, vítimas do crime, do acidente ou da incúria; que as palavras que tem para estrangeiros que morrem em Portugal por razões fortuitas e estranhas ao Estado português; que as palavras que até tem para artistas sem qualquer relação com Portugal tenham chegado à família de Ihor Homenyuk. E, no entanto, Ihor não morreu vítima de um acidente de viação, numa qualquer estrada portuguesa. Morreu nas instalações do Estado, às mãos de agentes do Estado, de que Marcelo Rebelo de Sousa é a primeira figura. Do ponto de vista simbólico, é dele que deve vir a mensagem mais clara do Estado e do país. Se algumas das palavras de consternação que li não tivessem saído, seria uma falha no protocolo. Deselegante. Politicamente inconveniente. Falha de cultura geral ou de aprumo de Estado. Ou, em alguns casos que aqui assinalei, indiferente. O silêncio sobre Ihor é outra coisa. É cumplicidade política.

Numa entrevista à SIC (onde quase ensaiou o mesmo discurso do ministro, acusando os jornalistas de não lhe terem feito perguntas sobre o tema durante meses), Marcelo Rebelo de Sousa justificou o seu longo silêncio por não falar sobre processos criminais a correr. Além de nenhuma condolência interferir numa investigação criminal, não é verdade. Falou, sem qualquer problema e inúmeras vezes, com investigações, processos e exigências de indemnização em curso, sobre Pedrógão e sobre Borba.

Há um mês, a diretora do SEF assumiu as responsabilidades objetivas do Estado quando disse: “não tenho grandes dúvidas sobre uma situação de tortura evidente." Só não houve assunção de responsabilidades políticas. E são essas que se espera que o Presidente exija. Em vez de o fazer, recebeu o diretor nacional da PSP para ser ele, e não o ministro que já não o devia ser, a dizer o que deve acontecer com o SEF, fazendo as vezes de Eduardo Cabrita em Belém.

domingo, 13 de dezembro de 2020

A tentativa de golpe de Estado de Donald Trump e do Partido Republicano


Por estatuadesal
José Pacheco Pereira, 
in Público, 
11/12/2020



 

Escrevi exaustivamente sobre Trump nestes últimos quatro anos e houve quem achasse que exagerava. Escrevi que o que de mais importante em política se passava vinha dos EUA, e houve quem achasse que exagerava. Escrevi que havia “novidade”, ou seja, criação, como criação nas artes, nas letras, no que Trump estava a fazer e que este era uma personagem carismática no verdadeiro sentido da palavra, que é tão abastardada no seu uso corrente, e houve quem achasse que era um disparate. Escrevi que o Partido Republicano de Trump se tinha tornado num estendal repugnante de sicofantas pelas benesses do poder e de covardes, vergando-se por interesse a um culto de personalidade maléfico sem princípios, e não houve quem achasse coisa nenhuma porque Trump ainda suscitava atenção, mas os republicanos eram uma coisa americana. Escrevi que Trump não era democrata, era autocrático e autoritário, desprezava a lei e a Constituição, era capaz de tudo para se servir a si próprio, tendo cometido ilegalidades a seguir a ilegalidades. Escrevi que havia claros sinais de perturbação mental na personalidade de Trump, um narcisista mentiroso patológico (como disse numa intervenção certeira Ted Cruz antes da sua epifania pró-Trump...), e houve quem achasse que era apenas “política” de novo tipo e uma excepcional demonstração de inteligência de um génio da economia e da negociação. Escrevi que a melhor definição de Trump dada por um nova-iorquino sobre outro nova-iorquino era que ele era um “con man”, um trapaceiro, um vigarista em tudo nos negócios e na política. Escrevi que o “trumpismo” estava para ficar mesmo que Biden ganhasse as eleições. Escrevi que Trump não iria sair a bem e que iria tentar uma espécie qualquer de golpe para se manter no poder e de novo passei por exagerado, mas neste último caso já havia bastantes “trumpistas” em Portugal, pelo que na cloaca das redes sociais houve quem jurasse que não, sairia com elegância, etc., etc.. Na verdade, por muito que dissesse, estava bastante abaixo do que aconteceu e do que acontece.

Sim, Trump teve 74 milhões de votos, muito voto, mas Biden teve 81 milhões, muito mais votos. O que há de significativo nessa votação é que os 74 milhões eram só para Trump e os 81 milhões eram contra Trump e não por Joe Biden. Nas eleições simultâneas para o Congresso e para o Senado, os democratas tiveram um mau resultado e os republicanos ganharam lugares no Congresso e vão quase de certeza manter o Senado. As explicações que Biden e Pelosi dão para os maus resultados é atribuírem-nos à esquerda do partido e a palavras de ordem como “defund the police”. Talvez seja, em parte, verdade, mas, como muitas vezes acontece, os efeitos perversos e os benéficos vêm em conjunto e, como Biden não entusiasma ninguém, o enorme entusiasmo anti-Trump nos mais jovens, nos novos eleitores, nas comunidades negras, veio dos mesmos sectores que encheram as ruas à volta do Black Lives Matter, e que eram pouco amigos da polícia e com boas razões. E assim chegámos às eleições que Biden ganhou por muitos, no voto popular e nos votos do colégio eleitoral.

Trump sabia que ia perder no fundo da sua mente complicada e simples e começou a preparar o cenário para se autojustificar e para não ter que aceitar os resultados, fazendo uma campanha sistemática contra o voto por correspondência e com a sua “lata” habitual, com excepção na Florida, onde ele era sempre fidedigno. Em tempos de pandemia particularmente mortífera nos EUA pela irresponsabilidade criminosa de Trump, os anti-Trump que usam mais máscara e que seguem mais as regras de distanciação usaram essa faculdade, aliás habitual em vários Estados, mas agora mais generalizada.

Trump tentou sabotar os correios colocando lá um servo que começou a desmantelar as máquinas de distribuição e a dificultar a chegada a tempo dos votos. Trump começou a dizer que todos os votos que não chegassem no dia das eleições deveriam ser deitados fora, esquecendo-se de que eles tinham sido enviados antes das eleições e eram particularmente legítimos. Depois, ele e Giuliani e uma série de personagens inomináveis vinham com nova teoria todos os dias: que as máquinas automáticas de contagem dos votos eram resultado da mão póstuma de Chávez e que os votos eram contados fora dos EUA, que havia malas de votos descartados (num vídeo falso) e testemunhos de que 5, 10, 20 votos tinham entrado erradamente, etc., etc.. Alguns desses “testemunhos” eram tão ridículos que se tornaram virais pelo gozo.

E depois fez aquilo que durante toda a vida fez como empreiteiro: litigar, litigar, litigar. Até aos dias de hoje, ganhou uma acção por coisas menores e perdeu 60, algumas julgadas por juízes por si nomeados. A última é um remake da Guerra da Secessão, colocando estados contra estados e praticamente suplicando o Tribunal Constitucional para a aceitar, numa violação da teoria dos “state rights” de que até agora os republicanos eram firmes partidários. E depois continuar a radicalizar com insultos e ameaças a todos, mesmo republicanos, que não aceitavam que ele tinha “ganho as eleições e por muitos”. A sua “base” traduziu e bem as suas palavras ameaçando de morte os recalcitrantes que têm que andar com protecção policial. Já houve mortos, vai haver mais. Trump quer uma guerra civil e faz tudo para a ter.

Se o que se passa hoje nos EUA fosse no Burkina Faso, já a ONU, as organizações de defesa da democracia e dos direitos humanos, o Conselho da Europa estariam a aprovar resoluções denunciando a tentativa de golpe de Estado do candidato perdedor para sabotar os resultados eleitorais. A questão é que, mesmo que Trump tenha que sair a mal, não vai acabar.

Biden não vai conseguir governar sem maioria no Senado e Trump, que já está a abusar do seu poder para tomar decisões para comprometer o seu sucessor, vai continuar a sabotar a democracia deslegitimando o seu sucessor. Quem percebe bem isto não são os democratas, mas os republicanos anti-Trump do Lincoln Project. Vai ser preciso mão de ferro. Não sei se haverá.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A diretora do SEF não se demitiu, caiu. O ministro não se mantém, segura-se


Por estatuadesal
Daniel Oliveira, 
in Expresso Diário, 
10/12/2020


271 dias depois da morte de Ihor Homenyuk, a diretora do SEF demitiu-se. Se não o fizesse teria de ser o ministro a fazê-lo. E ainda tem. O que se passa no SEF não é só um caso de polícia, é um caso de política. A revolta com o bárbaro assassinato de Ihor tem de servir para mudar a forma como o Estado lida com os que nos procuram para cá viver e trabalhar. Estes nove meses de espera, oito em silêncio e um em resistência passiva à assunção de responsabilidades, dizem-nos que Eduardo Cabrita não tem capacidade para liderar essa mudança. O seu receio em mexer um dedo que o ponha em perigo permitiu que se reforçasse um Estado arbitrário dentro do Estado. No SEF e não só. Que seja nomeado alguém capaz de exercer a tutela política das forças de segurança.



Se acreditasse que há ali uma réstia de decência, diria que a diretora do SEF se demitiu porque, desde que tomou posse, não deu relevância ao relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção contra a Tortura e aos avisos da Provedora da Justiça sobre o estranho estatuto os centros de internamento temporário e as condições favoráveis (e as suspeitas) para que ali acontecessem todos os abusos. Nem as sucessivas notícias que davam Portugal como o único de 17 países que mantinha imigrantes detidos por mais de 48 horas. A diretora do SEF conhecia a casa e os problemas. Não fez nada.

Se acreditasse que alguém assumiu alguma coisa, diria que a diretora do SEF se demitiu porque, depois da sessão de tortura, que culminou na morte do ucraniano, ficou 17 dias sem fazer rigorosamente nada, talvez esperando que a poeira assentasse, o que parece ser a sua especialidade. O inquérito interno só foi aberto, ao contrário do que garantiu Eduardo Cabrita no Parlamento, depois da notícia da detenção pela PJ de três inspetores do SEF.

Se achasse que percebeu o que é indigno em tudo isto, diria que a diretora do SEF se demitiu porque percebeu que o seu silêncio, durante oito meses, sem achar que o país merecia um esclarecimento, foi um insulto à memória de Ihor Homenyuk, à sua família (que nunca contactou) e aos direitos humanos e valores constitucionais.


Mas como tudo isto já eram factos quando finalmente decidiu falar, há cerca de um mês, é evidente que não foi por nada disto que se demitiu. Demitiu-se porque a pressão pública foi muita. Se Cristina Gatões não se demitisse teria de ser o ministro a fazê-lo. E ainda tem. Quem segurou a diretora do SEF durante todo este tempo foi o ministro da Administração Interna. Quem não olhou para os relatórios para saber que alguma coisa tinha urgentemente de ser feita, ainda antes da tragédia, foi o ministro da Administração Interna. Quem permitiu este inaceitável silêncio durante oito meses foi o ministro da Administração Interna. A responsabilidade política, que não é coisa meramente simbólica, é de Eduardo Cabrita.

Como escrevi ontem, a demissão da diretora do SEF e do ministro não é imperativa por isto ter acontecido nos seus turnos. É imperativa por eles terem responsabilidades no que sucedeu, por omissão, e não terem tirado consequências da gravidade do que aconteceu, depois. E porque a sua permanência transmite uma mensagem aos serviços e à sociedade: que um atentado aos direitos humanos destas dimensões não tem consequências para os que, no topo da hierarquia, o têm de evitar. O que se passa no SEF não é só um caso de polícia, é um caso de política. E a demissão da diretora do SEF, com a permanência de Eduardo Cabrita, esconde o falhanço da política.

Ontem, anunciou-se uma dança de cadeiras. Se isto não for uma situação transitória, demonstra-se que esta demissão foi uma farsa, uma mera reação à pressão mediática. Para o lugar de Gatões vai o seu adjunto, que foi chefe de gabinete de Eduardo Cabrita. José Luís Barão não tem qualquer experiência em nada que se relacione com esta área e tem um currículo mais vasto no aparelho do PS e da JS. E o novo diretor adjunto é o homem que foi nomeado diretor de Fronteiras de Lisboa para substituir o diretor envolvido na ocultação do crime. Sangue novo, só se for o que vem da “jota”.

Depois, tentando que pareça que mexe o que esteve sempre parado, o Governo foi repescar ao baú o que tinha no programa de governo e prometeu uma reestruturação do SEF lá para o verão do ano que vem. A proposta é separar a parte burocrática da policial. Parece evidente – o processo de legalização de imigrantes não é assunto de polícia. Mas o momento e a forma como aparece apenas revelam a vontade que se deixe de falar do assunto e, acima de tudo, do ministro.

Só que ao ouvir ontem, na SIC, a viúva de Ihor, que teve de pagar do seu bolso a transladação do cadáver e é tomada pela revolta quando ouve a palavra “Portugal" - julgava que deste lado da Europa se respeitavam os direitos humanos -, sente-se uma vergonha sem fim. Pelo crime. Por nem um estuporado representante deste país lhe ter telefonado. Por o Presidente da República, que sobre tudo bota discurso e que todas as mortes lamenta, não dizer uma palavra. Por tudo, tudo, tudo. E torna-se intolerável ver este ministro que nada fez, que nada vai fazer, sentado no mesmo lugar.


O importante é que a revolta com o bárbaro assassinato de Ihor Homenyuk sirva para mudar a forma como o Estado lida com os que nos procuram para cá viver e trabalhar. O problema é que só muda quem tem autoridade para liderar a mudança. E estes agonizantes nove meses de espera, oito em silêncio e um em resistência passiva à assunção de quaisquer responsabilidades, dizem-nos que Eduardo Cabrita não tem capacidades e condições políticas para liderar a mudança que é precisa. Porque não lidera coisa alguma, é liderado pelos acontecimentos. Porque remenda, não resolve. Porque não age, reage. Porque a sua cultura política, a sua passividade e receio em mexer um dedo que o ponha em perigo, foi o que permitiu que se reforçasse um Estado arbitrário dentro do Estado. No SEF e não só. É urgente uma mudança no SEF. Que seja nomeado um ministro ou uma ministra capaz de exercer a tutela política das forças de segurança.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Presidenciais 2021 - Votarei na Diplomata Ana Gomes

 

Nas eleições presidenciais de 2015, votei no Professor Doutor Sampaio da Nóvoa, personalidade que viria a perder com 22,88%, isto é, menos de metade dos votos do Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa (52%). Votei respeitando convicções gerais e pelo seu passado no sensível e importante sector da Educação. Não votei por qualquer proximidade ideológica. Votei na pessoa a partir do que dele li ao longo dos anos.



Ontem, com a apresentação da candidatura do actual Presidente da República, penso que terá ficado definido o quadro principal de candidatos a um próximo mandato. Há muito que venho a analisar as figuras que decidiram se apresentar ao sufrágio de Janeiro próximo. 

Desde logo assumo que, do actual Presidente da República, não são muitos os reparos que lhe faço, embora mantenha reticências sobre várias matérias. Foi um Presidente equilibrado na comunicação e nas decisões, porém, politicamente, muito "hiperactivo" para o meu gosto. Prefiro uma pessoa próxima das pessoas, como ele foi, mas, simultaneamente, distante, garantindo a não banalização do cargo nem a confusão entre orgãos de soberania. De qualquer forma, foi uma figura que fez esquecer, rapidamente, aqueloutra que, durante dez anos, gerou arrepios, para além de outros dez como Primeiro-Ministro. 

Ora bem, mas Marcelo se ontem não foi o meu candidato, hoje, decididamente, não será o meu. O quadro político que se apresenta nos próximos anos é muito complexo e tudo leva a crer que a presente coabitação tendencialmente azedará. Dependerá de vários factores. De resto, guio-me por princípios que intui ao longo da vida e por valores que defini como fundamentais. Na política, também. Respeito os princípios e valores de todos os outros meus concidadãos, o que significa, no plano democrático, a reciprocidade, porque a Democracia constrói-se na diferença e no respeito.

Isto para dizer que aprecio a postura da Senhora Diplomata Ana Gomes. Uma Mulher que não procura o politicamente correcto, antes enfrenta as situações com honestidade: "(...) Quando tenho elementos não só falo deles como os carreio para a justiça", disse. Podem, muitos, nas teias partidárias, não gostar dos seus posicionamentos sobre diversas matérias, mas ela é assim, estuda e toca nas feridas. É frontal. Por isso gosto. Não é isenta de erros (?), obviamente que sim, mas quem  não erra, pergunto? Se é consensual, não é, simplesmente porque não entra no jogo político que obriga a se vergar. Do partido onde é militante, assumiu: "alguns socialistas até é melhor que não estejam comigo". É, portanto, segundo o meu ponto de vista uma Mulher que faz jus à imagem da liberdade, da democracia e do diálogo com todos: "como diplomata estou preparada para falar com o diabo (...)", sublinhou, recentemente. A este propósito, tenho presente a sua inteligente negociação aquando de Timor-Leste. Os portugueses lembram-se, certamente. 

Entregarei o meu voto a Ana Gomes, por aquilo que é e pela sua experiência internacional, como Diplomada e ex-Deputada no Parlamento Europeu (15 anos). Mas que fique claro, não tenho grande esperança que a sua candidatura imponha ao actual presidente uma segunda volta. Mas acredito que, nas presidenciais de 2026, se ela assim entender, poderá vir a ser a primeira mulher Presidente da República.

Ilustração: Google Imagens.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Estaremos em Bloco Central?

 

João Abel de Freitas,
07 Dezembro 2020


Uma coisa é a política de influência e a concertação de acção, outra bem diferente é a intromissão e a publicitação de tudo para colher os dividendos e a apropriação da parte boa, como tem feito o Presidente. 


Temos Orçamento para 2021. Um bom acontecimento, embora com votos positivos apenas do partido no Governo. A viabilização ocorreu na base da abstenção, com votos contra de toda a direita… mais o Bloco de Esquerda. Apesar deste esfrangalhamento das esquerdas, o que indicia sinais preocupantes no futuro não a muito longo prazo, é positivo o País estar dotado de Orçamento para 2021.

Permite ao Governo de António Costa as condições para poder continuar no ataque à pandemia, esperando todos nós por medidas mais robustas e consequentes – quer em termos de Covid-19, quer da economia – e, em Janeiro, assumir a Presidência da União Europeia numa posição de conforto e fazendo votos de excelente gestão, apesar das muitas nuvens que pairam sobre a União vindas da Polónia e Hungria, que teimam em fazer chantagem com os fundos europeus. 

Seria muito complexo se o Governo tivesse de atacar estas duas frentes sem orçamento, com um País a viver a duodécimos. E para Portugal um grande desprestígio. Há factos, porém, que não deviam acontecer. Votar por despeito nunca foi uma boa norma e a história traz-nos à memória exemplos contraproducentes em Portugal e noutros países. 

Mas regressando ao título deste escrito Por Bloco Central não se entende neste contexto governar em entendimento com o PSD de Rui Rio. Basta rever uns segundos dos discursos de encerramento da líder parlamentar da bancada do PS, Ana Catarina Mendes e do ministro das Finanças, João Leão, para ver que por aqui não anda casamento, nem sequer namoro, pelo menos para já. As águas estão muito turvas e azedas. 

O que, numa leitura do ambiente político, parece esvoaçar é uma espécie de “enamoramento” Governo/PR, a ordem é arbitrária, um bloco central sui generis, pois não se conhecem “as tropas organizadas” do parceiro PR nem as suas linhas futuras. Poderemos falar de dúbio enamoramento com desfechos incertos e comportamentos errantes. 

Apercebemo-nos, porém, em vários casos, da existência de “sapos” difíceis de engolir pelo lado do Governo ou, pelo menos, de alguns dos seus membros. 

Isto de forma alguma significa que não se tenha algum apreço pelo trabalho desenvolvido pelo Presidente da República, sobretudo, se imaginarmos o que teria sido este relacionamento no contexto da presidência anterior. 

Sei que esta afirmação se encaixa no politicamente correcto. Toda a gente o diz, muitos dirigentes políticos reiteram esse apreço. Engraçado, são os políticos de direita que menos o dizem e, pelo contrário, insinuam que o PR tem feito muitos “fretes” a António Costa. Para alguns, Marcelo já deveria ter feito cair o Governo. 

Era a este ponto que queria chegar 

E, então, questiono-me: há cooperação ou intromissão e aproveitamento das situações? Vamos a factos públicos recentes. A alguns quase chamaria “facadas” no enamoramento e a outros apropriação do trabalho do Governo. Ao ler a entrevista de Marta Temido de 26/11/2020 ao “Público”, numa passagem em que está a ser abordada a temática da falta de vacinas da gripe, a ministra dá algumas informações muito pertinentes onde compara a quantidade comprada por países, com a quantidade que Portugal adquiriu. E, assim, fica a saber-se que a Suécia e a República Checa, com dimensão populacional próxima de Portugal, adquiriram respectivamente 1,4 milhões e 800 mil vacinas, enquanto o SNS adquiriu dois milhões e setenta mil e o sector das farmácias mais 500 mil. 

Ou seja, Portugal adquiriu ao todo dois milhões, quinhentas e setenta mil vacinas da gripe, já vacinou cerca de 1,5 milhões de pessoas – diz a Ministra – tem em stock 300 mil doses e conta receber 200 mil ainda nesta semana (semana da entrevista, i.e. última de Novembro). Completa a ministra, houve este ano uma procura não usual de vacinas em Portugal. 

Perante isto, pergunta concreta da jornalista: [o Presidente da República disse a seguinte frase: “a senhora ministra (entenda-se Marta Temido) acaba de me confirmar que até à primeira semana de Dezembro todos os que queiram vacinar-se irão vacinar-se”]. Marta Temido responde: “Todos os que queiram com critérios”. Interessante a precisão na resposta e prossegue a jornalista. “Não acha que houve um erro de comunicação aqui”? “As vacinas, os medicamentos, os actos de saúde não são actos de consumo” responde a Ministra. 

Insiste a jornalista: “mas houve esta afirmação e agora há muitas pessoas que dizem, tenho 70 anos e não consigo vacinar-me, o meu filho tem asma e não tem vacina”. Marta Temido: “Vale a pena dizer que temos vacinas a serem distribuídas neste momento e portanto há pessoas que até ao fim do período poderão fazer a sua vacina…”. 

Uma outra questão surgida poucos dias antes. O chamamento a Belém de duas ministras (Marta Temido e Francisca van Dunen) por causa das infecções de Covid-19 nas cadeias. Não entendi a razão do chamamento. Foi para o Presidente se informar ou puxar as orelhas às ministras…? Francamente todas as semanas há reunião com o primeiro-ministro e certamente uma oportunidade de debater o assunto. 

Este procedimento deu aso a reacções de certa imprensa e dirigentes políticos. O Presidente Marcelo está a fazer o que o PM devia fazer. É de perguntar o que fez então o PR que António Costa não estava a fazer? Belém divulga o facto para a imprensa com que intenção? É evidente, com tanta publicidade estas reacções são de esperar. 

Outro facto. Assistiu-se através da comunicação social ao PR a contactar nos dias 23 e 24 de Novembro os produtores das vacinas Covid-19. Para quê tamanha encenação e publicitação? É sabido que a Comissão Europeia encomendou vacinas e as colocará à disposição de cada país segundo o critério da população e em local/locais designados pelos governos. Mas não contente com isso também se soube que Belém contactou o Rei de Espanha a este propósito. Apetece perguntar: a que propósito?! E de tudo isto os jornais foram-se enchendo. 

Parecem-me contactos a mais e alguns pouco ajustados e só invoco casos recentes. Não vejo qual é a mais-valia para a solução dos graves problemas de pandemia e económicos que o país atravessa. Muita desta sofreguidão do Presidente em aparecer na primeira fila perturba o ambiente e cria ruído desnecessário. 

Muitos comentadores dizem ah! Marcelo Rebelo de Sousa é mesmo assim, sempre se intrometeu em demasia em áreas que não são da sua alçada. Estes factos revelam isso, condicionam a gestão do Governo e de algum modo desprestigiam a sua acção. 

Em problemas fundamentais impede mesmo a iniciativa governamental. Temos o caso da regionalização do território que o Governo admitiu não avançar porque o Senhor Presidente veta. 

No meio disto tudo, quero deixar expresso que defendo a cooperação entre os órgãos de soberania no sentido de fazer avançar o País, mas com o devido respeito das áreas de competência de cada um. Uma coisa é a política de influência e a concertação de acção, outra bem diferente é a intromissão e a publicitação de tudo para colher os dividendos e a apropriação da parte boa. 

Este “bloco central”, em que de algum modo o País se move, distorce francamente a realidade social e política, gera instabilidade, aprofunda as fragilidades existentes e tende a inclinar os seus destinos em sentido divergente do rumo actual. 

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

sábado, 5 de dezembro de 2020

A vacina não é de esquerda nem de direita


Por estatuadesal
Clara Ferreira Alves, 
in Expresso, 
04/12/2020


Eram 8 milhões. Eram 16 milhões. Eram 22 milhões. Todos os dias, os números de vacinas que Portugal vai comprar para vacinar o povo português muda de figura. E mesmo uma coisa tão simples como começar por dizer, vamos vacinar toda a população que queira ser vacinada e sensibilizar para a necessidade da vacina, se esboroou com as revelações de que os idosos de mais de 75 anos estavam “excluídos”. Li isto, juro que li, e depois li que os de mais de 80 anos também, e que a razão era porque não se conheciam os efeitos da vacina nestes grupos etários. Imagine-se uma pessoa desta idade ao ler isto. Que foi “excluída”. Fica decerto com pouca vontade de votar num governo do Partido Socialista. A seguir, vários dos participantes na comissão da ministra da Saúde para a administração das vacinas, assim que saíram da sala vieram contar aos jornalistas a sua versão da reunião. Houve mesmo um indignado que parece ter oferecido a sua vacina a um “idoso”, rasgando as vestes. Se for verdade, o idiota deveria ser excluído da dita comissão. Não é um adulto.



A comissão integra gente da epidemiologia e da virologia, da ciência, da DGS e do Infarmed. E os militares, para a logística, embora os militares chegassem tarde a este campeonato, como sabemos. Estranhamente, a comissão não integra gente dos transportes, nem especialistas da rede de frio. Estranhamente, a TAP “disponibilizou-se” para o transporte de vacinas. Li isto, juro que li isto. A TAP deveria ter lugar cativo nesta comissão, porque se alguma razão haveria para a nacionalização foi o interesse nacional de transportar o maior número de vacinas nos aviões. E, para esse transporte, os aviões têm de ser adaptados para as câmaras de frio, sobretudo as de gelo seco da vacina da Pfizer. A Lufthansa já começou a adaptar os aviões em tempo real. Não se “disponibilizou”.

Os peritos ainda estão a estudar a eficácia das vacinas? Não sabemos da sua eficácia nos “idosos”, sabemos que não temos modo de aferir, agora, a eficácia nos velhos. Não são certamente os peritos portugueses que vão fazer essa certificação. A vacina nunca foi dada em larga escala a gente das idades tardias. Nunca foi dada em larga escala, ponto final. Nunca foi dada em larga escala a doentes crónicos ou com patologias graves. Outros fatores entram em linha de conta, o estado de saúde do vacinado, a sua volição, a sua necessidade putativa, a volição da família no caso de incapacidade, a opinião dos médicos, etc., etc. Arranjar um critério único para estas vacinações é, por agora, impossível. Há que usar o senso comum e a melhor informação.

O que importa reter é que a sorte do Governo está ligada a esta operação nunca tentada, e que a escala e a incerteza obrigam a um nível de profissionalismo e competência muito elevados. A experiência da vacinação da gripe e outros dislates não conduzem à segurança da população. O governo tem falhado no método e na mensagem, na operacionalização dos desafios e na execução das decisões. Uma acumulação de erros na fase duríssima que se segue retirará o PS do poder. É por isso que o primeiro-ministro terá de fazer a boa política supervisionar os técnicos, para evitar o desastre desta primeira reunião e a asinina mensagem sobre a “exclusão dos idosos”.

Em Portugal, a proximidade entre os media e o poder político pode ser uma receita para maiores desastres e sucessivas fugas de informações erradas ou distorcidas. Há que evitar anestesiar a população com rumores e manchetes sensacionalistas e falsas. Para isso, o primeiro-ministro teria a prudência de convocar os grupos de media e os seus diretores e responsáveis para uma reunião, porque os media são parte da sensibilização. E não apenas convocar para uma reunião, fazê-los participar do processo. Informação falsa ou errada pode avariar toda a logística. O problema está em que os media precisam de explorar as vulnerabilidades da operação, mas essa exploração sem responsabilização gera entropia e acaba por minar os resultados. E para isso já temos o dano suficiente das redes sociais e das suas campanhas de desinformação e perpétua indignação. Os media têm uma oportunidade para demonstrar a superioridade do bom jornalismo e da busca da verdade.

O destino de Portugal depende de tudo correr o melhor possível, e, por uma vez, não correr o pior possível. Nem decorrer da improvisação. Ora os media vivem de más notícias. É urgente conciliar o interesse nacional com a informação certa, em vez da especulação e da ignorância.

E é urgente que o primeiro-ministro e o Presidente se coíbam de comentar rumores ou intrigas, como aconteceu com os “idosos excluídos”. O fator humano é essencial, mas convém saber de que estamos a falar. Claro que um primeiro-ministro que tem uma mãe com 87 anos responde instintivamente que a idade não é critério e que os idosos não podem ser excluídos. E claro que um Presidente católico, imediatamente, responde que é uma “ideia tonta”. Precisamos de rigor nos comentários e nas bolhas noticiosas que se evaporam como bolas de sabão. A única coisa a excluir é a palavra exclusão. A vacina não está testada nos velhos, mas a morte por covid está, e sabemos que é uma agonia terrível e solitária. Há que fazer escolhas, somos adultos. Nada é ideal ou perfeito na doença e na morte. Minimizar o sofrimento é a ordem.

Tudo o que seremos nos próximos anos, política, económica, socialmente, tudo o que seremos humanamente, depende do sucesso deste plano de vacinação. No momento em que escrevo, há gente acampada à chuva e ao frio em greve da fome em frente ao Parlamento. A gente dos restaurantes, numa falência que em certos casos já é acompanhada por destituição e fome. A cidade ficará destruída sem eles. Nada, nesta crise sanitária, é normal ou parecido com outras crises. E quando a crise acabar, o nosso mundo terá mudado, nunca mais voltaremos a ter o que tivemos. A inocência perdeu-se. E só pode ser compensada pelo ganho de uma nova consciência. A de que estamos rodeados de novos perigos, e que este desafio é o primeiro de outros, porventura mais graves, gerados pela emergência climática. E que a futura geração de políticos terá de se preparar para um mundo onde nada está adquirido, nem a democracia. Muito menos a paz social. Algum heroísmo precisa-se.

E deixem de falar com as pessoas como se elas fossem crianças. A corresponsabilização do povo português não foi utilizada, e preferiu-se a teoria do abanão ou do ralho da escola primária. O PS tende para o paternalismo, que lhe advém da mania do Estado socialista omnipotente, omnisciente e omnipresente. Um pouco mais de confiança na capacidade individual precisa-se.

E não é no Twitter que se faz política a sério, ou se exibe ousadia ou coerência. Rui Rio devia saber que o que tem feito é compor uma resma de inutilidades que podem conduzi-lo ao poder, mas não garantem inteligência no país do tanto faz. A vacina não é de esquerda nem de direita. Este é o maior e mais perigoso repto desde Abril de 1974. Ou os partidos trabalham em conjunto para o vencer, ou morrerão no altar onde é sacrificada a liberdade. E sem eles morrerá 1974.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Rodrigues dos Santos vs Ljubomir: da vergonha alheia ao insulto à democracia


Por estatuadesal
Daniel Oliveira,
in Expresso Diário, 
03/12/2020


Antes de avançar neste texto, quero dizer três coisas: que compreendo a situação dramática que vive toda a restauração; que simpatizo com parte das suas reivindicações e considero outras impossíveis de responder pelo Estado; e que compreendo que o Governo decida não receber nove empresários, mas apenas organizações que representam o sector. Sei que está na moda a inorganicidade, excelente para todo o tipo de oportunidades e oportunismos, mas um governo não pode negociar com dez milhões de pessoas. É também por isso que a sociedade civil se organiza em associações e sindicatos. Abrir este precedente seria alimentar uma farsa.




Vários políticos, do Chega ao Bloco de Esquerda, têm aparecido nos protestos da restauração. Não acho que isso seja uma forma de aproveitamento político. Faz parte da relação que os partidos mantêm com a sociedade. Claro que é preciso saber fazê-lo. Um líder partidário com experiência política fá-lo com as devidas cautelas, tentando saber previamente como será recebida a sua presença. Para não insultar os que protestam com ela e para não ser insultado de volta. Sobretudo se leva com ele a comunicação social.

No último feriado, Francisco Rodrigues dos Santos foi visitar os empresários da restauração que estão em greve de fome em frente ao Parlamento. Para além de ter atribuído a Agustina Bessa-Luís um poema de Sophia de Mello Breyner – o risco do citador compulsivo que não é leitor compulsivo é o de tropeçar na fraude que alimenta –, o líder do CDS participou num dos momentos mais constrangedores em que alguma vez um líder partidário se viu envolvido.

De fato e gravata num feriado, com outros dirigentes do CDS e a comunicação social atrás, explicou que não estava ali como líder partidário, mas como cidadão. Uma mentira tão óbvia que só poderia correr mal. Depois, sentado com os empresários, criticou o “emplastro” (André Ventura) que se tentou colar à manifestação. A reação não foi boa: “estás a falar como um político”, disse o chef e empresário Ljubomir Stanisic, como se lançasse um insulto. Como há de falar um político? Francisco Rodrigues dos Santos não percebeu logo que aquilo só lhe podia correr mal. E continuou, como cidadão, a falar das propostas do CDS. Até que Ljubomir se dirigiu a ele nestes termos: “Se voltares a falar de um partido vou ter de te pedir para saíres. Não há partidos, querido. Estamos aqui humanamente. Acredita, por favor, respeita-nos como cidadãos. Votámos na Assembleia, é nossa. Já não conseguimos ouvir falar de partidos, é que ninguém está a apoiar-nos. Eu nem sei de que partido tu és.” A tudo isto, o líder do CDS assentiu, obedientemente, de cabeça baixa.

A primeira coisa a dizer sobre isto é óbvia: não é “emplastro” quem quer, é quem sabe. O líder do CDS achou que podia fingir que era um simples cidadão e participou numa cena humilhante. A segunda tem a ver com a primeira: um político nunca deve ter vergonha de ser político. Nunca vai a um acontecimento político como cidadão. Ser político, se o for com orgulho, não o diminui, engrandece-o. Assumir a menoridade da política é ceder.

Depois de ver o vídeo captado por um canal de televisão, fui matutando na vergonha alheia. E cresceu em mim, depois da pena, um sentimento profundo de ofensa. Pela forma como o líder de um dos partidos que fundou a democracia baixou os olhos perante alguém que o tratava condescendente por “querido” e ameaçava mandá-lo embora se ele voltasse a falar do partido que dirige. Como se liderar um partido fosse uma coisa suja. E, no entanto, ao contrário de Ljubomir, Francisco Rodrigues dos Santos foi escolhido por alguém para liderar alguma coisa.

Fui ouvir de novo aquelas frases absurdas Ljubomir Stanisic. Estava em frente a um Parlamento, onde a representação dos cidadãos se faz por via dos partidos, mas não queria ouvir falar de partidos. Quer que os políticos o ouçam, mas quer que não sejam políticos quando falam. Diz que ninguém faz nada por eles mas recusa-se a ouvir o que um líder de um partido acha que deve ser feito por eles. Quer ser reconhecido como representante de um protesto mas não quer saber que partido representa a pessoa que está à sua frente. Subitamente, e Deus saberá como isso é uma impossibilidade, senti-me no lugar daquele político trapalhão. Aquele empresário, que diz que fomos “nós” (e isto inclui-me a mim, por isso falava em meu nome) “votámos na Assembleia”, despreza de forma ostensiva aqueles que nós todos (e não apenas eles) elegemos. Mesmo não sendo deputado, Francisco Rodrigues dos Santos lidera um partido com deputados. Ljubomir pode nem querer saber quem é aquela pessoa. E, não primando pela boa educação e respeito pelos outros, pode tratá-lo como se fosse um badameco. Mas não pode fazê-lo em nosso nome, os que “votámos nesta Assembleia”. Isso eu não admito.

O problema destes movimentos inorgânicos não é valerem menos do que a ação organizada de trabalhadores, empresários ou qualquer outra coisa. É, sem qualquer forma de eleição, escrutínio ou representatividade, julgarem que valem mais. Nada disto reduz a minha solidariedade com os dramas que se vive na restauração e com algumas das suas exigências. Mas sempre que, no meio deles, aparece alguém que insulta a democracia, eu próprio me sinto insultado.

Quem quer ser ouvido, ouve. Quem quer ser respeitado, respeita. Mesmo quando tem pela frente um político que não se dá ao respeito e baixa a cabeça em vez de se levantar e sair. Políticos que acham que servem para ser sacos de pancada estão destinados a ser saco de pancada. Mas fazem mal à democracia.