“(…) A descentralização não aliena a qualidade de português, mas dá à região descentralizada foros de se governar por si mesma, sem tutela de governos que nem sempre estão a par das necessidades das diversas regiões”. Em Outubro de 1922, Pestana Reis escreveu no Diário de Notícias: “(…) No dia em que for decretada a completa autonomia, ter-se-á descoberto a Madeira pela segunda vez”. Estes dois excertos de textos entre muitos que pertencem à nossa História de povo insulano e que só os historiadores, e não eu, estão em condições de integrar e de conjugar com muitos outros factos, traduzem, quando a mim, uma mensagem que Portugal crescerá e será dignificado quanto maior for o respeito que nutrir pelos povos insulanos. E neste quadro, onde “não se aliena a qualidade de português”, saliento e pergunto, passados mais de cem anos, que razões conduzem a que tenhamos uma autonomia política e administrativa que se apresenta vestida de smoking, mas descalça?
Obviamente que melhor do que eu, que de questões jurídico-constitucionais sou muito limitado, os convidados desta iniciativa deixaram os seus posicionamentos. Portanto, não venho aqui com a minha opinião nesses domínios. Interessa-me, sobretudo, uma abordagem eminentemente política. E para não entrar em divagações, por óbvia incapacidade minha, resolvi escrever este documento. Permitam-me que o leia.
Começo por uma breve história que já tem uns anos. Antes de prestar provas públicas académicas de defesa de uma investigação, assisti a alguns momentos congéneres para familiarizar-me com o ambiente, o cerimonial e as arguências. Lembro-me de um momento que me marcou. Um catedrático, depois de cumprimentar o candidato, tomando na mão e levantando o trabalho de investigação, olhou o candidato nos olhos e dirigiu-lhe a primeira pergunta: Senhor Dr… para que é que isto serve?
Uma pergunta, disparada à queima-roupa que me causou, na altura, sentado no anfiteatro, um arrepio. Mais serenamente percebi que a questão tanto dava para ir longe na defesa da sua investigação como por ali ficar embaraçado, por não descortinar o posicionamento do arguente face à investigação. É exactamente essa pergunta que, hoje, no plano político, coloco: em um exercício de imaginação, levanto a instituição “Representante da República” e pergunto: para serve? Qual a sua utilidade política? Qual a sua justificação?
Nem o Senhor Presidente da República nem o Senhor Representante aqui estão para justificar a importância da instituição, quando um nomeia e outro aceita no estricto cumprimento da Constituição. Mas posso argumentar, politicamente, para além dos dados constitucionais, sem cair em qualquer leviandade ou ignorância atrevida, no sentido de sublinhar que se trata de uma instituição falha de qualquer sentido político.
Aliás, a pergunta que julgo se poder colocar, sempre na esteira do tal arguente que questionava “para que serve isto”, prende-se com o verdadeiro sentido da Autonomia da Região. Não se pode falar do Representante da República sem trazer à colação a questão autonómica, pese embora seja possível questionar se, nos tempos que correm, Portugal é verdadeiramente autónomo e, se não é, no quadro das instituições europeias, como equacionar a autonomia das regiões?
Porém, do ponto de vista histórico, entre políticos abertamente assumidos e outros, corajosos lutadores pela Autonomia, com posições muito firmes sobretudo a partir dos finais do Século XIX e primórdios do Século XX, sempre de forma crescente e convicta das vantagens do processo autonómico, se lhes fosse feita a pergunta, nessa altura, de por aqui dispormos uma espécie de fiscal da nossa actividade política, todos eles certamente diriam, pelo que tenho lido, não, obrigado! Há um texto, publicado na Madeira a 19 de Novembro de 1917, que enaltece: “(…) A descentralização não aliena a qualidade de português, mas dá à região descentralizada foros de se governar por si mesma, sem tutela de governos que nem sempre estão a par das necessidades das diversas regiões”. Em Outubro de 1922, Pestana Reis escreveu no Diário de Notícias: “(…) No dia em que for decretada a completa autonomia, ter-se-á descoberto a Madeira pela segunda vez” (História da Madeira, Doutor Alberto Vieira, 2001, pág. 278 e seguintes).
Estes dois excertos de textos entre muitos que pertencem à nossa História de povo insulano e que só os historiadores, e não eu, estão em condições de integrar e de conjugar com muitos outros factos, traduzem, quando a mim, uma mensagem que Portugal crescerá e será dignificado quanto maior for o respeito que nutrir pelos povos insulanos. E neste quadro, onde “não se aliena a qualidade de português”, saliento e pergunto, passados mais de cem anos, que razões conduzem a que tenhamos uma autonomia política e administrativa que se apresenta vestida de smoking, mas descalça?
Pois, compreendo, houve muitos erros estratégicos, de permeio um estrangulador Estado Novo, uma aurora criada em 1976 que, infelizmente, não foi arquitectada nos melhores propósitos, assistiu-se à febre muito alta da multiplicação das estruturas orgânicas, desnecessários confrontos políticos e a prioridades não respeitadas que terminaram em uma dramática e constrangedora situação financeira. Tudo isso é verdade, mas mesmo assim, com a presença e residência permanente de um Ministro e, mais tarde, de um Representante, com a presença de um big-brother, pergunto, uma vez mais, para que serviu e serve aquela figura? Evitaram-se os exageros, não; evitaram-se os “negócios”, alguns ruinosos, não; evitaram-se desvios na vivência e convivência democráticas, também não. Não serviu para nada. E se a História nos alerta, quarenta anos depois, que o seu papel, o papel de alegado elo de ligação com a República é nulo ou perfeitamente dispensável, entre outros aspectos, no quadro da verificação da constitucionalidade dos diplomas produzidos na Assembleia da Madeira, então é sensato, deduzo eu, que se questione e coloque um ponto final à sua existência.
Está aqui em causa a palavra Autonomia e em síntese, aqui chegados, das duas, uma: ou a Autonomia é levada a sério, com responsabilidade, por parte de todos os parceiros e interventores políticos ou o próprio sentido autonómico ficará sempre em causa. A Autonomia não necessita de “olheiros” residentes ou de pretensos fiscalizadores da acção legislativa e governativa. Não precisa de alguém, escudado em um palácio, que leia a comunicação social, o Diário das Sessões da Assembleia, receba os representantes dos partidos e todo o associativismo e, finalmente, produza relatórios para conhecimento do Senhor Presidente da República. Não precisa de uma figura que, mesmo no quadro das instituições locais da responsabilidade da República, funcione ao jeito timex, passe a publicidade, que não adianta nem atrasa. Tudo o que depende da República e dos seus Órgãos de Soberania continua, genericamente, na mesma. Não precisa, enquanto Região Autónoma, com Estatuto Político-Administrativo próprio, de alguém que nos controle ou que tenha como missão receber umas pessoas ou, protocolarmente, aparecer aqui ou ali. Precisamos, isso sim, de governos que respeitem e que sejam respeitados, que não se atropelem, que não se ofendam, que não se olhem de forma enviesada, governos sérios e honestos, para que ela, a Região, como sublinhei, “se governe por si mesma, sem tutela de governos que nem sempre estão a par das necessidades” e das prioridades. Até para a República, independentemente do presidente ou do governo em exercício, é deselegante porque traduz uma imagem de manifesta desconfiança e porque traduz aquilo que li em Licínio Lima, embora em um outro contexto: “sejam autónomos naquilo que já decidimos por vós”.
Defendo uma Autonomia com responsabilidade e intransigente rigor o que me leva a defender a existência futura de um país e três sistemas. Não deixamos de ser portugueses pelo facto de procurarmos caminhos diferentes para um mesmo desígnio nacional. Há sectores, áreas e domínios da governação que implicam, óbvia e necessariamente, uma interligação assumida com bom senso. Mas do que não precisamos, de todo, é de uma subordinação a orientações heterónomas que coarctam a nossa capacidade de construirmos uma terra com identidade própria. É na diferença que Portugal se afirmará e não pela via de uma ridícula centralização, por mais subtil que seja.
Finalmente, percorro a Lei Fundamental e o Estatuto do Representante e em nenhum artigo, salvo melhor e mais abalizada opinião, deduzo da sua inquestionável necessidade. Mesmo considerando o actual quadro constitucional, para todas as atribuições do Representante, umas deveriam ser completamente ignoradas, para outras existe alternativa. Por outro lado, não entro no comezinho de saber quanto custa, anualmente, a existência e manutenção dos gabinetes do Representante. Isso parece-me de somenos importância, muito embora, em tempo de sérios constrangimentos, pudesse constituir um sinal de respeito para todos os contribuintes. Para já, fundamental, repito, como olhou o arguente para o candidato, é pegar na instituição, levantá-la e questionar: “para que serve isto?”. E assim regresso a Pestana Reis: “A Madeira precisa de ser pela segunda vez descoberta”. Eu diria, redescoberta no processo autonómico e redescoberta a partir da práxis política. Uma e outra conjugam-se, interligam-se, possibilitam uma argamassa feita de confiança, entre poderes e oposições, e de respeito mútuo no quadro da mesma bandeira. Esse é o grande desafio que não passa, apenas, por uma revisão constitucional, mas por uma política superior, uma mentalidade superior, alicerçada na inteligência e no bom senso.
Há muito trabalho a ser realizado, até na mudança de mentalidade, de governantes e de governados, antes de uma próxima e desejável revisão constitucional que, entre outras, pondere e reveja todo o “regime político-administrativo da Região”, a sua estrutura orgânica porque não faz sentido que aqui tenhamos um país institucional dentro do país, quando a Região tem menos população que, por exemplo, o concelho de Sintra. Há que repensar as matérias, dificilmente entendidas como “reserva absoluta de competência legislativa” da Assembleia da República, tudo sem dramatismos, sem olhares pesados, desconfiados e sem mãozinhas protectoras. É difícil, eu sei, mas é o caminho. Não é com contas de “deve e haver” dos últimos quinhentos anos que lá se chega, mas com convicção bi-lateral, muita negociação, força e firmeza de todas as partes. Não somos, nunca fomos e não existem povos superiores, mas precisamos, desde há muito, de uma política superior. Resolvido este princípio orientador, pergunto, o que restará à instituição Representante da República? Rigorosamente nada.
Obrigado.
NOTA
Intervenção, da minha autoria, apresentada, esta manhã, no debate sobre a Reforma do Sistema Político - O Representante da República, organizado pelo Gabinete Estratégico do PS-Madeira.
6 comentários:
É verdade que só os burros é que não mudam de opinião ! Mas é engraçado que enquanto foi o Monteiro Diniz, o Representante, não havia comentários desfavoráveis da sua parte. Será que a sua mudança de opinião terá a ver com a sua conotação politica que é a mesma do Juiz Monteiro Diniz ?
Obrigado pelo seu comentário.
O que afirma não corresponde à verdade. Tenho textos publicados sobre esta matéria, em abstracto, que o provam. Inclusive, participei em encontros de debate sobre a questão Representante da República. Tinha e tenho pelo Juiz Conselheiro Monteiro Diniz um enorme apreço e consideração, não por alegada (desconheço) convergência política, mas pelo que com ele aprendi. Um Homem culto, muito culto. Tive encontros com ele de horas de conversa que muito me agradaram, mas nunca confundi o cargo que constitucionalmente ocupava com a pessoa. São aspectos distintos, como compreenderá.
Nada tenho contra a pessoa do Juiz Conselheiro Ireneu Barreto (com ele tive, apenas dos encontros) se bem que entenda, e já escrevi sobre isso, que o seu desempenho me parece ofuscado por uma excessiva aproximação ao poder. Existindo, entendo que deveria exercer a função de uma forma mais distanciada. Apenas isso.
Sabe, eu gosto de respeitar as pessoas e penso que nunca deveria ser confundido o comentário à função política com a personalidade em causa.
Permita-me que recorde que o Conselheiro Monteiro Diniz é (muito) próximo de uma ala socialista, daí a minha referência. Fala, de certo modo, em "modus operandi" dos Ministros da República e eu recordo-lhe duas do Sr.Antero Alves:mal chegou à Madeira e quando o CDS e o PS pediram uma audiência, solicitou os CV dos respetivos líderes: Mota Torres e Ricardo Vieira, deputados na Assembleia Legislativa da Madeira, o primeiro orgão de governo próprio da Região,como sabe e muito bem. Aqui está uma certa desconfiança à oposição madeirense e se calhar algum medo para os receber de modo a não ter chatices com o poder regional.Não sei será isto muito democrático ! 2ª situação: foi ou não foi durante os três mandatos do Conselheiro Diniz que foi criada a divida oculta? Se nos lembrar-mos foi em 2011 que iniciou o processo "Cuba Livre", ano de posse do atual titular. Ninguém é imaculado e muito menos o Monteiro Diniz, que agora diz que o cargo deve ser extinto....Deixo isto à sua consideração !
Obrigado pelo seu comentário.
Aqui fica o seu registo. Da minha parte, confesso, tive e tenho pelo Juiz Conselheiro Monteiro Diniz o maior apreço enquanto pessoa. O facto de ter sido no tempo que por aqui desempenhou o cargo que a dívida da Região disparou, só vem demonstrar, inequivocamente, que tal cargo não se justifica. Por um lado, porque não pode nem deve interferir no âmbito dos órgãos de governo próprio, por outro, porque os seus poderes, após a revisão constitucional, foram significativamente diminuídos. Para além disso, como adivinhar uma dívida escondida de mais de mil milhões de euros? E como colocar o Presidente da República anterior a dirigir uma mensagem à Assembleia Legislativa da Madeira? Independentemente de tudo o resto, o meu texto e posicionamento político, quer antes, quer agora, é pela alteração constitucional que acabe com a designação da figura do Representante.
Boa tarde,
Como advinhar um dívida escondida ? É facil: Não é o Representante que promulga o OR? Se temos 100 não podemos gastar 150 ! Mas parece que o Juiz estava mais entretido em dizer que estava farto da Madeira, e dos madeirenses, do que ler os documentos e as noticias....
Acho curioso que o PS-M é o mais critica o Ministro da República, mas por outro lado,é o partido que mais o procura publicamente.Noto aqui, no que respeita ao PS, uma certa esquizofrenia...
Bom dia.
Não me parece que exista esquizofrenia política. Reunir com o Representante é legítimo. Se o cargo existe, então parece-me lógico que se mantenha uma relacionamento institucional. Outra coisa é o entendimento que tal cargo não faz sentido. Pela razão que aponta, isto é, até no que concerne ao OR a sua função é apenas a de verificação da legalidade.
De resto concordo consigo: se temos 100 não se pode gastar 150! Só que os orçamentos foram sempre "martelados" e constituíram sempre um jogo de ficção. Daí a dívida. O que me leva a dizer que precisamos de SERIEDADE e muito RIGOR no exercício da política.
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