O milagre do sol de 2016 conta-se em poucas palavras. Na manhã de quarta-feira, 4 de maio, o «sol bailou» em Ourém, junto à Igreja Matriz, depois de uma noite de oração à imagem Peregrina de Nossa Senhora de Fátima. Novo milagre do sol? - Várias dezenas de pessoas assistiram e cada qual tirou a sua conclusão sobre aquele momento (há quem refira 15 minutos, outros falam em alguns segundos) em que o sol brilhou com mais intensidade, pelas 8 horas da manhã. Assim se faz nascem os mitos. A televisão deu-nos a possibilidade de assistir a outro milagre, as várias versões de meia dúzia de mulheres piedosas, onde umas afirmavam terem visto e descreviam à sua maneira e outras que diziam que só tinham ouvido falar e que não tinham visto nada. O milagre de 1917 na Cova da Iria também deve ter sido assim, reuniu várias versões e várias opiniões, até que a coisa pegou. Outros tempos.
É preciso cautela e darmos o valor que as coisas têm por si mesmas. É mais fácil andar com a cabeça no ar à procura de milagres e mais difícil deve ser andar com os pés no chão, com os olhos bem abertos para ver o milagre da vida que acontece todos os dias em todos os lugares onde a boca fala contra a injustiça, a mentira e a desonestidade. Mais ainda se deve encontrar o milagre quotidiano que é dedicar-se ao bem comum, à dignidade e ao bem estar dos outros, em casa para os filhos, no lugar do emprego que todos os dias implica tarefas que devem ser cumpridas, para que alguém beneficie delas e por elas cresça, se alegre e seja feliz porque alguém não se esqueceu de levar a efeito o se dever.
Mais ainda se encontra o milagre da vida quando a solidariedade acontece de forma desinteressada em relação aos doentes, aos pobres e a quem precisou de ajuda e ela não faltou. O milagre autêntico cresce no coração de tanta gente que sabe amar de forma desinteressada, sem condições. O milagre acontece no chão onde andam os pés da humanidade e nunca à volta do sol, que deve estar em paz cumprindo a sua missão, sujeito às contingências da natureza ou à volatilidade do mistério do universo ou às irrequietas nuvens que sempre nos presenteiam com o seu imparável movimento, desenhos espantosos com o contributo da luz generosa do sol.
É preciso estar no chão da vida e procurar fazer com que o milagre da existência aconteça com a maior naturalidade, porque nunca nos esquecemos de ser gente com toda a gente e nunca abdicamos do cumprimento daquelas tarefas diárias, que até mesmo que sejam do mais anónimo, se não forem feitas, podem fazer desabar o mundo de alguém.
Precisamos de um milagre no cuidado da saúde dos cidadãos e esse milagre está ao nosso alcance, basta que os principais responsáveis por essa tarefa cumpram os seus deveres e dediquem-se verdadeiramente ao bem das pessoas doentes.
Outro milagre pode ser o da educação, que precisa de atenção, para que não tenhamos crianças e jovens tão mal comportados rebentando com o juízo de professores e pais. Não deve faltar o dinheiro possível para modernizar as nossas escolas, não ter medo de alterar os métodos e os conteúdos para que as escolas se tornem lugares de aprendizagem pela participação e não depósitos que armazenam pessoas durante algum tempo. E nem muito menos negócios pouco claros para alguns enriquecerem.
Mas há mais milagres que podemos fazer. Não pode ser possível nos tempos que correm vaguearem ao deus dará pessoas sem lugar para dormir e comer condignamente. Não pode ser possível tanto desemprego. Não pode ser possível famílias inteiras sem nenhum apoio monetário das entidades que gerem os nossos impostos, porque os pagamos para que esta vergonha não aconteça, mas há uma gestão que falha e ao invés de resolver, fica-se e não se importa nada com a pobreza, a desigualdade, a fome, a miséria.
Neste âmbito, está ao nosso alcance procurar crescer humanamente, intelectualmente e espiritualmente para que aconteça o milagre da não violência contra todas as formas de barbárie que cada dia cresce diante dos nossos olhos, quando sabemos de notícias de pessoas assassinadas por causa de quase nada ou mesmo nada no quadro da violência doméstica, o abandono e a violência contra os idosos e a tenebrosa desgraça dos abusos de vária ordem contra as crianças.
Por fim, precisamos de uma sociedade crescida, adulta e consciente dos seus deveres. Porque, enquanto se marcar a vida com este devocionismo primário milagroso alienante, o que deve ser feito fica sempre em segundo lugar e enquanto isso acontece os abutres que se instalam nas poltronas do poder nunca tomarão a peito o milagre do dever que lhes compete cumprir em favor do bem comum. Não se distraiam com milagres de sóis. Olhemos todos para o chão do mundo onde vivemos, porque aí acontece todos os dias o milagre da vida, que diariamente nos convoca para a missão da felicidade fazendo os outros felizes.
Ilustração: Google Imagens.
NOTA:
Artigo de opinião do Padre José Luís Rodrigues, publicado na edição de hoje do DN-Madeira e aqui reproduzido com a devida vénia.
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