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terça-feira, 31 de julho de 2018

OH SANTA HIPOCRISIA!


Uma breve nota em abstracto: um cidadão recebe, por exemplo, uma herança. Ou adquire, pelo seu trabalho, um imóvel. Antes disso, pela sua formação pessoal, adquirida ao longo de anos de leituras e observações que estruturaram o seu carácter, no quadro dos seus direitos de cidadania, faz uma opção política claramente à esquerda. E por aí se mantém na defesa dos valores que acredita. Regresso à herança. Investe, acrescenta, melhora, recupera e o mercado, o tal "deus mercado" tão ao gosto da direita política, atribui um valor. Aí, cai o Carmo e a Trindade. Então o sujeito é de esquerda e é rico? Então ele não deveria ser ou fazer como S. Francisco de Assis, que era riquíssimo, se despojou de todos os bens e optou por uma vida de reclusão, pobreza e de dedicação aos outros?


Tenho andado a pensar nisto. Sobre a dicotomia riqueza e convicções políticas. Estou à vontade para falar dessa dicotomia porque vivi do meu trabalho e agora vivo da pensão de aposentação de professor. Não tenho outras fontes de rendimento e a única herança que recebi foi a da educação dada pelos meus pais. Ah, e quando vejo alguém que dizem ser abastado, não cobiço, não invejo e digo, simplesmente, "que Deus lhe acrescente". Se essa riqueza foi conseguida pelo trabalho, pela inovação, pela criatividade, inteligência e sentido de risco, por meios LÍCITOS repito, lícitos, não através de qualquer esquema de corrupção, se paga os seus impostos, se cria postos de trabalho, não explora os seus colaboradores, quero lá saber que tenha dinheiro? Irrita-me é quando roubam. No tempo da troika senti-me roubado. Aí reajo como todos os portugueses o fizeram. Reajo, também, quando olho para casos de alegadas corrupções narradas pela comunicação social, para aquela gentinha que faliu bancos, um deles, até, "legalmente", dispõe hoje de uma pensão de reforma de € 167.000,00 mensais, reajo às riquezas muito mal explicadas, reajo às redes de interesses instalados e tráfico de influências que multiplicam fortunas num ápice, quando olho para os que utilizam paraísos fiscais, aí não tenho contemplações. Fico furibundo, porque não aceito a desonestidade! 
Ora, isto é totalmente diferente de um qualquer sujeito que defende convicções políticas, convencionalmente ditas de esquerda e, por uma razão ou outra, acrescenta, repito, de forma lícita, valor ao seu património. Um político, de esquerda, não faz votos de pobreza. Tal como os da direita. Há casos de gente rica que é extremamente solidária com os outros, como na esquerda há pessoas que, de forma discreta, praticam essa solidariedade. Neste plano, questiono-me, o que é essa história de ser moralmente reprovável, ser político e possuir algum património? Ambos têm o dever da honestidade, com a lei e consigo próprios. Isso sim. Tudo o resto, sinceramente, não me preocupa. O nosso sistema é capitalista, baseia-se no dinheiro, ou este aspecto só interessa em determinados momentos e funciona apenas para alguns? O que me deixa perplexo é ver os situados à direita assumirem lugares de comentadores-gestores da consciência colectiva, administradores e consultores de várias empresas em simultâneo, fazerem-se pagar de forma “pornográfica” apenas pela presença em reuniões; deputados com manifestos interesses fora do parlamento e que, uns e outros, tenham a lata de apontar o dedo, esquecendo-se que quando fecham a mão e levantam o indicador, ficam com três dedos a apontar para eles próprios. Oh santa hipocrisia! 
Os santinhos, os cheios de virtudes, aqueles que se sentem ética e moralmente intocáveis, os sem espelho lá por casa, os que, semanalmente, batem no peito, “por minha culpa… minha tão grande culpa”, os sôfregos por dinheiro, talvez devessem ler a narrativa bíblica da "parábola dos talentos". Embora esta tenha várias interpretações. Ora, eu sei que este meu posicionamento pode ser discutível. Aceito. Mas é o que penso sobre um tema que tanta celeuma tem levantado. 
Ilustração: Google Imagens.

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