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terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Artigo fora da caixa

 

Por
09 Janeiro 2023

Vaticino um 2023 muito crítico na governação. Há dinheiro e a sua aplicação coerente exige decisões disruptivas. Estes meses de governação apontavam numa outra linha e não a rotina de substituição de pedras apenas.



No período do Natal e Ano Novo deparei-me com um artigo curioso, onde se dizia (tradução livre) “a maioria das coisas, que pensamos que sabemos, são construídas sobre uma longa cadeia de confiança”. O seu conteúdo, aparentemente tão natural, fez-me resvalar para a política nacional em que estão a suceder acontecimentos irresponsáveis em catadupa onde as quebras da cadeia de confiança são a raiz do problema.

1. O autor Patrick Carroll inicia o artigo ficcionando um diálogo com uma pessoa que idealiza nunca ter estado na Austrália e, desafia-a com uma pergunta bem simples: como sabe que aquele país existe?

E continuando com respostas ficcionadas que vão fluindo naturalmente: “eu sei porque o professor de geografia da minha escola primária me disse isso”; “eu sei porque um amigo meu esteve lá e pode testemunhar a sua existência”; “eu sei porque consultei um atlas e o país estava lá”; eu sei que os editores do atlas consultaram “especialistas” na matéria; eu sei …

Tudo, fontes muito confiáveis, mas a pessoa ficcionada não sabe se, de facto, sabe porque nunca verificou. Acredita piamente na sua existência pela absoluta confiança nas fontes (o professor primário, o amigo, a inscrição no atlas, os especialistas…). Em síntese, a confiança é o cerne do “conhecimento” que a pessoa tem sobre o tema (a existência da Austrália).

O artigo vai mais longe. O autor liga confiança e autoridade, ou seja, na pessoa em que confiamos, reconhecemos também autoridade na matéria. E, assim, as coisas que pensamos que sabemos têm implícito o reconhecimento da autoridade de pessoas em que confiamos.

Patrick Carrol alerta não haver mal nenhum em confiar, mas é sempre bom vacinar-se contra a confiança fácil (e acrescento também o convencimento pouco fundado) e como medida de precaução aponta a cultura da “citação necessária”, ou por outras palavras, munir-se de uma cultura em que se exijam provas, em particular, nas ideias mais controversas.

O problema, diz o autor, é que as pessoas tendem a defender ideias de forma dogmática com argumentos de “todo o mundo sabe que é verdadeiro” ou “os peritos estão de acordo que é verdadeiro”.

A realidade é bem mais complexa. Hoje pululam as fake news e/ou as pessoas podem estar numa predisposição de facilmente se deixarem convencer. E o artigo termina: “Confie nas autoridades, se desejar, mas tenha cuidado para não confundir confiança com conhecimento”.

Para onde vão os acontecimentos…

2. Os acontecimentos recentes que se têm desenrolado na sociedade portuguesa, ou sendo mais incisivo, a vida turbulenta latente no seio do governo tem vindo a denegrir alguns mitos há muito tempo desenhados e reconhecidos. A grande habilidade política de António Costa tão acolhida por muitos analistas está, no mínimo, a estremecer no interior do PS e do Governo.

Neste segundo caso, é bem pior pois nesta dimensão emperra o evoluir do País. A governação e a decisão de medidas de política urgentes estão bem paralisadas, com valores de realização, por exemplo nos fundos estruturais, que causam calafrios, para já não referir projectos de fundo que se arrastam por tempo indeterminado.

E há muito “dinheiro”. O país dispõe de grossas disponibilidades financeiras. Não se pode invocar esta razão para tanta paralisação. Infelizmente, a incapacidade, a descoordenação governamental aos vários níveis estão a atrasar o lançamento de oportunidades de mudança no País.

Já li e ouvi muito na comunicação social sobre este desconcerto governamental. Eventualmente, não acrescentando nada de novo, deixo algumas ideias polémicas.

Defeitos do “produto” Governo

3. Esta equipa de governo tinha e continua com uma orgânica e uma hierarquia mal gizadas. A colocação de pedras em funções de topo (coordenação), a que não é reconhecida experiência política competente, provou uma grande ineficácia de funcionamento. O lastro de experiência, sobretudo de natureza política, que era evidente existir em algumas das peças componentes do Governo, não fazia sentido serem “comandadas” por outras sem calo.

Não está em causa o valor de cada uma, mas o exercício da função para que foi designada. Quer se aceite ou não é um problema humano. Difícil reportar-se a pessoas em que não se reconhece valor acrescentado para a nossa missão. Para além de peças mal colocadas na hierarquia, ainda há as que continuam no “novo” Governo e nunca o deveriam ter integrado por falta de qualidade mínima ou outros antecedentes óbvios.

Depois, meter no mesmo saco os potenciais candidatos a sucessores de Costa, reais ou fabricados, com boas intenções, claro, dificilmente levaria a bom porto, tanto mais sob uma coordenação menos própria. Esta questão poderá ficar agora, de certo modo aliviada, com a saída de Pedro Nuno Santos que, apesar de tudo, deixa obra pelo menos alinhavada, embora se esperasse um melhor desempenho.

Outro ponto determinante. Os ministros e secretários não são todos génios e mesmo que fossem necessitariam de gente bem rodada e conhecedora dos dossiers. A minha impressão é que tem havido forte descapitalização de recursos humanos no aparelho de Estado e os dirigentes deparam-se com dificuldades em criar equipas de apoio internas capazes e não é com assessores de gabinete que as questões técnicas se equacionam devidamente.

António Costa desbaratou uma oportunidade de agilizar a governação

4. O primeiro-ministro perdeu a oportunidade de segurar o barco, mudando de rumo. Faltou-lhe arrojo e o País entra em perda. Vaticino um 2023 muito crítico na governação. Há dinheiro e a sua aplicação coerente exige decisões disruptivas. Estes meses de governação apontavam numa outra linha e não a rotina de substituição de pedras apenas.

Uma nova orgânica, uma adequação de nomes a essa orgânica mais funcional, mais curta e bem coordenada e o recrutamento de Secretários de Estado, na qualidade de responsáveis de Missão, na linha preconizada por Mariana Mazzucato para a governação das políticas públicas.

Porque não inovar na criação de Ministérios com funções de Missão?

Um exemplo entre outros. Porque não um Ministério de Gestão de Fundos, interligando tudo o que é financiamento do desenvolvimento económico, alicerçado numa componente forte de estratégia para o desenvolvimento?

Uma ideia deste teor faria desaparecer ministérios. Sem dúvida a economia, a agricultura, a captação de funções às finanças, retirando-lhe o peso esmagador que detém na orgânica dos Governos que só emperra, uma articulação maior com os negócios estrangeiros onde a componente internacionalização da economia deveria ter um peso preponderante, etc.

Uma nova orgânica nesta linha faria cair várias das pedras que continuaram à cabeça de ministérios e francamente penso não terem lugar nesta velha orgânica e menos ainda numa nova de verdadeiro ataque às mudanças que o País necessita.

Os mitos continuam no limbo ou a baloiçar e o problema é aguardar o grau de resistência à turbulência. Os remendos foram cozidos, mas os buracos lá continuam. E como não se foi ao fundo do problema, o vulcão semiadormecido pode a qualquer altura lançar lava muito mais mortífera. A rotina imperou contra o arrojo. Um País é muito mais que a política, sem dúvida. Mas uma política séria e responsável enobrece e enriquece o País.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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