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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Enxertias fora de tempo


Por
João Abel de Freitas, 
23 Janeiro 2023

A instabilidade social alarga-se e corrói por dentro a democracia. As pessoas desesperadas pela sobrevivência, sabem que há bastante dinheiro e não o sentem a girar, a criar riqueza de que tanto precisa o País.



Em tempos recuados, a boa execução da enxertia advinha do fazer, do fazer várias vezes, no tempo certo. Aprendia-se com os mais antigos, mas nem todos conseguiam obter a agilidade suficiente para uma execução eficaz – o saber fazer.

Mais modernamente, chegaram a ciência e os cursos técnicos. Os aperfeiçoamentos vão surgindo com a experiência, mas nem todos, mesmo com os cursos feitos, atingem a qualidade para se tornarem exímios executantes (especialistas). Daí que surjam, naturalmente, grupos específicos nos locais onde esta função é necessária realizar-se e, segundo se lê, o número de pessoas habilitadas tende cada vez a ser mais escasso.

A situação fez-me lembrar os soldadores portugueses do tempo em que Portugal tinha uma indústria naval dinâmica e competitiva, em que o país dispunha de uma classe de soldadores muito apreciada e cobiçada por esse mundo fora.

Este aparte surge da falta de soldadores de que tanto se falou recentemente em França, por causa dos efeitos da corrosão nos reactores nucleares, que tiveram de ser desactivados em tempo tão pouco próprio de crise energética. Felizmente, em grande parte já recuperados a tempo do frio de Inverno. Mas esta lacuna detectada na sociedade francesa teve consequências práticas. O governo agiu criando uma escola de nível superior para colmatar de raiz esta grande falha.

Enxertias na política

1. Alguma semelhança existe quando se passa para “as enxertias” no campo da política. Também aqui há que revisitar a história da ciência política e agir com prudência e rigor. Não avançar sem jeito, pretendendo de qualquer modo tapar um buraco, sem erradicar o essencial, as causas.

Lá porque se está numa situação de aperto, atenção, não vale tudo. Um mero expediente nunca é boa solução. E este último avanço do Governo das 36 medidas (que começaram por ser 34!), no contexto de “controlar” as malfeitorias políticas advindas de tantos secretários de Estado depostos e até de ministros que se demitiram, não me pareceu mesmo nada feliz. Faltou-lhe mérito e sentido.

A ministra da Presidência Mariana Vieira da Silva chamou ao questionário “de verificação prévia à propositura de membros do governo ao Presidente da República”.

As 36 medidas distribuem-se por cinco grandes áreas: actividades actuais e anteriores e ligações societárias; impedimentos e conflito de interesses; situação patrimonial; situações fiscais e responsabilidades penais ou inquéritos em curso, que depois se desdobram por medidas que poderiam ser 36 ou 100. O valor é o mesmo.

Uma enxertia sem valor

2. Esta enxertia no trabalho de selecção dos membros do Governo vale zero por desacertada em tudo. Ou talvez até se trate de um esforço negativo porque nada acrescenta ao que sempre se deveria fazer. E se vem acrescentar algo, pior ainda, pois significa que antes tudo era feito de forma leviana. E para funcionar de guião interno não tinha que ocupar tanto tempo ao Governo e tamanho espaço mediático, e agora resultar numas tricas com o Presidente.

Se ainda propusesse algumas ideias de institucionalização, como uma audição prévia dos potenciais candidatos perante algum órgão democrático, a proposta poderia ter algum sentido como contributo a ponderar eventualmente no processo em curso da revisão constitucional.

Assim, não passa de um expediente infeliz e, em nada pode substituir a avaliação política e ética do primeiro-ministro e a responsabilidade da sua escolha.

Urge um Governo operativo e de qualidade

3. Em texto anterior, intitulado “Artigo fora da Caixa”, defendi que este Governo está inquinado na sua origem pela orgânica e qualidade da sua composição, como pessoas mal colocadas no xadrez ou que nunca deveriam ter sido chamadas ao elenco e dimensão em demasia.

Na sociedade portuguesa há a sensação de que este Governo está a governar mal e sem rumo. Os portugueses, ou pelo menos grupos significativos da sociedade, sobretudo nas grandes cidades, estão a dar esses sinais. E o clima político entrou em degradação e a confiança em perda.

Raramente no nosso processo democrático se tem assistido a manifestações junto a sedes de partidos e o PS teve já duas, Lisboa e Porto, a protestar contra o seu desempenho. Pode alegar-se pouco significativas, concedo. No jogo Braga-Boavista apareceram também tarjas pouco simpáticas com referências aos 500 mil euros de indemnização da TAP à ex-Secretária do Tesouro. Não deduzo que todas as pessoas no estádio aderiram às tarjas. Mas é um sintoma.

Por outro lado, a luta dos professores, apesar dos graves problemas às famílias e ao país que o fecho continuado das escolas está a provocar, tem, segundo as sondagens, 60% de adesão da população. Na realidade, ninguém entende como pessoas com tantos anos de profissão andam com “a casa às costas” pelo País.

Será assim tão difícil encontrar saídas para esta situação degradante que se arrasta há tanto tempo?! E a situação não fica por aqui. Tantos são os sectores descontentes. A instabilidade social alarga-se, corroendo por dentro a democracia. A vida está caríssima. As pessoas desesperadas pela sobrevivência, sabem que há bastante dinheiro e não o sentem a girar, a criar riqueza de que tanto precisa o País.

Mas não há dúvida que, para além da orgânica e da composição deste Governo não serem as adequadas, não é também visível uma linha estratégica de desenvolvimento que, a prazo, colmate as verdadeiras origens do atraso nacional, operando mudanças nas estruturas económicas.

Mesmo no PRR não se nota essa orientação, apesar de medidas positivas como a habitação que aguardamos funcionem, apesar de incompletas, pois existe tanto património abandonado, a apodrecer (militar, da igreja, dos privados) a exigir recuperação e cujo lançamento no mercado resolveria muitos problemas da carência habitacional. Quem mexe nesta situação?

Não desconhecemos que houve uma pandemia e agora a guerra. Mas até esta está a ser mal canalizada. Não se caminha no sentido de confluir para a paz, mas antes num assanhar do conflito. Até onde iremos?

Emannuel Todd, um antropólogo francês com uma vasta obra no domínio da prospectiva, afirma no seu último livro que a terceira guerra mundial começou, e insiste na dimensão ideológica e cultural desta guerra e na oposição entre o Ocidente liberal e o resto do mundo. Será que tem razão?!

A Europa está cansada da guerra. E o Mundo também. Mas penso, ou melhor, tenho a certeza, que muitos políticos não. Querem a guerra para melhor dominarem o Mundo em seu proveito.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.

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