“Vem tudo isto a propósito do estudo, tão maltratado nas escolas e pelos professores. Na escola que temos, império do método simultâneo, onde adultos ensurdecidos falam para ouvintes proibidos de falar, é cada vez mais difícil encontrar lugar para trabalho de estudo. Essa actividade central do labor intelectual foi expulsa da escola e tornou-se trabalho para casa. Assim se revela, de entre outras demasiadas coisas, a degradação cultural a que chegou a escola e a profissão docente (…)” – Sérgio Niza, Escritos sobre Educação, pág. 544. Esta é uma parte do texto: “Nas escolas não há lugar para o prazer no estudo”, publicado em 2006. Como não há prazer no estudo, digo eu, o governo separa os “inteligentes” dos “burros”!
“Bons e maus alunos em turmas separadas” fez a manchete da edição do DN-Madeira. Proposta que não é nova, pelo menos eu há três, quatro anos, andei a vasculhar autores no pressuposto que, se calhar, eu é que estaria errado. Essas leituras fizeram-me assumir uma posição radicalmente contra depois de ter realizado um esforço de compreensão do tema. Porém, a verdade é que, em certos ambientes políticos, a ideia colhe e é apresentada sem uma qualquer fundamentação científica. E é exactamente isso que peço, que o secretário regional da educação da Madeira apresente toda a fundamentação, não aquela que possa advir de um qualquer convencimento pessoal, mas aquela de teor científico, suportada em estudos de investigadores nas Ciências da Educação. Se conseguir demonstrar, não no plano do blá, blá político, mas no das várias ciências que suportam esta questão, obviamente que me reduzirei à minha insignificância. Inevitavelmente, tem de o fazer conjugando todas as variáveis.
Esta história levou-me a retornar a um texto de Sérgio Niza enquanto síntese do pensamento que sigo. Poderia ter ido a tantos outros que tive a oportunidade de ler e alguns, até, de os ouvir, pessoalmente. Entre outros, deixo aqui uma parte de um texto interessante que arquivei já lá vão uns três anos. É da Mestre em Educação Armanda Zenha, que tem vários livros publicados. Transcrevo algumas partes: “Muito se tem falado sobre a possibilidade de formação de turmas de nível, o nome que se dá hoje em dia àquilo que nos meus tempos de estudante se aplicava apenas a filas de cada turma: a "fila dos burros" e a "fila dos inteligentes". A criança que eu era na altura, apesar de ter a sorte de estar na segunda dessas filas, achava degradante esta distinção e sentia revolta por ver colegas minhas (as turmas não eram mistas) assim discriminadas e humilhadas. Hoje sou adulta e sou professora. Continuo a sentir da mesma forma relativamente à diferenciação dos estudantes em turmas de nível. Promoção de condições de aprendizagem? Não me parece que seja esse o seu resultado. Discriminação e rotulação são consequências certas. (…) A formação de turmas de níveis de conhecimento provoca uma segregação nas escolas e um espírito competitivo, individualista e até egoísta. Aos níveis de conhecimento vêm, com muita facilidade, associados os níveis de comportamento e também a proveniência social. A estratificação vai-se consolidando e a escola para todos, que deveria suprir as carências que as crianças encontram na sociedade, cada vez menos cumprirá essa função e cada vez mais reproduzirá e agravará as diferenças. (…)”
O tema é inesgotável, mas ao “secretário do estado a que isto chegou” quero aqui deixar uma série de interrogações: por que é que as crianças chegam assimetricamente à escolaridade? Que razões substantivas, no plano social, justificam essas assimetrias de conhecimento? E no plano das culturas? Por outro lado, qual o seu entendimento sobre a autonomia das escolas? Qual o financiamento público à escola pública relativamente à escola privada? Que conjugação de políticas inter-sectoriais estão a ser desenvolvidas no sentido do esbatimento das causas económicas, financeiras, sociais e culturais? Quais as preocupações existentes no sentido de uma actuação relevante, entre os quatro e os sete anos, no que concerne aos primeiros sinais de desconformidade na aprendizagem? Quais as políticas de família existentes? Quanto custa a uma família a Educação, onde apenas os livros (IVA - 6%) contam para efeitos de despesas de educação? Qual a perspectiva do governo relativamente à natureza tendencialmente gratuita da Educação prevista na Constituição da República? Hoje, com o conhecimento existente, questiono, ainda, será defensável o conceito de turma e de aula? E o conceito de escola no que concerne ao número de alunos por estabelecimento e por “turma”?
Centenas de perguntas poderiam ser elaboradas sobre este assunto. O secretário da Educação, certamente, que tem as respostas na ponta da língua. Só que essas respostas, repito, deverão ter um cunho CIENTÍFICO e assentes em uma revisão da literatura. Não sendo assim, é paleio de treta. Até pode ter descoberto experiências de sucesso fantástico, mas terá de dizer onde e em que condições. Aliás, tudo isto é uma falsa novidade. Em muitas escolas, sei do que falo porque por lá passei muitos anos, sempre existiu uma preocupação da turminha dos meninos oriundos daqui e dali. E depois os outros. E para o turno da tarde, em muitos casos, os restantes. Coitados dos professores, se já tinham problemas, agora levam com mais esta.
Na Assembleia Legislativa, onde o secretário terá de se explicar, espero que os deputados ponham em cima da mesa as razões de natureza científica, os pareceres recolhidos sobre esta decisão (seja sobre a forma de experiência-piloto ou não) e que o assunto seja trabalhado, não no plano político, mas no plano científico. A própria Comissão Especializada, do meu ponto de vista, por uma questão de princípio, deveria solicitar pareceres, não apenas aos sindicatos, mas à Universidade, aos investigadores, aos autores, aos psicólogos, sociólogos, pedopsiquiatras e outros. É um assunto demasiado importante para ser decidido por um secretário!
Ilustração: Google Imagens.
NOTA: Artigo publicado no Funchal Notícias.
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