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quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Sejam livres

 

As considerações que aqui vou deixar ressoam-me como um desabafo vindo das entranhas. Os anos vão passando, com a sensação que, agora, maior é a sua velocidade, mas também, analisando pelo lado positivo, trazem e acumulam experiências vividas, leituras mais profundas, análises que produzem sínteses interligadas e consistentes, a separação do trigo do joio, a valorização do que é importante em detrimento da "espuma dos dias", o sentido de tolerância e acrescentada responsabilidade para compreender os outros. Sinto isso, embora a insignificância da minha existência impossibilite a concretização de pensamentos mil sobre o que por aqui andamos a fazer e, sobretudo, a aceitar, de forma tranquila, sem qualquer sobressalto de cidadania.  



Eduardo Galeano (1940/2015), notável escritor uruguaio, escreveu de forma incisiva: "Vivemos em plena cultura da aparência: o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais do que o corpo e a missa mais do que Deus". E acrescentou: "A primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la". Pois, é isso. O problema é que mesmo dominando-a nas suas traves-mestras, a realidade da sofisticada engrenagem político-social é tão omnipresente e castradora que conduz a frenar qualquer ímpeto. A sensação que fica é a de içar uma bandeira e, na avenida, olhar para trás  e sentir-se só.

Dir-me-ão que, no plano da vida e da vivência democráticas, as angústias sentidas podem ser resolvidas. Têm solução. É na leitura política e no voto secreto, no silêncio daquele metro quadrado, uma esferográfica pode ser portadora do mundo que desejamos. Teoricamente é por aí que os passos deviam ser dados. Na prática, não é bem assim. Infelizmente, sublinho, para uma esmagadora maioria. Parafraseando o título do romance do açoriano João de Melo, "Gente feliz com lágrimas", essa maioria maltratada, muitas vezes espezinhada e atirada para as margens, é enganada e conduzida segundo a liturgia de uma minoria que domina todos os passos do controlo social, fazendo crer aos demais a dimensão e a bondade das suas decisões. O voto acaba, naquele dia solene, por sucumbir aos acenos do paleio ilusório, das palavras vãs e à momentânea lembrança de uma qualquer dádiva recebida que atenuou mas não resolveu o âmago dos problemas. 

Não fomos educados para a verdadeira liberdade; não fomos educados para os direitos e para os deveres. Fomos, genericamente, aculturados e moldados por uma maldita herança de subserviência onde imperam medos sem fim. O medo da mudança, por exemplo. Porque a escola deu e continua a oferecer definições, conceitos e soluções, jamais a capacidade de pensar e de conjugar, culturalmente, tudo o que se passa diante dos nossos olhos de actores/espectadores. De tal forma que ainda há quem fale no "senhor governo", sinal evidente de servilismo, de submissão aos interesses de uns outros. O chapéu na mão, ontem, foi, aos poucos, substituído pelo nariz colado aos joelhos. O baile pesado assim permanece. Pior que ontem, assevero, porque hoje essa apropriação do comum dos eleitores é consentida, sendo ténues os sinais de uma revolta de dentro para fora, da base para o topo. Como algumas datas históricas assim evidenciam.

Daí o meu desabafo. Há uma resignação, uma submissão à vontade inteligente mas perversamente criada, uma sucessiva abdicação inconsciente face alguns pontos determinantes da Constituição, que poderiam levar a uma vida harmoniosa, jamais a uma sociedade tão desequilibrada, assimétrica e dependente, onde poucos podem ser felizes. É por isso que subsiste, ainda, a terrível ideia de que não vale a pena lutar, a peregrina imaginação do insubstituível e o assustador conceito de que "roubam mas fazem"! 

Prefiro respirar em ambiente democrático, solto de pensamento, estraçalhando amarras, acenando-lhes com um "Zé Povinho" de Bordalo quando, no plano discursivo criam sucessivas atmosferas de engano. Não vou, jamais irei, pela "cultura da aparência" desenvolvida por Galeano. Até porque essa cultura de rebanho, assente na aparência, como um dia me disse o meu Amigo Engº Arlindo Oliveira, vestiu-nos de smoking mas deixou-nos descalços!

Sejam livres.

Ilustração: Google Imagens.

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